A posição dispensa maiores comentários, assim como a de goleiro e de zagueiro, é uma das mais antigas e comuns do futebol. O centroavante é não só o atacante mais avançado do time, mas prioritariamente um homem de área. Costuma jogar de costas para os zagueiros, ou no meio deles, infiltrado ou espetado, e se posicionando para o último toque na bola, aquele que vai concretizar o gol. Vamos aos maiores exemplos da posição na história d’O Mais Querido.
Começamos com o atleta mais importante do futebol nacional depois de Pelé. O Rei dos Subúrbios quebrou as barreiras raciais que resistiam na Seleção Brasileira, destruiu a farsa do pseudo-amadorismo, reinventou as identidades dos clubes [não mais em torno dos sócios ou dos bairros, mas de massas de torcedores urbanos que se vinculavam às equipes em torno de um imaginário], pioneiro no marketing esportivo, consolidou a ideia de uma ''escola brasileira'' de futebol, tornou o escrete uma atração internacional capaz de disputar títulos de Copa do Mundo, foi o maior jogador da Copa de 1938, o primeiro artilheiro brasileiro em um Mundial da FIFA, e ainda um dos responsáveis pela Copa do Mundo ter sido disputada no Brasil em 1950. Para completar, o Flamengo que conhecemos, ''O Mais Querido do Brasil", o time do nacionalismo popular, do asfalto e do morro, surge com Leônidas. Ele era em campo o que José Bastos Padilha foi na administração do clube, e Mário Filho, Ary Barroso e José Lins do Rêgo foram na mídia. Leônidas é o marco inaugural da criação do que entendemos por Flamengo.
1) LEÔNIDAS DA SILVA, O “DIAMANTE NEGRO”, O “HOMEM BORRACHA”, O “REI DA BICICLETA”, O “REI DO SUBÚRBIO” [1936/42]
“Esse homem de borracha, na terra ou no ar, possui o dom diabólico de controlar a bola em qualquer lugar, desferindo chutes violentos quando menos se espera. Nessa posição de fera atingida, vi Leônidas executar uma série de tesouras com as pernas, aproveitando um centro e golpeando a bola de costas para o gol. Quando Leônidas faz um gol, pensa-se estar sonhando. Esfregam-se os olhos. Leônidas é a magia negra!”
Jornalista Raymond Thourmagen, da revista “Paris Match”, comentando jogo da seleção brasileira na Copa de 1938
Leônidas é uma das grandes lendas do esporte brasileiro, que deve constar obrigatoriamente em qualquer top 10 de maiores jogadores. Se quisermos um dia ‘fulanizar’ a popularização definitiva e a profissionalização do futebol no país, se quisermos lhe dar um nome, um rosto, uma encarnação pessoal, será a desse carioca com fama de malandro, de conquistador e que 'matava a pau' nos subúrbios da capital.
Não se trata apenas de um gênio quase incomparável com as bolas nos pés, capaz de convencer definitivamente Mário Filho e outros jornalistas que havia no brasileiro um estilo próprio, todo seu, de tratar a bola, uma “escola”. Em torno dele se encontraram diversos debates que modelariam o esporte no Brasil nas décadas seguintes.
O primeiro era a “cor”. Leônidas era mulato em um tempo em que havia forte resistência para que jogadores não brancos representassem a seleção brasileira. O público elitista do país ficou muito impressionado quando percebeu, ainda nos anos 1910, que a então poderosa seleção uruguaia tinha um preto como um de seus ídolos: Isabelino Gradín, que de tão bom foi disputado pelos portenhos, defendendo também a seleção albiceleste nos anos 1920.
No Brasil não era assim. É verdade que a maior parte dos ‘grandes clubes’ – ou seja, dos clubes de elite – aceitou a presença negra durante os anos 1920. Mas a seleção ainda era uma grande barreira. Leônidas, considerado espetacular desde adolescente, foi um dos principais títeres usados para derrubar essa última fortaleza. Em 1932, com apenas 19 anos de idade, já estreava pelo Brasil contra o Uruguai [uma seleção mais forte do que a nossa até o início dos anos 1940], destruindo com o jogo e levando o escrete à vitória.
