domingo, 10 de agosto de 2025

Filioque

 




Alguns confrades e consorores me pedem para falar sobre a polêmica entre ortodoxos e romanos em torno da "cláusula Filioque". Há muita incompreensão a respeito, o que é natural, já que se trata de tema de grande profundidade teológica.


Um ponto fundamental é que o debate é sobre a ORIGEM ETERNA DAS HIPÓSTASES.


Alguns citam versículos das Escrituras [passagens no Evangelho de São João, no Apocalipse, em Gálatas etc.] sobre o envio do Espírito Santo ao mundo, a Economia da Salvação, ou as Relações entre Deus e a criação achando solucionar o imbróglio. Mas nem mesmo a processão energética é o cerne do problema.


Um dos obstáculos pro entendimento foi a tradução da Vulgata. Não porque ela esteja equivocada, mas porque generalizou termos gregos diferentes vertendo-os para o latim "procedere/procedit" [proceder/procede].

A expressão usada no Credo é "τὸ ἐκ τοῦ Πατρὸς ἐκπορευόμενον" [''e que procede do Pai''].

Exatamente o mesmo verbo que se encontra em São João 15:26.


"Ὅταν δὲ ἔλθῃ ὁ Παράκλητος ὃν ἐγὼ πέμψω ὑμῖν παρὰ τοῦ Πατρός, τὸ Πνεῦμα τῆς ἀληθείας ὃ παρὰ τοῦ Πατρὸς ἐκπορεύεται…

"Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei [πέμψω] da parte do Pai, o Espírito da verdade, que procede [ἐκπορεύεται] do Pai…"


O Filho envia o Espírito ao mundo. Mas o Espírito procede [ἐκπορεύεται/ἐκπορευόμενον] do Pai. Enquanto o verbo latino "procedere" significa "origem" e "envio" em sentido geral e abrangente, o grego ἐκπορεύεται é específico para origem ontológica, existencial e absoluta.


O que diferencia as Pessoas/Hipóstases na Trindade é o modo como elas são causadas pelo Pai, e é expresso pelo Credo Niceno-Constantinopolitano a partir das discussões que culminaram no II Concílio Ecumênico -- e fundamentado na teologia dos Padres Capadócios. A Origem das Hipóstase do Filho e do Espírito é a Hipóstase do Pai, a primeira por Geração e a segunda por ''Expiração" [Processão], nisso consistindo suas particularidades hipostáticas.


De modo que o Pai é o Princípio ou causa [aitia] não causada na Trindade. A unidade na Trindade repousa assim na Monarquia do Pai.


A primeira vez que o Credo foi cantado com o Filioque em uma liturgia oficial no Ocidente foi no III Concílio de Toledo, em 589, que oficializou a conversão do Rei Recaredo e do Reino Visigodo, até então arianos, à Ortodoxia. Este Concílio Regional ocorreu mais de 200 anos depois das decisões do II Concílio Ecumênico, portanto.


E expressava dois processos que ocorriam no Ocidente naqueles séculos:

i. À medida em que perdia contato com o Oriente e com a língua grega, o Ocidente se tornou cada vez mais dependente da teologia agostiniana. O Bem Aventurado Santo Agostinho elaborou uma doutrina que expressava a Santíssima Trindade a partir de analogias psicológicas e relações de operações divinas. Assim, existiriam dois modos de processão [Intelecto --> Verbo/Filho; Vontade --> Amor/Espírito].

ii. O Ocidente foi conquistado e dividido em Reinos Germânicos. A maioria deles era ariano, e fazia questão de manter a divisão religiosa como forma de assegurar a separação entre conquistadores [arianos] e conquistados [ortodoxos].


A adoção da Filioque tem, portanto, um tempero de reação ao arianismo respaldada pela teologia trinitária agostiniana.

A 'cláusula' se popularizou entre os 'latinos', gerando reações no Oriente. Em meados do século VII, São Máximo o Confessor defendeu a posição ocidental em carta famosa e reivindicada tanto por ortodoxos quanto por romanos em suas pendengas. Nela, Sao Máximo deixa claro que a Filioque era aceitável PORQUE ela não colocava em questão que a Hipóstase do Pai era causa única na Trindade.


Essas considerações de São Máximo estabeleceram os limites possíveis do entendimento oriente/ocidente e que vigoram até hoje nas tentativas de superar a divergência. Não há problemas para os ortodoxos com qualquer menção à processão energética [como vai explicitar São Gregório do Chipre no século XI] ou com a fórmula de que o Espírito procede do pai por meio/através do Filho. Desde que resguardada a fé de que o Pai é o Princípio Originante único na Trindade.


No entanto, a teologia "filioquista" se fortaleceu entre os ocidentais nos séculos seguintes, e foi impulsionada por reviravoltas no âmbito do poder. A mais importante delas, a formação do Império Franco sob Carlos Magno [fins do século VIII e início do século IX], que se fez coroar "Imperador Romano do Ocidente" em flagrante polarização com o Império Romano do Oriente ["Império Bizantino"].


Os governantes francos pressionaram os Papas pela adição da Filioque na liturgia em Roma. Mas mesmo quando concordavam com a doutrina por trás da "cláusula", os Papas do período [com destaque para o Papa Adriano e o Papa Leão] se recusaram corajosamente a ceder aos insistentes apelos imperiais. Eles preferiam manter a unidade de fé com o Oriente e sabiam que nenhum Concílio local tinha autoridade para modificar o Credo.

