sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O REINO DOS BOZÓS, OU: O QUE ESPERAR DO GOVERNO BOLSONARO? -- parte I: A crise da Nova República paulistocêntrica

Comunicação de André Luiz V.B.T. dos Reis, membro da Organização Popular -- Nova Resistência, em evento organizado com a Mobilização Islâmica, no Rio de Janeiro, dia 29 de novembro de 2018


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PARTE I - A CRISE DA NOVA REPÚBLICA ''PAULISTOCÊNTRICA''




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Caros camaradas,

Muitos de nós se surpreenderam com a maneira como o processo eleitoral desse ano se desenrolou. Há pouco mais de um ano, as possibilidades de Bolsonaro vencer o pleito não pareciam tão grandes. Não que àquela altura ele já não demonstrasse competitividade ou uma base eleitoral cada vez mais sólida. Mas existiam obstáculos até então considerados insuperáveis para o sucesso da candidatura de Bolsonaro ou de qualquer outro pretendente.

Por exemplo:

As expressões retóricas algo caricatas e em desacordo com os padrões de moralidade e costumes veiculados pela grande mídia; a predileção do sistema financeiro – aquele conjunto de agentes ao qual costumamos nos referir, de maneira um tanto impessoal, como “o mercado” --, a predileção do sistema financeiro, dizia eu, por outros candidatos, como era o caso do representante da direita centro-liberal Geraldo Alckmin, partido preferido dos grandes grupos econômicos sediados em São Paulo, ou ainda Marina Silva – candidata social-liberal que apresentava uma equipe econômica recheada de nomes fortes no governo de Fernando Henrique Cardoso; a ausência de uma máquina partidária poderosa capaz de angariar palanques e votos nas periferias das grandes metrópoles ou nas cidades do interior; e a escassez de tempo no rádio e na TV, considerados essenciais em uma campanha que prometia ser curta.

Todos esses empecilhos aparentemente intransponíveis foram vencidos de modo impressionante. Bolsonaro venceu sem precisar nem mesmo fazer campanha, impossibilitado que estava pela facada recebida em Juiz de Fora.

Como isso foi possível?

As condições indicam um afrouxamento dos mecanismos que até então mantinham o processo democrático sob o controle de grupos que costumo chamar de “paulistocêntricos”. Durante a existência da Nova República, houve um domínio dos grupos intelectuais, midiáticos, econômicos e sociais cuja base de difusão é a capital paulista. Os dois principais representantes dessas forças no sistema partidário eram o PSDB e o PT, que polarizavam as eleições presidenciais desde 1994.

Essa polarização e as diferenças entre PT e PSDB em alguns âmbitos não afetavam a convergência de fundo. Os dois partidos manifestavam um consenso mais amplo cujas principais forças tinham São Paulo por base. As divergências, por importantes que pudessem parecer, não pareciam arranhar os fundamentos básicos do sistema político hegemônico.

Leonel Brizola, líder trabalhista herdeiro do getulismo, já apontava para a coincidência do projeto de PT e PSDB ainda em 1994, em um momento em que poucos de nós enxergavam a semelhança estrutural da perspectiva dos dois partidos. Em entrevista ao programa Roda Viva naquele ano, Brizola declarou que Lula e Fernando Henrique estavam se acotovelando para poderem realizar o mesmíssimo programa neoliberal. Houve quem se assustasse com esse veredito. Afinal, tratava-se de um partido social democrata com uma ala desenvolvimentista poderosa, e de um partido trabalhista tido por muitos como socialista. Como podiam ser chamados de neoliberais?  Brizola explicava de maneira sucinta:  “Lula vem por baixo, Fernando Henrique vem por cima”, mas os dois tem o mesmo desenho: “quando chega nos PhDs, todos ficam iguais”.

