sábado, 9 de julho de 2022

Esquerdeiros citam Sol da Pátria contra duginismo, ou: histrionismo e incompetência do 'nordicismo eXotérico'

"Corajoso" perfil fake que pensa estar seguro de um processo pelas bobagens que anda proclamando em redes sociais julga que existe algum componente "psicológico" nas nossas discordâncias com o duginismo. Seria fácil especular sobre alguma motivação psicológica dele também.


Fui citado por militantes da esquerda liberal, que chamo gentilmente de esquerdeiros ou esquerdalha, no perfil da Nova Resistência no Twitter. O debate era sobre as possíveis ligações do líder do grupo duginista com Álvaro Hauschild, acusado de racismo em caso de flerte na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e de suposta busca e apreensão da Polícia Federal em apartamento de Raphael Machado.

 

Que um perfil falso vinculado a militantes pós-pós tenha usado postagens de ativistas da Frente Sol da Pátria para argumentar contra duginistas tem implicações bastante interessantes, que vou resumir e depois detalhar: o fake se liga à jornalista Letícia Oliveira, vulgo “bicicreta”, que une incompetência com histeria anarco-identitária, e nenhum dos dois é capaz de apurar informações básicas sobre seus supostos inimigos políticos; por não saberem do que estão falando, e não ter nada de relevante para colocar contra os duginistas além de xingamentos mambembes e especulações baratas, dependem da reprodução das críticas que fazemos ao geopolítico russo; como nunca leram meio livro do que pretendem denunciar, tampouco são capazes de entender as críticas que fazemos, deturpando-as segundo os moldes de sua própria ignorância.

 

Deixe-me agora partir para os detalhes envolvendo o circo esquerdeiro.

 


1. Histeria tuiteira para compensar incompetência jornalística e vazio analítico


Letícia Oliveira declara que acompanha “movimentos fascistas” [como ela qualifica qualquer um que não concorde com os dogmas da esquerdalha pós-moderna] há quinze anos, mas conforme demonstrei em vídeo publicado em um dos meus canais no Youtube [veja aqui], pensava até mês passado que o famigerado debate entre Olavo e Dugin se deu “por vídeo”. Eis o nível da jornalista, que três ou quatro dias depois de uma operação da Polícia Federal em Caxias do Sul é incapaz de informar ao seu distinto público se Raphael Machado foi ou não alvo de busca e apreensão. Em vez disso, aquela que diz monitorar o sujeito há mais de década mendiga qualquer informação que imagine pescar em postagens públicas no Twitter e em blogs. Só resta o estardalhaço algo constrangedor em seu perfil.

 

Pequeno barraco no perfil oficial da NR no Twitter. A ilogicidade dos esquerdeiros, que veem conexão ideológica porque pessoas compartilham o mesmo ambiente

Como não tem informações relevantes nem o mínimo compromisso com a verdade, “bicicreta” e cia. se dedicam com denodo a dar exemplos de ilogicidade [para esse pessoal, a lógica é “falocêntrica”, ou seja, muito, muito ruim e opressora]. Funciona assim: se X é fascista e esteve no mesmo evento que Y, então Y é fascista também. Por este mesmo raciocínio deturpado e falso, “bicicreta” deveria se admitir NAZISTA, já que realizou um podcast com estudioso que participou do V Encontro Nacional Evoliano, em São Paulo, e era colaborador do Centro de Estudos Multipolares, liderado por Flávia Virgína e vinculado a Alexander Dugin, conforme aponto no vídeo cujo link coloquei acima. Mas Letícia Oliveira alegar ter seus privilégios. O privilégio de poder conviver, debater, e ter ligações com duginistas e ex-duginistas sem cair na mesma “culpa por associação” com que pretende tratar adversários!

 

A “bicicreta” não resistiu e caiu na provocação de uma liderança da NR sobre o anti-getulismo! Ora, Raphael Machado não é nem nunca foi getulista. Ele começou a usar a imagem de figuras do trabalhismo histórico como meio de se contrapor à LNT [Legião Nacional Trabalhista] do Rio de Janeiro, movimento que era de fato getulista – é uma estratégia de imitação do rival que continua até hoje, como por exemplo as cópias em cima de textos de Luiz Campos e Ewerton Alípio [só os textos, não vídeos, porque aí seria mais difícil]. 


Mas praticamente todo o conteúdo getulista e trabalhista da organização foi desenvolvido por mim e por amigos meus que saíram da Nova Resistência este ano. Se não fosse minha ação nas redes sociais em 2018, não teria existido reunião na sede do PDT no Rio de Janeiro com Carlos Lupi logo após as eleições. Praticamente todos os textos sobre Getúlio Vargas no site da NR até março de 2022 eram originalmente publicados nas minhas redes e blog. O mesmo pode ser dito do conteúdo sobre cultura popular, carnaval, movimento armorial, música brasileira e até bossa nova [que Dugin gosta, mas Raphael Machado considerava “música de pau mole”, como costumava dizer], cuja autoria é, em geral, de lideranças que deixaram a organização. 


Todas as aparências de getulismo, nacionalismo, Trabalhismo da organização são meras ressonâncias em cima do trabalho de alas que romperam com a NR, e que são mantidas porque eles não tem nada, absolutamente nada, para colocar no lugar, como se viu no caso recente das incompatibilidades que trouxemos à tona entre o modelo de etnicização defendido por Dugin e a ideia de civilização brasileira de Darcy Ribeiro. [incompatibilidade que já deixávamos claro quando participávamos da NR, como se pode ouvir neste famoso episódio do Caipira Armorial em meados de 2020: clique aqui], e como se percebe nas reticências de Machado por retirar nossos textos do site oficial da organização. A inimizade de Letícia Oliveira com Getúlio Vargas não significa nada, no fundo, contra a NR. Por trás das aparências, a NR é puro suco de duginismo, não de getulismo.

 

Dias depois do acontecimento, a "jornalista que monitora movimentos X e Y há 15 anos" mendiga dados, incapaz de informar ao seu público, de modo objetivo, o que de fato aconteceu. Histrionismo na Internet

O perfil fake que citou ativistas da Frente Sol da Pátria no ‘fio’ do Twitter está doido por informações confiáveis das conexões de Álvaro Hauschild com a NR, e aparentemente Letícia Oliveira não é capaz de ajudá-lo a não ser com fotos inócuas supondo a culpa por associação que tragaria ela própria pro abismo das simpatias “neonazistas”. Deixe-me tirá-los da ignorância gerada pela falta de dados sólidos! 