Foi dele também o único gol que um Brasil mutilado por disputas entre dirigentes [os paulistas se recusaram a liberar jogadores para a Copa, e ocorria também um grande embate em torno do profissionalismo, como mencionarei mais à frente] marcou na Copa de 1934, que consagrou um jogador preto também – e que seria companheiro de Leônidas no Flamengo pouco tempo depois --, Fausto, a “Maravilha Negra”.
Podemos dizer sem medo de errar que o futebol brasileiro floresceu para o mundo na Copa seguinte, na França. Uma equipe liderada por mestiços mostrou pela primeira vez que o país tinha “bola no pé”. Leônidas foi o grande destaque do Mundial, do qual saiu como artilheiro e fenômeno. Sua habilidade, qualidade técnica, invenções de dribles e improvisos maravilharam os europeus.
Vem daí sua fama como Rei ou Inventor da Bicicleta, uma jogada que poucos conheciam no Brasil e ninguém tinha ouvido falar no Velho Mundo. Leônidas não foi o verdadeiro criador da acrobacia, mas sem dúvida foi seu principal divulgador. Tão surpreendente ela parecia aos olhos do público, que o juiz da Copa do Mundo anulou o gol de bicicleta do astro brasileiro em decisão repleta de polêmica. Ninguém sabia o que aquilo significava e nem mesmo se era desse planeta.
Tamanho o estupor causado pelo “Homem-Borracha”, como passou a ser conhecido, que o Presidente da FIFA, o imortal Jules Rimet – que deu nome à Taça de campeão do mundo conquistada definitivamente pelo Brasil em 1970 por ser o primeiro país tricampeão --, fez questão de assistir uma partida do Flamengo em 1939 em plena arquibancada do Estádio da Gávea, o atual Estádio José Bastos Padilha. O Brasil disputava com a Argentina o privilégio de sediar a Copa de 1942, que não aconteceu por causa da Guerra que explodiria ainda naquele ano. Mas o caminho para o Mundial de 1950 estava sedimentado naquele dia: O Flamengo goleou o Botafogo de 4 a 1, e o Homem-Borracha abriu o placar.
Mas Leônidas não rompeu apenas a barreira para mestiços e pretos na seleção brasileira. Também foi crucial na resolução de outro embate da época, que polarizava a várzea e as ligas oficiais, o amadorismo ao profissionalismo, o subúrbio à zona sul, e abria questões sobre a identidade profunda do futebol e de suas equipes. Mais do que preconceito racial, existia convicção nos ‘grandes clubes’ que o futebol deveria ser o espaço de uma elite social ‘europeizada’. Os filhos da fina flor das oligarquias brasileiras não queriam conviver com operários nos mesmos gramados e vestiários. Analfabetos eram proibidos de jogar para que se mantivesse o espaço de exclusivismo elitista.
A mesma lógica dominava a discussão sobre amadorismo e profissionalização. Para além da dedicação ao clube “por amor”, havia também a tentativa de afastar dos campeonatos os que dependiam de salário para viver, e que portanto não poderiam praticar o futebol sem remuneração. O povão, que já acompanhava em massa as partidas do esporte bretão desde os fins dos anos 1910, deveria ficar ao redor dos campos, não dentro deles. Era no máximo espectador. Ou então, que se contentassem em acompanhar os campeonatos das ligas “não oficiais”, aquelas dos clubes dos subúrbios, os torneios de várzea e favelas.
E antes de ser o Homem Borracha, Leônidas foi o “Rei do Subúrbio”. Começou a deslumbrar as massas atuando no São Cristóvão e em torneios de várzea. Fez parte de uma geração que desmoralizou o discurso dos dirigentes esportivos sobre o amadorismo. Pois eles próprios buscavam jogadores pobres para fortalecer suas equipes, disfarçando as proibidas remunerações na forma de presentes e jóias, quando não 'empregos pra inglês ver'.