O líder pedetista chamava atenção para a uniformidade básica de pensamento dos intelectuais que conduziam os dois partidos hegemônicos. Eram acadêmicos da USP, talhados na sociologia de Sérgio Buarque de Hollanda e em teorias de desenvolvimento econômico dependente; influenciados pela esquerda social-liberal europeia e com sua agenda de apoio a identidades pós-modernas [que é como chamo o movimento feminista radical, a ideologia de gênero, o movimento LGBT, a militância abortista etc.]; comprometidos com a arquitetura econômica neoliberal propagandeada pelo consenso de Washington e que implicava na subordinação da esfera produtiva à rentista; e que possuíam uma intenção clara de “ocidentalização” do Brasil.



De fato, os governos do PT e do PSDB, apesar de divergências, não fugiram desse script. Foram zelosos na manutenção do tripé macroeconômico criado por Armínio Fraga; zelosos na “financeirização da economia”, que se tornou refém de um cartel de bancos e atrelada à rolagem de uma dívida pública muito suspeita; executores de reformas graduais na Previdência Social e de uma flexibilização, também gradual, dos direitos trabalhistas.

Esse arcabouço político que dominava a Nova República, e que estou chamando aqui de “paulistocentrismo”, não estava isento, porém, de graves contradições. As bases sociais dos dois partidos impossibilitavam qualquer radicalismo na execução do projeto neoliberal e “ocidentalizante”. Ele tinha de ser, necessariamente, gradual e repleto de concessões. Em um cenário de acirramento do conflito geopolítico e de crise econômica internacional, essas contradições e esse gradualismo deram oportunidade para que forças, de origens diversas, derrubassem a ordem estabelecida.

Entender as linhas de forças envolvidas na queda do sistema “paulistocêntrico” vai nos ajudar a compreender pontos chaves do governo Jair Bolsonaro.

O cenário internacional mudou muito rapidamente na última década. Uma crise econômica em 2008 abalou o sistema financeiro global, afetando primeiro os Estados, depois a Europa e, a partir de 2013, os países “emergentes”, aqueles que dependiam mais da exportação de commodities.

Houve também uma intensificação da disputa geopolítica. Os Estados Unidos encontram os limites de sua ação globalista e passaram a conviver com a expansão de novas potências. A Rússia reagiu à tentativa da OTAN em invadir o espaço pós-soviético. E a China projeta cada vez mais seu poder para fora da Ásia, com investimentos e parcerias econômicas e militares na África e até mesmo na América do Sul.

A reação estadunidense levou a uma série de tentativas de mudanças de regimes e de guerras: A partir de 2011 surgiram as “primaveras árabes”, a guerra na Síria e a guerra na Ucrânia. Associadas a problemas internos e condições específicas de cada uma dessas regiões, todos esses movimentos receberam algum grau maior ou menor de ingerência dos Estados Unidos.

Em meio ao furor da execução da estratégia nacional americana, o Brasil se tornou alvo de um imenso esquema de espionagem revelado pelo Wikileaks. Milhões de e-mails brasileiros foram devassados, políticos, assessores presidenciais, executivos das principais estatais e inclusive a Presidente da República foram grampeados e monitorados. O Brasil se tornou um dos principais alvos da espionagem americana em 2013, segundo os documentos confidenciais vazados pela wikileaks.

No mesmo ano, passamos por uma série de mobilizações populares, iniciadas com as “jornadas de junho”. Nascidas de uma manifestação contra o aumento do preço da passagem de ônibus em São Paulo, logo desembocaram em protestos maciços com reivindicações difusas. Diante da estupefação do governo, essas manifestações possibilitaram algumas movimentações importantes dentro do espectro político.  Elas estabeleceram uma narrativa anti-corrupção, de imenso repúdio aos principais partidos. Foi ali também que a grande mídia se mobilizou para vetar a PEC 37, um projeto que limitava o poder de investigação à Polícia Federal e à Polícia Civil dos Estados. Procuradores do Ministério Público e as grandes empresas de informação aproveitaram-se dos enormes protestos populares para barrar essa emenda de forma definitiva. Em 25 de junho de 2013, a PEC foi rejeitada com 430 votos contrários e apenas nove favoráveis.