Fiz parte do núcleo estratégico interno da Nova Resistência entre 2018 e 2022, e sou testemunha que Hauschild era persona non grata desde fins de 2018. O líder da célula gaúcha da NR -- um cripto-separatista que mais tarde sairia do grupo por discordar, dentre outras coisas, do ritmo nacionalista e getulista que eu e amigos meus dávamos à ideologia do movimento --, não suportava o sujeito, e exigiu que ele fosse barrado em qualquer evento da organização. E assim foi feito. A última vez que ouvimos falar dele, em 2021 e antes da celeuma que estourou na imprensa, estava conspirando para sabotar a Nova Resistência, por considerar que a atuação dela obstaculizava os planos dele, Hauschild, sobre o que deveria ser a Dissidência no Brasil, que não posso garantir quais seriam mas posso imaginar: anti-getulistas, nesse ponto bem parecido com a “bicicreta”. Sobre envolvimentos  pretéritos de Hauschild com Machado, nada de concreto sei a respeito, como Leticia Oliveira tampouco parece saber.



2. Falta de conhecimento mínimo sobre os temas que pretendem denunciar

 

O “corajoso” perfil fake, que do alto de seu pretenso anonimato usa postagens nossas para conectar a Nova Resistência ao nazismo, não é capaz de entender do que estamos falando. É um ignorante e mais nada. Um dos fios que ele cita, composto por Uriel Araujo, critica o projeto de etnicização forçada e de separação étnica-regional implicado no duginismo. Mas este não é um modelo nazista, e sim soviético. Além disso, o próprio Uriel Araujo nega no mesmo fio que o duginismo seja fascista. Ele demonstra que ele sequer pode ser chamado de nacionalista. O modelo propugnado por duginistas é deletério e incompatível com o Brasil, mas nem tudo que é ruim pode ser descrito como “fascista”, como na mentalidade binária e maniqueísta típica de militantes da esquerda pós-pós, cuja imaginação e vocabulário político é incapaz de enxergar para além do preto e branco.

 

De modo similar, quando digo que Dugin é um "nordicista esotérico" não me refiro a qualquer tipo de racismo biológico. O conceito de etnia de Dugin não está vinculado ao de raça. Pelo contrário, ele dedica páginas e mais páginas de sua obra "Etnossociologia" para negar a biologização da etnia e colocar problemas ao próprio conceito de raça biológica. Portanto, a declaração de esquerdeiros de que estas ideias duginianas não se distinguem do nazismo são pura demonstração de incultura. Digo que Dugin é racista segundo os critérios do próprio Dugin, que estende o termo para incluir qualquer hierarquia de povos em que um sirva de modelo civilizacional para os demais. Nesse sentido, ao fazer dos povos do Norte Geopolítico os modelos de verdade tradicional e de dominância, Dugin acaba se traindo.

 

Mas isto não é racismo biológico. E além disso, se aplica igualmente a “bicicreta” e cia. A esquerdalha identitária é igualmente racista segundo estes parâmetros: defendem que a agenda política e os padrões institucionais, axiológicos e de sociabilidade dos grandes centros capitalistas do Ocidente devem governar o debate público do nosso país e moldar nossas leis. São a “esquerda de Oslo”, como a chama Jessé de Souza, que neste ponto específico está correto [e errado em muitos outros]. Não conseguem enxergar civilização senão no “eurocentrismo” mais tacanho e viciado. Se Dugin é um “nordicista esotericista”, Letícia Oliveira e cia. são “nordicistas eXotéricos”. Se duginistas toleram ideias de desmantelamento da nacionalidade brasileira pra criar “novas etnias”, Letícia Oliveira e cia. adorariam fazer tabula rasa de toda a história e identidade brasileiras, consideradas selvagens e fracassadas, para substituí-las pelo admirável mundo novo saído da cartilha do Partido Democrata ianque e de ONGs estrangeiras. O que falta a ambos é amor pelo Brasil, pela brasilidade, e identificação com o próprio povo.

 

E isto não é supor homogeneidade do povo, nem negar a centralidade da questão identitária, como afirmou um esquerdeiro perplexo por alguém ser contra certos identitarismos e a favor de outros. A identidade coletiva ou grupal é fundamental para a identidade pessoal. Esta se constrói tendo aquela por referência. A própria nacionalidade é uma identidade coletiva, grupal, não só um vínculo contratual. Mas uma coisa é a defesa de identidades orgânicas e holistas, outra é a defesa de identidades calcadas no individualismo e no cosmopolitismo. Uma coisa é defender identidades nascidas e sustentadas em comunidades populares brasileiras, outra é defender identidades importadas pela indústria cultural dominada por centros capitalistas. Letícia Oliveira e cia. nada mais são do que agentes de opressão de classe a serviço da dominação ideológica [do ‘soft power’] de potências estrangeiras. São pequenos burgueses que se imaginam mais “esclarecidos” do que os "selvagens" de Madureira e Bangu, a quem taxam de fascistas por discordarem de usos e costumes de San Francisco e Londres. São verdadeiramente inimigos do legado de Getúlio.

 

Não há contradição entre defender certas identidades e criticar outros projetos identitários. O nacionalismo defende um tipo de identidade grupal. O individualismo é outro projeto de identidade, baseada em um suposto sujeito moral autônomo, encarado como normativo. Outro projeto é o comunitarismo. Outro ainda é a defesa de identidades tradicionais, ou seja, holistas. Esquerdeiros não sabem do que falam.



De resto, é possível que racistas e segregacionistas efetivamente tenham usado ideias duginianas para esconder os próprios vícios da alma. Há sempre este perigo, ainda mais em um sistema de ideias que dá tanta importância ao Norte Global e à necessidade de identidade étnica. Racistas fazem o mesmo com as ideias afrocêntricas importadas dos EUA, tentando esconder seu ressentimento racial, sua militância pró-etnicizante e seu ódio ao mestiço atrás de máscaras de tolerância e pedidos de Justiça Social e democracia. 