A hipocrisia em torno do “falso amadorismo” existia por causa de uma ampla discussão sobre o que os clubes deveriam ser. Os times nasceram para representar os sócios das agremiações, que se ‘grandes’ eram formados por membros destacados do topo da pirâmide social. Mas na medida em que as rivalidades se formavam, e que os clubes criavam uma força nova, as assim chamadas “torcidas” – que não eram modeladas mais por vínculos associativos nem pela vizinhança dos bairros, mas outros traços de identificação --, esse panorama se via à beira de uma radical transformação.
Profissionalizar o futebol era admitir que o time em campo era a cara não dos sócios, mas dos torcedores. O que implicava uma releitura da identidade dos clubes, no modo como se viam e eram vistos, naquilo que representavam.
A geração de Leônidas solucionou de vez esse imbróglio. Os clubes perceberam que não havia como lutar contra os tempos sem eles próprios sumirem do mapa. Os atletas, inclusive, começaram a se transferir para os países vizinhos, atrás de salários. E assim, o “Rei do Subúrbio”, que já saíra do São Cristóvão para atuar primeiro no Syrio e Libanês, e depois no Bonsucesso, virou ídolo do Peñarol com apenas 20 anos de idade. Os brasileiros não poderiam permitir tamanha sangria, e os salários se tornaram inevitáveis. O futebol mudaria para sempre. Entrou no circuito do mercado, mas agora se criava também, e sem volta, uma identificação com as massas.
Claro que a profissionalização não significava então aquilo que dela depreendemos hoje. Ninguém queria ter fama de “mercenário”, de “jogar apenas por dinheiro”. Isso era inadmissível pelas próprias massas, não apenas pelos sócios e dirigentes de cada clube. Foi assim, inclusive, que Leônidas chegou ao Flamengo. Carlito Rocha, presidente do Botafogo, clube em que o Rei do Subúrbio atuava em 1935, não se conformou quando soube que o jogador se declarou flamengo em uma entrevista no Rio Grande do Sul. Leônidas confirmou as palavras quando já no Rio de Janeiro. Carlito colocou o jogador à venda por não poder admitir, segundo suas próprias palavras, “que debaixo da camisa alvinegra batesse um coração rubro-negro”.
Mas a mercantilização já estava dada, ainda que no princípio. Leônidas foi pioneiro no marketing esportivo. Não apenas no projeto de José Bastos Padilha, que mencionarei daqui a pouco. Mas também das empresas. Se tornou garoto propaganda de cigarros, de bebidas, de chocolates [O famoso “Diamante Negro”, da Lacta]. Ele vendia não só ingressos mas diversos outros produtos.
E que personalidade era essa que se tornaria representante das massas, ídolo das torcidas, e a nova cara dos clubes que defendia e também da seleção do país? Leônidas encarnava um ideia de mulato e de negro que, ao mesmo tempo que atraía a imaginação da elite, causava repulsa em grande parte de seus membros. Domingos da Guia era a figura de um pai de família e trabalhador; Fausto era a figura do contestador, que batalhava por seus direitos. Mas Leônidas era o malandro provocador.
Era o sujeito que arriou as calças num jogo do Bonsucesso pra menosprezar a torcida que o provocava, uma atitude considerada incompatível com os “padrões civilizados” que se esperava de um sportman. Era também o namorador incorrigível, que fazia sucesso com moças de boas famílias quando começou a conviver no interior dos grandes clubes: o apelido “Diamante Negro” veio de uma acusação preconceituosa contra o craque. Diziam que Leônidas roubou a jóia de uma amante, o que faria dele, implicitamente, nada mais que um “preto ladrão”, um “golpista”. E se as condições não o agradassem, o Homem Borracha simularia uma contusão para não jogar, diziam muitos.
Todos esses rios confluíram para tornar Leônidas da Silva a contratação mais importante da história do Flamengo. A mais importante até hoje, vejam bem. O clube da Gávea queria se tornar definitivamente popular naquela era de mudanças, em que o futebol e os times representariam agora as massas. As identidades clubísticas seriam reconstruídas em torno de símbolos e desejos das torcidas, não mais dos sócios.