 Essa aliança entre o Ministério Público e a grande mídia já prefigurava a República de Curitiba que surgiria pouco tempo depois. Sem aquela vitória, possibilitada pelas “jornadas de junho”, a Operação Lava Jato não teria sido possível. Essa Operação, em que pese seus méritos e deméritos, foi conduzida por procuradores e juízes com grande proximidade intelectual, ideológica, pessoal e profissional com os Estados Unidos da América. Parte da operação foi viabilizada por trocas de informações com o Departamento de Estado americano, o mesmo país que espionou maciçamente o Brasil no período, espionou e-mails de cidadãos brasileiros, executivos de estatais, políticos e, vejam vocês, a Petrobras.

Notem que não estou afirmando aqui que os esquemas de corrupção trazidos à baila pela Força-Tarefa da Lava Jato não existiam, que os políticos são inocentes ou que a luta contra a corrupção não é uma necessidade. Tampouco estou afirmando que os líderes da Força-Tarefa da Lava Jato estão no bolso da CIA. Não há evidências concretas disso. Mas elas tampouco são necessárias. Basta analisarmos as linhas de força por trás de todos esses eventos da política nacional para notarmos um crescente fortalecimento de grupos ligados de diversas maneiras aos Estados Unidos da América.

Em 2015, matérias jornalísticas noticiavam o apoio do Atlas Network a organizações brasileiras. O Atlas Network é um think tank liberal que tem entre seus financiadores os irmãos Koch, bilionários americanos do setor de petróleo e gás. O Instituto Millenium foi uma dessas organizações financiadas. Um dos seus fundadores, o economista Paulo Guedes, treinado na escola de economia de Chicago, uma das bases do neoliberalismo militante, se tornou peça fundamental na ascensão de Jair Bolsonaro, como veremos a seguir.

Sem pretender me tornar cansativo, esses indícios estabelecem uma chave de leitura fundamental para o nosso tema de hoje. Eles apontam, de maneira muito clara, no meu entendimento, que a crise econômica e política brasileira levou a um ambiente propício para uma intervenção de agentes internacionais e nacionais interessados em realizar um choque neoliberal no Brasil e em realinhar o país aos Estados Unidos em meio aos conflitos geopolíticos do momento.

Este é um ponto que considero fundamental: a vitória de Jair Bolsonaro se tornou possível porque a República “paulistocêntrica” foi abalada. Esses abalos, por sua vez, se deveram a facções estrangeiras e brasileiras que se uniam em prol do neoliberalismo e do filo-americanismo em uma época de acirramento do conflito geopolítico global.

Eis aí a urdidura que podemos vislumbrar em meio aos golpes que, gradualmente, solaparam as bases de poder do PT e do PSDB, desacreditaram o sistema partidário, desmontaram a autoridade das grandes empresas de informação, criando um clima favorável a uma política voltada para a radicalização da americanização, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, “ocidentalização” do Brasil.

Antes de continuar, deixe que eu me explique. A derrubada do sistema político-partidário da Nova República não é de todo ruim. Não pode ser encarada apenas por seu aspecto negativo. Tratava-se da hegemonia de um projeto antipatriótico, e que a longo prazo conduziria aos mesmos resultados pretendidos pelos pólos de poder que o derrubaram. No entanto, dadas as forças sociais que sustentavam os partidos responsáveis pelo sistema, o projeto neoliberal não poderia ser senão gradualista, sujeito a retrocessos e contradições inadmissíveis para a geopolítica norte-americana e as forças liberais. O problema, portanto, não é a queda do sistema “paulistocêntrico”. Não se trata aqui de defender o PT e o PSDB, longe disso – Deus nos livre! O problema é o programa neoliberal e filo-americano ainda mais radical daqueles que o derrubaram.


[continua]

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