Discordamos do duginismo. Discordamos da exigência por etnicização brasileira baseada na diversidade das culturas regionais, emulando o modelo soviético e russo; discordamos do apartamento das regiões brasileiras, com controle estrito de migrações internas para não “desenraizar etnias regionais”; discordamos da subordinação geopolítica ao Norte e ao neocolonialismo; discordamos da leitura tradicionalista duginista; discordamos da tolerância com ideias separatistas; discordamos da exigência de fim da identidade nacional; discordamos da exigência pelo fim da soberania brasileira; discordamos da defesa de um mundo quadripolar em que o Brasil ficaria sob égide da doutrina Monroe; discordamos da russofilia, em que não se pode chamar a invasão ucraniana de ‘guerra’ para não ofender a ‘perspectiva russa’, como se um brasileiro devesse subordinar sua análise do evento ao ponto de vista russo; discordamos do apego abstrato à ideia de multipolaridade sem levar em conta considerações de Justiça, segurança coletiva e p interesse nacional brasileiro. Discordamos dos duginistas em inúmeros pontos. Mas desconheço qualquer discurso explicitamente racista ou nazista na cúpula da Nova Resistência. O duginismo tem muitos equívocos [e outros tantos acertos], mas não é uma reedição do nazismo nem milita por supremacismo racial. 

 

A questão é que Letícia Oliveira e os perfis fakes que frequentam suas redes são ineptos para falar dos problemas da Quarta Teoria Política e do Neo-Eurasianismo. São apenas antifas “causando na rede”, “espalhando caos”, “lacrando”, e babando na gravata enquanto ficam cada vez mais isolados até mesmo no espectro político-partidário que imaginavam dominar.


quarta-feira, 6 de julho de 2022

A História da Dissidência Tradicionalista no Brasil, parte VIII: A Era dos Evolianos 3 -- [2013] O Grupo Austral, a FPA e o IV Encontro Nacional

 “Meu primeiro contato com temas dissidentes e com pessoas que depois iriam se tornar militantes da dissidência foi em 2008, 2009, com comunidades do Orkut. Comunidades sobre política, sobre esoterismo, sobre religião...Em 2009 ou 2010 me juntei a um grupo que era do Wagner, do “Labrego”, do Valdemar, do S. G. e do Machado. Criamos um círculo e começamos a estudar Evola, Dugin, entre outros autores. Isso em 2009, 2010."

Maurício Oltramari, sobre o surgimento da Legio Voluntas Invicta, núcleo do Grupo Austral

Palestra de Alberto Buela na Conferência Ibero-Americana de Quarta Teoria Política, organizada pelo Grupo Austral em Curitiba, novembro de 2013. Na ocasião, um livro de Buela foi lançado. O grupo teve protagonismo na organização de Evolianos entre 2011 e 2013.

É impossível falar dos Encontros Evolianos em particular, e da Dissidência Tradicionalista de modo geral, sem citar Maurício Oltramari. O discreto e sóbrio gaúcho de Caxias do Sul é um dos nomes mais antigos e importantes na formação e evolução deste campo político. Criado em família formalmente católica, mas já algo secularizada, desde a adolescência acompanhava a mãe a um centro espírita. "Na verdade, ela já era espírita, mas por convenção me deixou fazer a catequese na Igreja e tudo. Daí começou a me levar na evangelização do centro espírita. Fiquei ali uns cinco anos. Foi a época que mais me despertou interesse por questões espirituais. Li alguns livros espíritas, apesar de adolescente. Fazíamos também em casa o "Evangelho no Lar".[1] Depois disso, comecei a ler por conta alguns autores mais ocultistas: Blavatsky, Gurdjieff, Crowley." O interesse em ocultismo e autores da via mão da esquerda fez com que o jovem esbarrasse em Julius Evola e René Guénon, dois nomes capitais do Tradicionalismo, segundo ele me contou em conversas nas últimas semanas:


"Eu tinha uns vinte e poucos anos, e aí comecei a ler Evola e Guénon. Do Guénon, estudei mais profundamente os livros de crítica à Modernidade. [...] Já Evola eu li todas as obras principais dele. Se eu tivesse que colocar cinco autores que mais li até hoje, com certeza Evola estaria entre eles. Então, me influenciou grandemente. [...] Desse momento em diante, então, o Evola e o Guénon passaram a ser minha régua para tudo, né, pra avaliar a questão política, a sociedade e a religião. A critica dos Tradicionalistas era bem mais ampla do que a dos ocultistas. Então, Evola e Guénon passaram a ser minha régua pra medir muitas coisas. E aí fui conhecendo muita gente na Internet que estudavam  o Evola e o Guénon. O Machado, o Alex, tu mesmo também. Dídimo e muitos outros. Entrei em comunidades virtuais e tudo o mais."


Frequentando comunidades de esoterismo e política no Orkut em 2008 e 2009, Maurício recebeu um convite para uma roda de estudos sobre temas correlatos que teria protagonismo na Era dos Evolianos, principalmente na organização de eventos no sul do paísOltramari participou de todo o processo de crescimento e amadurecimento do círculo, ajudou a montar os eventos do II Encontro Nacional Evoliano [2011], em uma chácara em Curitiba, e foi uma das lideranças internas do grupo que fundou e comandou a Editora Austral. Nesta posição, ajudou a traduzir, revisar e publicar livros, e participou ativamente nos eventos de Curitiba do III Encontro Nacional Evoliano [2012], que contaram com a presença de Alexander Dugin, e da Conferência Ibero-americana de Quarta Teoria Política [2013], com palestra e lançamento de livro de Alberto Buela. Na verdade, Oltramari participou de todos os Evolianos, com exceção do primeiro. "E fui pra Argentina em 2014, na primeira visita do Dugin lá, estive nas palestras na CGT e na embaixada da Rússia", acrescenta.


Um dos livros publicados pela Austral, do filósofo argentino Alberto Buela, com revisão de Maurício Oltramari

Com o lento esvanecimento da Austral, ao longo de 2014 e 2015, Maurício acompanhou o Tradicionalismo político de longe por algum tempo até receber convite formal para integrar a Nova Resistência, já em 2017. Com longa experiência, não demorou muito para que se tornasse tesoureiro da organização e passasse a dividir a liderança da célula do Rio Grande do Sul com Carlos Guntzel [mais tarde fundador da Resistência Sulista, como pretendo descrever], já em 2019. A partir dessa época, integrou o grupo de estratégia responsável pela condução e pela ideologia do movimento, tendo papel fundamental e de destaque na organização dos Congressos Nacionais da NR. Junto com boa parte das lideranças internas, saiu deste movimento e, logo em seguida, se tornou um dos fundadores da Frente Sol da Pátria, em 2022.