O Presidente José Bastos Padilha aproveitou que a nova sede do clube era agora num bairro popular e afastado, a Gávea, construída ao lado de uma favela. O Flamengo não seria mais o clube elitista da antiga aristocracia que se espalhava pela Zona Sul. O clube foi vinculado ao nacionalismo e ao ‘povão’. Deveria ser o clube do povo brasileiro em sua feição mais popular. Daí a contratação de diversos jogadores amados pelas classes populares – quase todos mestiços e pretos --, como Fausto e Domingos da Guia, para repetir o sucesso feito pelo ponta Jarbas, a “Flecha Negra”.
Se o Flamengo se torna definitivamente O Mais Querido do Brasil é por causa desse grande plano arquitetado pelo gênio do marketing de José Bastos Padilha. E por jornalistas do porte de Mário Filho, fundador do mítico Jornal dos Sports e irmão de Nelson Rodrigues, do radialista Ary Barroso [astro da Rádio Nacional], do escritor José Lins do Rêgo [que escrevia para a nascente mídia esportiva], todos rubro-negros fanáticos. E por Leônidas da Silva, claro.
Sem o Diamante Negro, todos esses esforços teriam sido em vão. Sua popularidade apaixonante chegava às raias do absurdo. Quando o Flamengo rompeu o domínio do Fluminense e quebrou um jejum de doze anos sem título carioca, em 1939, a festa que se produziu na cidade foi inédita em sua natureza e dimensão. Nunca mais um troféu do clube da Gávea seria comemorado somente em salões e danças da elite. O Flamengo era o time do carnaval, da festa.
Não há muito o que dizer sobre a eficiência de Leônidas na área. Tem 38 gols em 38 partidas pela seleção brasileira, média de um por jogo, superior a de Pelé e a de qualquer outro [exceto Quarentinha]. No Flamengo, segundo as contagens mais recentes, sua média é maior ainda. São 153 em 149 partidas, média de 1.03, a mais espetacular entre os 50 maiores goleadores d’O Mais Querido. O Diamante Negro é ainda hoje o nosso oitavo maior artilheiro.
Ninguém exerce papel tão destacado e importante na conformação das paixões das massas e representações das elites de modo impune. A saída de Leônidas do Flamengo revela também o mar de ressentimentos que despertou. Ele não queria mais atuar lesionado do joelho só para que o clube aumentasse seus lucros com a bilheteria, como mais tarde aconteceria com Garrincha no Botafogo. Foi chamado de criador de caso, acusado de fazer ‘corpo mole’ e de ser um mercenário, óbvio.
Gustavo Carvalho, presidente do Flamengo, se tornou inimigo do ídolo, com quem vivia às turras. Até que surge a denúncia de fraude no certificado de reservista do Exército. O Diamante Negro, “preto malandro e golpista” para muitos da elite, passou oito meses na prisão em 1941. Já com 30 anos de idade, foi vendido ao São Paulo, então uma associação elitista e herdeira, em parte, do antigo Paulistano, por quatro vezes o valor que seus direitos federativos custaram ao Flamengo.
Saiu brigado da Gávea para um futebol que era então considerado menos competitivo – nos anos 1940, os paulistas tinham menos grana do que os clubes cariocas. Mas calou os críticos. Foi recebido de maneira apoteótica na capital paulista por uma multidão de 10 mil torcedores. E o clube tricolor ‘copiou’ o projeto do Flamengo, embora em dimensões menores, também se massificando com a presença do Diamante Negro. Enfileirou campeonatos estaduais e bilheteria. A estreia do Rei da Bicicleta no tricolor paulista é até hoje o maior público da historia do Pacaembu, com mais de 70 mil pagantes: estamos falando de 1943, quando a capital de São Paulo, embora já fosse a segunda maior cidade do país, tinha ainda cerca de 1,3 milhão de habitantes.
Leônidas havia tocado na veia em que corria livre o sangue da nacionalidade.
Ponteiros/Atacantes:
Meia-Atacantes:
Meia-Armadores:
Volantes: