sábado, 30 de novembro de 2024

A CIDADE QUE DOMINA A AMÉRICA

 



Durante muito tempo os cariocas ouviram profecias 'auto-realizáveis' sobre o fim de seu campeonato, de seu futebol, e da grandeza e importância de seus clubes. Esta década sepultou essas análises mais pessimistas. A gloriosa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro domina a Libertadores da América. São três títulos consecutivos com três clubes diferentes, a primeira vez que uma metrópole sul-americana realiza o feito em mais de seis décadas de competição. E os clubes da cidade levantaram 4 das 6 edições mais recentes.


Mais ainda, o Rio de Janeiro é hoje a cidade brasileira com mais clubes campeões da América. São quatro clubes detentores da taça, contra três de Sampa. Na verdade, o Rio só perde pra Buenos Aires nesse quesito [que tem cinco clubes campeões].


Há risco muito forte do Rio passar o rodo em todos os grandes títulos do ano no segundo semestre. O Flamengo ganhou a Copa do Brasil, o Botafogo tem a Libertadores e pode vencer o Brasileiro. No início do ano, o Fluminense levantou a Recopa Sul-Americana. Nada mal para um ''futebol decadente''.


O campeonato carioca vai reunir, a partir de janeiro, os três últimos campeões sul-americanos. É bobagem, a essa altura, negar que é o mais estrelado estadual do país. Os clubes pequenos podem não ter a força do interior paulista, mas a dificuldade implicada pelos grandes mais do que compensa esta desvantagem.


A cidade do Rio tem hoje seis títulos de Libertadores. Um a menos que Sampa. Mas à frente de Porto Alegre e de Belo Horizonte. Não era uma situação provável há dez anos.


Resta saber agora que clube carioca será campeão da Libertadores ano que vem e por que não será o Vasco.

O PACOTÃO DO NOVO FERNANDO, ou: As Bodas de Ouro entre o petismo e o neoliberalismo

"Se dali a dois, três meses, nós identificarmos riscos, trajetória, nós vamos ter que parar essa trajetória para verificar qual é, voltar para a mesa, ser feitos os ajustes que terão que ser feitos para manter essa trajetória"

Haddad prometendo novos ajustes fiscais caso necessário


O governo PT se aproveitou do estado quase hipnótico em que a sociedade entrou por causa da divulgação do relatório da Polícia Federal com fartos indícios da conspiração golpista liderada por Bolsonaro para propor ao país um pacote de cortes de gastos vendido como solução para suposta situação fiscal periclitante do Estado. As propostas afetam diretamente os mais pobres ao mudarem o cálculo de valorização do salário mínimo e a concessão de abono salarial. Mas também ao empurrar para o Fundeb as contas da expansão do ensino integral e do Programa Pé de Meia, o que significa, no fim das contas, uma asfixia gradual do Orçamento da Educação.


Boa parte da esquerda lulopetista aplaudiu efusivamente o pacotão, preferindo olhar para as novas regras da Previdência Militar e as promessas de taxação de super-salários e de isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil reais mensais. E nisto estão de acordo com as principais vozes do ''mercado'' que, embora pontuem que o ajuste do Ministro Haddad é ''tímido'' diante das ''necessidades'' do país, o consideram um movimento na direção correta e suficiente para indicar medidas ainda mais radicais no futuro próximo. 


''A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) divulgou nota nesta quinta-feira 28 em que destaca que as iniciativas do pacote fiscal, anunciadas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estão “na direção certa”, apesar de destacar a “criticidade do quadro fiscal” e acenar para um ajuste “mais forte” no futuro. Entre as medidas citadas pela federação estão limitação no reajuste do salário mínimo, mudanças do abono salarial e do BPC (Benefício de Prestação Continuada) e as novas regras de concessão e acompanhamento do Bolsa Família. “Importantes medidas na busca da contenção de gastos”, afirmou a federação.'' [Fonte: 'Está na direção certa', diz Febraban]


Desde a campanha de 2018 que me refiro a Haddad como o ''novo Fernandinho'' para apontar suas similaridades fundamentais com Fernando Collor de Mello e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso, que consolidaram a submissão macroeconômica da Nova República ao neoliberalismo. No caso de Cardoso, os vínculos são ainda mais poderosos, já que ambos tem uma mentalidade e ideologia moldadas pelo uspianismo e pelo nexo de poder que se desenvolve em torno da metrópole paulista, características que denomino há anos de ''paulistocentrismo'' e que revela a filiação do regime atual com movimentos oriundos da Velha República derrotada por Getúlio anos anos 1930. 