A perspectiva de Oltramari não parou nos Tradicionalistas. Maurício se aproximou do Neoplatonismo. "Comecei a estudar Filosofia Antiga e o Neoplatonismo. E fui me inclinando cada vez mais para um visão de mundo mais platônica. Eu já tinha uma visão gnóstica. Eu já comprava uma visão gnóstica antes. Assim, aquelas principais características que o Hans Jonas define como gnosticismo, né? [2] Então, não foi uma mudança tão radical assim ir passando para um neoplatonismo. Hoje em dia, estou quase totalmente inclinado pra essa visão neoplatônica, especialmente do Plotino, mas também outros autores.  E espiritualmente falando, minhas práticas estão mais voltadas pra esse misticismo neoplatônico, com toda sua leitura de mundo, com todas as suas possibilidades práticas, que não são reconstrucionistas. Nunca fui um reconstrucionista pagão. Minha pegada é meditação, oração, teosofia como disciplina espiritual. No fundo, é uma espécie de uma religião filosófica o ponto em que me encontro hoje." 

 

8.1 Legio Voluntas Invicta

 

A rede de jovens que organizou os Evolianos em Curitiba entre 2011 e 2013 convivia em fóruns de política e esoterismo na Internet. Nascia um grupo de estudos chamado Legio Voluntas Invicta, com meia dúzia de interessados em neoplatonismo, esoterismo e política. Em 2009, além de Maurício, faziam parte do grupo F.F. [uso as iniciais para proteger o nome do membro], que teve rápida passagem no grupo de estudos conservadores da UFBA, do qual Ricardo Almeida foi membro; Valdemar A., que se tornaria representante no Brasil do Centro Evoliano de America [CEDA], do argentino Marcos Ghio; João Labrego [pseudônimo], S. G. [uso as iniciais para proteger o nome do membro], Wagner Correa e Raphael Machado. 

Segundo Labrego, "a amizade entre pessoas do grupo começou no Orkut entre 2006 e 2009, em comunidades esotéricas/gnósticas (uma delas a famigerada Olavo de Carvalho lado B). Éramos de várias vertentes: gnose do Samael, evolianismo, cabalismo, perenialismo, astrologia, etc. Com o passar dos anos fomos caminhando naturalmente para a dissidência política. Eu (Labrego) e Wagner já tínhamos contato com nomes como De Benoist e Dugin desde 2006. Nessa mesma época vivíamos a guerra ao terror dos EUA, as tentativas de golpe na Venezuela, a explosão de Alcântara, a revolução laranja na Ucrânia e posteriormente o início da primavera árabe (incluindo a destruição da Líbia, que nos chocou profundamente). Com tudo isso em vista, e a crise de representação das direitas e das esquerdas no Brasil, resolvemos produzir algo que fosse anti-globalista, anti-hegemonia ocidental e pró-autonomia dos povos que sofriam as mazelas do imperialismo - aliado ao tradicionalismo como crítica à base da civilização ocidental moderna."


Rodolfo Souza ao lado de Valdemar A., uma das lideranças do circulo interno da Austral, no II Encontro Nacional Evoliano, com eventos em Curitiba, em 2011

O grupo era heterogêneo, formado por membros da Bahia, Paraíba, Goiás, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul etc., e alguns de seus membros tinha interesse vívido em neopaganismo. Estavam fora do radar e da rede de contatos dos principais partícipes dos debates na Olavo de Carvalho do B, embora alguns de seus membros acompanhassem o fórum também. A iniciativa era autônoma, e segundo Labrego, teve a ideia de criar eventos Evolianos na mesma época que Dídimo Matos: "Foi realmente uma coincidência - positiva, ao meu ver, pois deixou a cena mais plural e nacional. O Evoliano foi em Curitiba basicamente por questões logísticas e financeiras. Curitiba era o lugar mais próximo para o maior número de pessoas que queriam participar (todas concentradas, em sua maioria, no sul e sudeste). Curitiba era o meio do caminho. Nós éramos amigos ou mantínhamos contato com praticamente todos os participantes e palestrantes, simplesmente convidamos o pessoal por mensagem."

 Depois dos eventos de 2011, criaram uma Editora que foi responsável por publicações que difundiriam ainda mais o pensamento dissidente. Doravante, o grupo ficou conhecido por Austral, nome da própria Editora, nome que fazia menção às relações internacionais Sul-Sul. "Os fundadores eram eu, o Maurício, Valdemar, Lucas, Thiago, Leonardo, Sérgio, Fernando, Wagner e Machado. A maior parte do tempo nos reuníamos só pela Internet, mas periodicamente nos encontrávamos para dar o famoso rolê - éramos jovens e tudo isso era desculpa para sair em outras cidades atrás de rabo de saia (risos)", acrescenta João Labrego. O empreendimento era bastante amador e voluntarista, segundo Maurício:


“Meu primeiro contato com temas dissidentes e com pessoas que depois iriam se tornar militantes da dissidência foi em 2008, 2009, com comunidades do Orkut. Comunidades sobre política, sobre esoterismo, sobre religião...Em 2009 ou 2010 me juntei a um grupo que era do Wagner, do “Labrego”, do Valdemar, do S. G. e do Machado. Criamos um círculo e começamos a estudar Evola, Dugin, entre outros autores. Isso em 2009, 2010. Daí foi realizado o primeiro Encontro Evoliano [Nota: ele se refere ao I Evoliano de Curitiba e ao II Nacional] em uma chácara , que teve a participação do Ghio, do Mateus Soares de Azevedo, do Rodolfo. Eu fui um dos organizadores desse encontro. Depois foi fundada a Editora Austral. As primeiras traduções do Dugin, uma do Evola também. E do Benoist e do Buela, né? [...] as pessoas que estavam mais engajadas em entrar em contato com os intelectuais, essa parte de relações públicas, eram o Raphael Machado e o João Labrego. Eram eles que fizeram contato com o Ghio. Eram eles que conversavam com o Dugin, e com o Buela também. Com o Benoist, eu lembro que o Sergio e o João Labrego encontraram o Benoist pessoalmente em uma universidade em Minas Gerais. Ele veio dar uma palestra e eles encontraram. Foi daí que eles pediram autorização. Mas enfim, essa parte de relações públicas era principalmente com o Labrego e o Machado. Os livros eram traduzidos de maneira muito, muito amadora...Assim, tudo era decidido em cima da hora. Geralmente se dividia um capítulo pra cada pessoa. Aconteceu assim no livro do Buela, e aconteceu assim na Quarta Teoria Política também. E no primeiro Geopolítica do Mundo Multipolar, eu não lembro, mas nesses livros aí era geralmente uma pessoa por capítulo. Lembro que o Valdemar traduziu sozinho o Imperialismo Pagão, e o Além dos Direitos Humanos eu não lembro quem traduziu. Mas tivemos aí uns três ou quatro livros que foi uma pessoa cada capítulo. No livro de Buela, fui eu quem revisei. Eu fiz toda revisão do livro. Então eu mudei muita coisa, padronizei termos, né? Nesse sentido aí eu consegui melhorar um pouco, dentro dessa perspectiva aí de amadorismo, né? (risos) Mas...até por isso deu muitos erros, né? O fato de traduzir uma pessoa cada capítulo, tinha uns erros bizarros, nas primeiras edições dos livros do Dugin principalmente, né?”