As diferenças doutrinárias já estavam muito claras nas disputas em torno de São Fócio, na segunda metade do século IX. Mas foram amenizadas quando o Papado caiu de vez sob influência de famílias oligárquicas italianas [a chamada "Pornocracia", também conhecida na historiografia ocidental como "a igreja sob poder dos leigos"], mais especialmente os Teofilactos, cuja agenda política exigia aliança com Constantinopla.


Outra reviravolta política ocorreu com a ascensão da dinastia Otônida no Império Romano-Germânico [969] e a queda gradual da Itália sob a órbita de um renovado poder imperial. E assim, atendendo a "pedidos" do Imperador Henrique II, o Papa Bento VIII permitiu que, pela primeira vez, o Credo foi cantado em Roma com a interpolação "Filioque", no dia 14 de fevereiro de 1014.

A partir de então, os teólogos romanos se esforçaram para defender a novidade com outras novidades. A mais radical delas, a exposição de Anselmo da Cantuária, feita a pedido do Papa Urbano II no contexto da convocação da Primeira Cruzada, no fim do século XI.


Em "De Processione Spiritus Sancti", Anselmo defendeu a Filioque não a partir dos Santos Padres ou das Escrituras, e sim da aplicação da lógica aristotélica. Partindo da premissa agostiniana de que as Hipóstases se distinguem por suas relações de origem 'operativas', ele tentou demonstrar que a Filioque era uma conclusão racional inescapável.


O argumento romano já evidenciava também o afastamento ''metodológico" da teologia ocidental, que adentrava então o período da escolástica. Para a Ortodoxia, é inimaginável que questões no âmbito estritamente teológico [ou seja, sobre a Santíssima Trindade, e portanto transcendentes ao criado] possam ser reduzidas à aplicação de categorias lógicas. [e isso independente da insuficiência do próprio argumento, já que a oposição relativa não precisa vir das relações de origem, e sim do MODO de origem.]


Por outro lado, o pressuposto agostiniano de que as hipóstases podem ser definidas por analogias de operações psicológicas levou Anselmo a alegar "que a processão não era necessariamente uma propriedade da Hipóstase do Pai, mas provinha da substância divina compartilhada por todas as três pessoas (secundum eandem deitatis unitatem – “segundo a mesma unidade de divindade”), e aqui aplicada apenas ao Pai e ao Filho (já que o Espírito não é a causa da sua própria existência). Se o Credo professava que o Espírito procedia do Pai, e o Pai é Deus, Anselmo argumentava que o Filioque está “claramente demonstrado, [pois] o Credo diz que o Espírito Santo procede de Deus, já que o Filho é Deus.” Se alguns (por exemplo, Agostinho) argumentam que o Filho procede principalmente do Pai, “queremos significar apenas que o próprio Filho, de quem o Espírito é, tem do Pai o próprio fato de que o Espírito Santo é do Filho, já que Ele [o Filho] tem a sua substância do Pai.[1]


Essa tendência de deslocar a origem das Hipóstases a uma essência comum entre Pai e Filho deságua em Tomás de Aquino: "Assim como Boaventura, Tomás afirmava de modo inequívoco o Pai como principium totius deitatis (“princípio de toda a divindade”) dentro da Trindade, já que somente Ele era o princípio sem princípio. No entanto, essa afirmação não impediu Tomás de afirmar explicitamente que o Filho era auctor (autor), principium (princípio) e fons (fonte) do Espírito Santo. Isso acontecia porque o Filho possui “o mesmo poder espirativo que pertence ao Pai”, o qual Ele possui como um dom recebido do Pai. “Portanto, o Espírito Santo procede igualmente de ambos, embora às vezes se diga que procede principalmente ou propriamente do Pai, porque o Filho tem esse poder a partir do Pai.” [2]


Também a pedido do Papado, Tomás de Aquino vai escrever "Contra os Erros dos Gregos" [o título não foi escolhido por ele]. Seus argumentos contornam o fato de que o latim ''procedere'' não tem o mesmo significado que o grego ἐκπορεύεται, e elencam um conjunto robusto de citações patrísticas que tem o vício de serem hoje reconhecidamente espúrias.


No fim, Tomás de Aquino apresenta uma observação curiosa a respeito da interpolação, a de que o Papa tinha o direito de alterar o Credo já que sendo "Sucessor de Pedro e Vigário de Cristo, é o primeiro e o maior de todos os bispos", e tem "a plenitude do poder sobre toda a Igreja de Cristo."


Ou seja, outra alegação que nenhum ortodoxo vai levar a sério, tornando a Filioque, para nós, uma novidade, defendida a partir de novidades na argumentação teológica, e que culmina em uma novidade eclesiológica.


Há soluções para a divergência, mas passam por um retorno a São Máximo Confessor, e à distinção essência/energias que também pode ser apontada nos mesmos Padres Capadócios cuja teologia fundamentou os dogmas trinitários. -------
[1] "The Filioque, History of a Doctrinal Controversy", A. Edward Siecienski, Oxford University Press, 2010

[2] idem, ibidem