A avaliação de que faço de Haddad não se dá à toa. Em 2019, o ex-Prefeito de São Paulo se referiu à Era Vargas como um "crescimentismo" que não poderia ser comparado ao real desenvolvimento que os dois primeiros mandatos de Lula trouxeram ao Brasil, uma declaração risível e que comentei com maiores detalhes no texto O inimigo de Fernando Haddad é Getúlio Vargas


Em 2018, publiquei um texto nas minhas redes sociais com 12 pontos pelos quais um trabalhista não deveria de forma alguma votar no novo Fernando, então candidato do PT à Presidência da República. Dizia eu que "Haddad é um liberal progressista que vai colocar Marcos Lisboa, que é como se fosse um Meirelles ou Armínio Fraga da vida, no comando da economia brasileira. Nesse momento mesmo ele já começou a conversar com as forças do mercado. Vai praticar um novo ''estelionato eleitoral'', como aquele cometido por Dilma", e acrescentei que ele era "a síntese acabada do globalismo: neoliberalismo, sensibilidades liberal-burguesas e cosmopolitismo pós-moderno" e "a cara da continuidade do sistema político-partidário paulistocêntrico que oprime o país há vinte e cinco anos. Ele vem realizando alianças com grande parte das forças que anteontem o PT denunciava como golpistas." [Fonte: Porque não votar em Haddad]


A atuação do novo Fernando no Ministério da Economia é a confirmação exata destes diagnósticos. A aliança de Haddad com a Febraban e as vozes do rentismo não foi expressa no pacotão deste mês, que existe apenas em função do Arcabouço Fiscal que o governo Lula costurou logo após sua vitória eleitoral para substituir o desmoralizado Teto de Gastos de Temer, que não foi cumprido por Bolsonaro em nenhum ano de seu governo. O Governo Lula chamou para si a responsabilidade de estabelecer uma âncora fiscal eficiente o suficiente para realizar o sonho explícito dos neoliberais, dos rentistas, da Faria Lima e de todos os anti-getulistas: destruir gradualmente o Estado.



Lula foi eleito prometendo colocar abaixo o Teto de Gastos, e estava em condições políticas de realizar o feito, principalmente depois da união da mídia e do sistema partidário gerada pela tentativa mambembe de golpe em janeiro de 2023. Mas preferiu amarrar o país em uma regra fiscal tão ou mais rígida, provando mais uma vez o acerto de Leonel Brizola ao dizer que os petistas "cacarejam para a esquerda e colocam ovos para a direita." Em março daquele mesmo ano, o novo Fernando dizia cinicamente que seu novo Teto de Gastos era passível de ser defendida tanto por liberais quanto pela centro-esquerda, como se houvesse qualquer diferença macro-econômica entre os dois campos.


A vocação perene do PT sempre foi se fingir contrário ao "neoliberalismo" só para decapitar de vez todas as esperanças do nacionalismo popular. O Arcabouço Fiscal de Haddad foi a pá de cal na expectativa de um modelo de crescimento pautado e planejado pelo investimento público e de uma readequação das estatais a um novo projeto de desenvolvimento. Lula tinha tudo nas mãos para atacar o rentismo instuticionalizado alegando 'combate ao bolsonarismo'. Mas reforçou ainda mais o poder da Faria Lima, para surpresa de quase ninguém livre das técnicas hipnóticas do lulopetismo.