 

Lançamentos da Editora Austral nos eventos de Curitiba do III Encontro Nacional Evoliano, incluindo A Quarta Teoria Política, uma tradução feita às pressas

O amadorismo nas traduções não era característica somente da Austral, embora talvez fosse mais acentuado nela. Mais estranha era a possível tentativa de lançar A Quarta Teoria Política antes da iniciativa de Dídimo Matos, em 2012. Segundo Uriel Araujo, houve uma “sabotagem” intencional: “Dídimo tinha me convidado pra começar a traduzir A Quarta Teoria Política do inglês para o português. Eu comecei a tradução, tenho guardado até hoje mais da metade traduzido. Mas aí, ele mandou cancelar porque já tinha saído outra primeiro, que foi aquela tradução da Editora Austral, que foi meio pra sabotar, pra sair primeiro, né?” 

Dídimo não percebeu má fé no empreendimento “paralelo”: “Quando eu comecei a tradução, eles já tinham começado, só que a gente acabou não falando sobre isso. Então, quando eu falei com Raphael, ele disse, ‘’não, nós já estamos lançando”. Mas não teve briga nenhuma, não. Normal. E aí, uma parte da tradução até mandei pra Portugal, acho que o Flávio fez umas adaptações. Mas eu não lembro se ele chegou a lançar em Portugal. Ele lançou o Teoria do Mundo Multipolar. E a gente lançou aqui o Geopolítica do Mundo Multipolar. E depois eu lancei o Geopolítica da Rússia Contemporânea.” Mas Maurício Oltramari concorda que o objetivo era "passar para trás" o lançamento de Dídimo e Uriel: "Sim, foi intencional, Machado falou explicitamente que era para sair antes. Por isso a tradução saiu tão ruim, às pressas." [3]

Seja como for, o Grupo [da] Austral teve um caminho típico na Dissidência Tradicionalista. Jovens estudantes de esoterismo e Tradicionalismo na Internet, que se envolvem com eventos de teor acadêmico e intelectual, e traduzem e publicam livros. A Legio Voluntas Invicta tampouco surgiu de “confrontos na rua”, gangues e combates corporais contra forças do consenso. Eram jovens estudiosos com uma atividade muito mais, digamos, “brâmane”, do que gostariam de pintar a propaganda “antifa” [antifascista] ou mesmo alguns dissidentes atuais ligados à memória afetiva do grupo.

Em 2012, o Austral estava no ápice de seu dinamismo. Conta Oltramari que “era uma dinâmica de círculo interno e círculo externo. O interno era eu, o Labrego, o Wagner Correa, o S. G., o Valdemar, o Machado. E o F.F. era do círculo interno. Desde o começo era do Legio. Mas ele era mais afastado. Era a pessoa que menos comparecia pessoalmente aos eventos, nas nossas reuniões. [....] O círculo externo tinha entre dez e quinze pessoas.” Foi quando o jovem curitibano Daniel Sender, que participou dos eventos de Curitiba do II Evoliano, recebeu convite para fazer parte do círculo mais restrito. Já era bastante ligado ao grupo e, segundo Labrego, um dos principais organizadores do Encontro de 2011 em Curitiba. Sem saber, terminou como epicentro de uma briga que culminou com a primeira e única expulsão da curta e rica história da Austral.

 

A Frente Popular Austral foi um projeto muito pequeno, mas que atraiu separatistas sulistas de tons mais fascistas [na terminologia de Dugin] para a Nova Resistência


8.2 A expulsão de Raphael Machado, o Manifesto “Pan-gauchista” e a Frente Popular Austral

 

Daniel Sender e Raphael Machado se indispuseram por conta de uma disputa afetiva cujos detalhes não importam. O fato é que Machado tentou não só bloquear a entrada de Sender na Legio como também relegá-lo ao ostracismo, exigindo que todos cortassem contato com o agora adversário, a quem acusava de ser um traidor e agente de desestabilização. Conta Oltramari:

O Machado baixou uma circular pra todo mundo excluir e cortar o contato com o Sender, criando toda essa narrativa aí, que o Sender estava ali pra desestabilizar, que era um mentiroso. [...] Mas aí não funcionou a narrativa, né? O grupo acabou se voltando contra o Machado, porque o pessoal gostava do Sender. Foram conversar com o Sender e tudo. O pessoal não viu motivo pra excluir o Sender a não ser rusga pessoal. O Labrego e o Wagner Correa não aceitaram a expulsão do Sender, e foram se encontrar com ele pessoalmente. E daí ele contou toda essa treta aí. E daí combinaram com todo mundo e confrontaram o Machado. [...] O Machado foi expulso da Austral, na verdade.

 

Atraído pela perspectiva separatista quarto-teórica, exposta por Machado em 2013 e 2014, grupos separatistas sulistas se vincularam à NR e foram colocados no comando da célula do Rio Grande do Sul, sob liderança de Carlos Guntzel até início de 2019. Só deixariam o grupo em meados de 2020, depois de vários problemas, fundando a Resistência Sulista, que parece dar continuidade às principais ideias da FPA

Labrego acrescenta alguns detalhes: "O Daniel era uma pessoa gente fina, trabalhadora, gentil. Ele se afastou de nós por conta do Raphael, que criou uma intriga com ele. No fim do 2012, nós nos afastamos do Machado. Ele foi expulso, na verdade. Por conta da personalidade dele, dos radicalismos e outras divergências, pois éramos todos latino-americanistas e pró "terceiro mundo", e o papo evoliano tinha saturado para nós". João Labrego também denuncia uma "sabotagem" de Machado em sua saída do grupo: "Depois que isso aconteceu, ele pegou todos os PDFs da Editora Austral e mandou gratuitamente para os nossos clientes da lista de espera - eram cerca de 100 e-mails. Levamos um prejuízo de quase 10 mil reais por causa disso, pois ninguém quis comprar os livros com os PDFs em mãos.  A partir de então, ele ficou excluído dos nossos contatos e do que fazíamos, e passou a nos difamar pela Internet apesar de nunca termos falado mal dele por aí."

Seja como for, o caso teve consequências relevantes para nossa História. Fora da Austral, Raphael se concentrou no blog Legio Victrix, projeto conjunto do Legio Voluntas Invicta, criado em agosto de 2010, e que sob a condução de Machado tornou gradualmente em meio de divulgação de obras dissidentes, principalmente aquelas mais vinculadas ao fascismo [segundo a terminologia de Dugin] e ao Nacional-Bolchevismo. O blog ainda era bastante marginal, mas sua repercussão em certos meios cresceu depois de 2014. Do mesmo modo que as consequências do pequeníssimo grupo Frente Popular Austral [FPA], ao qual Machado se dedicou a partir de então.

O movimento fazia uma aplicação possível da Quarta Teoria Política: O Brasil era considerado uma nação, uma construção artificial a ser superada. Daí se partia para a defesa da secessão da Região Sul e a luta por um “grande espaço pan-gaúcho”. A FPA permaneceu minúscula, mas mesmo depois de abandonada atraiu separatistas sulistas de matizes fascistas [na terminologia duginiana] que mais tarde formaram uma ala razoavelmente forte dentro da Nova Resistência. Esta ala sairia da NR em 2020, frustrada com os rumos mais nacionalistas do movimento, acusando-o de influenciado por getulistas, e de trair as convicções pretéritas do próprio Raphael Machado. Eles deram origem à Resistência Sulista, que traz em sua constituição uma leitura da Quarta Teoria Política similar à da FPA. Falarei mais sobre isto quando for o momento, já que acompanhei esta pendenga em primeira mão e estive no "olho do furacão" deste embate. Oltramari descreve a FPA desse modo:

 

 

“Era pretensamente quarto-teórica ou um ensaio de pensamento quarto-teórico, mas na prática era separatista. Raphael Machado escreveu um manifesto desse movimento, é o Manifesto do Pan-gauchismo, defendendo a união de todos os povos platinos numa grande nação ou Império, ou algo assim. [...] Era uma organização abertamente anti-brasileira no mesmo sentido que a Resistência Sulista. Aliás, foi esse manifesto uma das coisas que atraiu Guntzel para perto de Raphael Machado pra começo de conversa. A Resistência Sulista é a continuadora desse “projeto” idealizado na FPA e pelo manifesto do Pan-gauchismo.

 

Dugin compartilha postagem da separatista Resistência Sulista, em agosto de 2020. O líder desta organização foi líder de célula da NR e tinha contato direto com o russo


O Manifesto não poderia ser mais claro em sua união de separatismo “gauchista” e Quarta Teoria Política, mais interessante ainda porque escrito por um carioca que vivia na Baixada Fluminense [Raphael Machado morava em São João de Meriti até 2021]:

 

Companheiros do Sul do Brasil, do Brasil Cisplatino, resgatai a memória de vossa liberdade primordial, estranha e distante do imperialismo brasileiro. Mergulhai em seu ser e resgatareis a consciência da nossa realidade enquanto verdadeira Nação, construída por gaúchos e colonos, absolutamente singular e distinta em relação ao Brasil, povoada por uma estirpe inteligente, valente e disciplinada, dotada de um imenso potencial produtivo, rica em recursos naturais e terras férteis, capaz de fazer emergir um Império que será o farol dos povos livres do Hemisfério Sul. Companheiros nacionais das províncias do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul! Por tempo demais fostes subjugados pela corrupta oligarquia brasileira. Por tempo demais aceitamos essa sujeição a uma potência estrangeira e inimiga. Nós, sucessores dos revolucionários farroupilhas, dos cruzados sebastianistas do Contestado, dos maragatos, e outros mil exemplos históricos de bravura e irredentismo, os convocamos à luta contra esse imperialismo, que saqueia nossa riqueza, invade nossas terras e corrompe nosso povo. [...] Nós, a vanguarda revolucionária dos povos livres do Brasil Cisplatino, afirmamos com a máxima veemência e gravidade como nosso objetivo primário, fundamental e não negociável, a libertação dos estados sulistas do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul de qualquer tipo de controle, ingerência, administração ou supervisão da República Federativa do Brasil, para que seja estabelecido, conforme os anseios de milhões de companheiros ao longo dos séculos, uma Nação completamente independente, para garantir a existência de nosso Povo, preservar sua cultura e tradições, e construir para si um futuro glorioso. [...] Nós sabemos, porém, que ainda que o Brasil Cisplatino seja infinitamente rico em recursos, naturais e humanos, Nação alguma pode se manter sozinha no ambiente hostil que é o mundo unipolar controlado pelos Estados Unidos da América, Israel e seus aliados. [...] Somos nacionalistas, sem dúvidas. Mas há que ir além do nacionalismo, ultrapassá-lo, para afirmar um princípio superior que unifique nações distintas, porém irmãs, sob um mesmo caminho civilizatório. Assim, a vanguarda revolucionária afirma a necessidade vital de aproximar nossa Pátria Gaúcha e Austral das duas outras Nações austrais do continente, a República Oriental do Uruguai e a República da Argentina, até que seja concretizada a unificação entre essas augustas nações, que será o marco do surgimento de uma verdadeira Civilização Austral.

  

O projeto é bastante similar, de fato, ao da atual Resistência Sulista:

 

“Separatismo não está em desacordo com a mentalidade quarto-teórica, pois autonomia territorial de uma comunidade ligada por aspectos culturais e históricos é a manifestação do ser-aí-no-mundo de Martin Heidegger e adaptado à geopolítica pelo filósofo russo Aleksandr Dugin e pelo filósofo alemão Carl Schmitt. E essa possibilidade de vivenciar a cultura em um espaço demarcado seja grande ou pequeno é uma condição natural do ser humano.[...] Frente a isso é possível o surgimento de várias alternativas de independentismos sem os fervores enraizados na mentalidade liberal. E isso, não é desacreditar da ideia de um grande espaço, sabendo que o patriotismo regional não é e nem deve ser isolacionista. Por isso, lutamos pela consolidação de várias grandes confederações de Estados autônomos. Em nosso continente sul-americano uma união pan-gaúcha, sulista e Ibero-americana.”

 

Não pode restar dúvida que o próprio Dugin considerava este projeto legítimo dentro de uma perspectiva da Quarta Teoria Política, pois compartilhava, pelo menos até o fim de 2020, postagens do grupo que saiu da NR e fundou a Resistência Sulista.[4] Seja como for, os ecos principais da FPA se dariam mais tarde, quando muitos separatistas formariam ala dentro da NR. Em 2013 e 2014, estavam bastante isolados, e o Grupo Austral e os Evolianos seguiram seu curso.

 

Videoconferência de Leonid Savin durante a Conferência Ibero-Americana de 2013. O evento deixou de usar o epíteto "evoliano", flagrando uma mudança de orientação no Grupo Austral

8.3 A Conferência Ibero-Americana e o fim do Austral

O Grupo Austral esteve por trás de um dos maiores eventos dissidentes da Era dos Evolianos, embora já não se vinculasse mais ao "evolianismo". Segundo João Labrego, "Existia em nós um denominador comum de que deveríamos nos preocupar com questões ibero-americanas/latino-americanas/terceiro-mundistas e não com movimentos europeus. Também queríamos nos afastar do Evolianismo, pois aquilo não nos dizia nada. Muitos colegas, na época, voltaram para as Igrejas em que foram batizados e um deles, inclusive, se converteu ao judaísmo e hoje é tenente no exército israelense. [...] Não nos interessava mais aquelas interpretações religiosas e filosóficas do Perenialismo." 



A Conferência Ibero-Americana de 2013 já flagrava uma maior preocupação com temas do continente. Aos poucos, as principais lideranças da Austral deixaram o Tradicionalismo de lado.


A Conferência Ibero-americana, organizada em novembro de 2013 por Maurício Oltramari e João Labrego, dentre outros, atraiu dezenas de pessoas, e contou com a participação de intelectuais como Leonid Savin [por videoconferência] e Alberto Buela Lamas, que teve um de seus livros lançado na ocasião, ao lado de mais uma obra de Dugin e de Benoist. Ironicamente, o auge foi também o princípio do fim. O grupo começou a se esvanecer lentamente, deixado de lado por alguns de seus principais membros. As razões podem surpreender aqueles menos envolvidos com o Tradicionalismo. Conta Oltramari:

Porque o João Labrego, o Valdemar e o Sérgio se tornaram católicos, né? E aí eles e afastaram do Dugin, se afastaram do Evola. Do Benoist. Se afastaram de vários autores. [...] A Editora foi morrendo aos poucos. Quando esse pessoal se converteu para o catolicismo, eles começaram a se afastar do paganismo em geral. Qualquer coisa envolvendo paganismo eles começaram a se afastar. E a Editora começou a ficar menos ativa. Só vendia os livros que ainda tinha. Não tinha mais nenhuma programação de livros pra traduzir. [...]Mas com certeza foi isso. O pessoal católico não tinha mais interesse em continuar porque já era uma Editora muito relacionada com essas ideias do paganismo."




Cartazes do IV Encontro Nacional Evoliano, organizado na Paraíba, em setembro de 2013. Os eventos estavam próximos de seu ápice




Como indiquei na Parte IV, a ligação com o Tradicionalismo tem como uma de suas consequências possíveis, e para alguns até desejável, o afastamento do próprio Tradicionalismo, que passa a ser lido pela ótica da via espiritual que o estudante passa a trilhar. A maioria dos integrantes da Legio Voluntas Invicta encontrou uma resposta no catolicismo; e a partir desta ótica, a interpretação que deram ao Tradicionalismo vigente na Editora era de que se tratava um erro puro e simples. Entre 2013 e 2014, os principais líderes da Austral passaram por uma transformação na forma de perceber a espiritualidade. E é compreensível que católico-romanos tenham certa prudência com autores que consideram o cristianismo medieval como a raiz da “decadência moderna” [como Alain de Benoist] ou que defendam a inocuidade da Igreja Católica para uma restauração Tradicional, como é o caso do Julius Evola de Imperialismo Pagão, um livro lançado pela Austral e traduzido por Valdemar A. F.F, por exemplo, que se converteu a uma igreja evangélica, me disse que abandonou toda e qualquer militância política: “Foi uma fase da adolescência, mas já faz cerca de 10 anos que abandonei.” João Labrego também vê na conversão um fator importante para o fim do círculo: "Muitos casaram, tiveram filhos, foram viver vidas comuns e simplesmente abandonaram isso.  Hoje em dia eu vejo o Perenialismo de uma forma negativa, não no sentido de combater, mas de enxergar no Tradicionalismo diversas falhas, lacunas,  muita heterodoxia de burgueses ocidentais entediados. Não acho que seja uma coisa séria espiritualmente e filosoficamente falando.

Labrego vai além em sua crítica, para ele o Tradicionalismo proporciona sim uma linguagem de contato entre os serviços secretos de diversos países. E levanta questões sobre os vínculos em torno de James Porrazzo, um contato de Raphael Machado que mais tarde geraria um série de problemas para a Nova Resistência: "Politicamente, o Tradicionalismo foi e é muito importante como um ambiente de diálogo entre serviços secretos de diversos países (risos) , o Bannon e o Olavo de Carvalho estão aí como provas: o tradicionalismo lido pelo Olavo foi usado para minar as bases civilizacionais do Brasil, com muita ajuda do departamento de Estado americano (talvez, daqui uns 70 anos teremos acesso a esses documentos). [...]O Raphael ficou isolado e nunca mais tivemos contato com ele; entretanto, anos depois ficamos sabendo que ele tinha se aliado a alguns yankees e fundado a New Resistance brasileira [5]".


O IV Nacional foi realizado com parcerias com pelo menos três países diferentes. E já existiam contatos para a participação da UVERSITA na edição seguinte, que seria em São Paulo



Enfim, com o afastamento das demais lideranças, Maurício Oltramari quase ficou com o controle da Austral: “Em um dado momento, o Valdemar falou pra mim que se eu quisesse eu poderia continuar com a Editora. Porque eu era o único que não se converteu para o catolicismo (risos). Ele falou que eu poderia continuar, me enviou todos os arquivos, me enviou tudo. E foi isso. Esse foi o fim, não houve uma declaração oficial nem nada. Inclusive, muita gente continuou perguntando muito tempo depois se tinha livros, se ia ter novos lançamentos, como é que estavam as atividades. Porque não houve uma declaração oficial de término das atividades.” Maurício preferiu, no entanto, permanecer distanciado da cena por um tempo, como simpatizante de alguns movimentos que estavam nascendo. Voltaremos a esse gigante mais tarde.

 

8.4 O IV Encontro Evoliano e a atividade editorial da Era dos Evolianos


A briga não abalou a marcha dos Encontros Evolianos, que permaneceram sob a batuta de Dídimo Matos: “Este contato entre os diversos grupos que estudavam Evola sempre foi mais um contato de pessoas que de grupos. Quando se formaram os grupos, meio que as pessoas romperam; assim, houve certas dissidências. Eu me afastei do pessoal do sul, e as pessoas do sul se afastaram umas das outras. Brigas entre personalidades distintas. Então, aquele grupo inicial da Austral, que me ajudou no Evoliano no sul, esse pessoal meio que se separou, né? Tinha o Valdemar da Paraíba, o Raphael Machado que era do Rio de Janeiro, dentre outros. [...] Houve  ali alguns rompimentos, probleminhas. Mas eu estava distante disso, as pessoas rompiam mas todo mundo continuou conversando comigo sem nenhum problema, elaborando novas coisas, conversando sobre atividades novas etc.”


De óculos e de barba, o já citado professor Carlos Bezerra Jr.; ao lado, Marcílio Diniz, professor da IFPB e Mestre em Filosofia Antiga; Dídimo Matos está ao lado de Rafael Aires, professor de Sociologia em Pernambuco que tinha vínculos com o grupo italiano CasaPound; por último, o espanhol Daniel Vázquez, que escreveu na Revista de Geopolítica da UFRN

O IV Nacional aconteceu em setembro de 2013, na Paraíba, já sob impacto das imensas manifestações que tomaram conta do país a partir de julho, e que levariam a um novo capítulo na História política brasileira. O mundo também se agitava, e a Dissidência Tradicionalista não ficou alheia a estes acontecimentos. Pelo contrário, eles não só impactaram a “velha guarda” do movimento como criaram uma nova geração de dissidentes que veria oportunidade de espalhar seu discurso em meio aos rasgos surgidos na tessitura do “sistema”. Mas é um tema mais para frente.


A época foi marcada por um grande esforço de tradução e publicação. Acima, lançamento de "Eurasianismo. Ensaios Selecionados", de cuja tradução participei


O Encontro de 2013 foi apresentado como empreendimento conjunto do Centro de Estudos Conservadores da Universidade Estatal de Moscou e do Instituto Millenivm, ambos representados no Brasil pelo Cristão Gibelino. Contou com a participação dos professores Ricardo Silvestre, Edu Albuquerque e Carlos Bezerra; além do geopolítico espanhol Daniel Day Vásquez, que escrevia para a Revista de Geopolítica da UFRN; do professor da IFPB Marcílio Diniz, especialista em druidismo ibérico; o professor de Sociologia Rafael Aires, com ligações com a CasaPound [6]; dentre outros. Assim como nas demais Evolianos, o evento foi ocasião de lançamento de livros, desta vez do geopolítico português Luís Mira Pereira, intitulado O que esperar da Europa? 


Propaganda do Encontro de 2013 e palestra no evento. A Era estava atingindo o cume de sua influência e sofisticação.

E assim dava continuidade a uma intensa atividade de tradução e publicação de obras que se iniciou com os lançamentos no I Evoliano, em 2010, e se estendeu por anos, e da qual a própria Editora Austral foi um dos frutos indiretos. "A gente conseguiu fazer publicações de livros do Dugin no Brasil de maneira independente, tanto pela Editora Austral quanto ações independentes minhas na Paraíba. Conseguimos também editar outros livros do Evola. [...] Teve contato com o Flávio Gonçalves, que era de Portugal. A gente, inclusive, fez uma revista internacional de Geopolítica. Ele lançou lá livro do Dugin...a gente fez o trabalho de tradução de livros que foram lançados simultaneamente aqui e lá, dentre outras coisas."

O Grupo Austral se dissolveu, mas a Era dos Evolianos levantava voo para sua jornada mais famosa, o Encontro unificado em São Paulo, em 2014. Muitos militantes de movimentos dissidentes surgidos nos anos posteriores citam este evento como um dos marcos fundamentais de sua atuação política. Para preparar o terreno, temos de nos debruçar antes sobre dois temas: as atividades na Internet que continuaram fortes no período, e a tendência marxista e socialista que começava a tomar conta da Dissidência. Vou quebrar alguns mitos sobre este campo político na próxima Parte.


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[1] Referência à prática de alguns grupos espíritas de estudos religiosos em casa na noite de sábado.

[2] Maurício se refere ao falecido filósofo alemão de origem judia que estudou os fenômenos da Gnose, ou Gnosticismo, no mundo antigo, identificando neles determinada unidade: a gnoseologia é também uma soteriologia, e há uma distinção e até separação entre o mundo físico e Deus.

[3] A título de curiosidade: fui chamado para participar da tradução d'A Quarta Teoria Política, em 2012. Eu não tinha qualquer informação sobre a tradução organizada por Dídimo. No entanto, envolto em questões pessoais que mencionei na postagem anterior, não entreguei os capítulos.

[4] Como expliquei alhures, Dugin pretende a superação do Estado-Nacional pela construção de um aparato 'imperial' por 'cima', e pela desconstrução das identidades nacionais.

[5] Referência à Nova Resistência, que usou muitas vezes o epíteto de "Nova Resistência BR". Cabe ressaltar que nos tempos em que fiz parte desta organização, entre 2017 e 2022, Raphael Machado sempre sublinhou a independência administrativa e ideológica do grupo em relação a qualquer outra homônima, e frisava que Porrazzo era só um contato internacional dentre tantos outros. Mas é verdade também que ele sempre evitou romper definitivamente com o norte-americano ou mudar os símbolos e cores que a vinculavam à organização ianque, mesmo sob pressão de integrantes do grupo de estratégia do movimento.

[6] Grupo italiano de tons "nacional-bolcheviques".