Quanto mais tempo permanecer no poder, mais espaço o PT vai ter para governar para a Faria Lima do modo mais seguro possível: fingindo que faz tudo isso em nome dos trabalhadores. Paulo Guedes sonhava em destruir qualquer sinal de Estado de Bem Estar Social e de direitos sociais no país. Delirava feliz ao falar do fim da Previdência, da doação das estatais, da entrega dos recursos naturais para multinacionais, da extinção de direitos trabalhistas, e da destruição dos Pisos Constitucionais da Saúde e da Educação. Mal sabia ele que estaria mais próximo de concretizar isso se votasse em Haddad já em 2018.



terça-feira, 26 de novembro de 2024

SOBRE GOLPES E GOLPES, ou: anormalidade togada

 


Quanto mais notícias temos sobre a tentativa de golpe, mais claro fica que Bolsonaro não mergulhou de cabeça porque não teve apoio da maioria dos Generais para embarcar na aventura. Freire Gomes, então Comandante do Exército, chegou a ameaçar o Presidente de prisão caso implementasse a minuta golpista. O General Arruda, que substituiu Freire Gomes na função, espinafrou o General Mário Fernandes quando ele sugeriu adesão aos planos de Braga Netto. Os conspiradores choramingavam em audios a falta de apoio da maior parte do Alto Comando e deliravam sobre mudanças no âmbito de decisão das Forças Armadas quando estivessem no poder. 


Ainda assim, parte considerável da esquerda e da mídia aproveita as revelações da trama contra Lula para destinar ódio em relação às Forças Armadas. Um famoso youtuber comunista cravou que "o Exército no Brasil só serve para dar golpes". Seria como se alguém olhasse a Intentona de 1935 e concluísse que comunistas no Brasil só servem para trair o país em nome de interesses estrangeiros.


Trabalhistas e getulistas tampouco devem cair nessa esparrela. O Estado Novo só foi possível pelo apoio incondicional do Exército de Góes Monteiro e de Eurico Gaspar Dutra. Juscelino assumiu a Presidência por causa do "golpe preventivo" do General Henrique Teixeira Lott, que não por acaso foi candidato à Presidência da República pelo PTB em 1960. Como se vê, há golpes e golpes. 


O conceito se refere apenas a um meio específico empregado para tomar o poder, e nem sempre encarado de forma deletéria. Costumamos reverenciar as tentativas de golpe tenentistas na década de 1920. Temos monumentos no Brasil para homenagear os 18 do Forte. Temos um feriado nacional que comemora o 15 de Novembro, data da Proclamação da República, leia-se, do golpe do General Deodoro da Fonseca, que derrubou o civilista Império do Brasil. Deodoro desferiu um golpe também em 1891, mandando fechar o Congresso, mas não foi bem sucedido porque, diferente do 15 de Novembro famoso, a Marinha decidiu intervir. Udenistas, na década de 1940, em uma Frente Ampla com apoio de praticamente toda a grande mídia, comemoravam o golpe militar que retirou Getúlio do poder. 



Nem todo golpe de Estado nasce de conspiração militar. Aliás, dificilmente um golpe militar é perpetrado com êxito sem participação e apoio ferrenho de grupos poderosos da sociedade civil. Nem mesmo o período ditatorial entre 1964 e 1985 pode ser visto como um regime meramente militar, mitologia inventada pela Nova República como forma de criar um consenso nacional que fizesse do Exército um grande bode expiatório. Ao expressar seu anti-militarismo, os atuais indignados papagueiam esse mito e esquecem de perguntar ou ir atrás dos financiadores e apoiadores civis da trupe amalucada de Bolsonaro.


Aliás, nem todo golpe é desferido com participação ou dependência das Forças Armadas. É perfeitamente possível ler a Operação Lava-Jato e o impeachment de Dilma em clave golpista, algo que Lula e seus aliados fizeram até bem recentemente, antes que as conveniências políticas adormecessem o estridente discurso que nos lembrava da anormalidade que vivíamos, com uma juristocracia atuando como Poder Moderador da República.


A juristocracia abandonou a primeira instância em Curitiba e se consolidou no Supremo Tribunal Federal, de modo parecido com que o tenentismo desaguou na agência política do Alto Comando do Exército após a Doutrina Góes. Neste exato momento, um corpo ou órgão do Estado exerce o poder político sem qualquer necessidade de passar por eleições. Os Ministros da Corte Suprema são tão especiais que tem a prerrogativa de decidir o que vale e o que não vale no texto constitucional, decifrando seu real sentido ao sabor das contingências do dia. 



O STF libertou Lula ao ''descobrir'' as arbitrariedades cometidas por Sérgio Moro e cia. em sua sanha persecutória, ainda não de todo esclarecida nem muito menos punida. Segundo o cientista político Christian Lynch, o novo sistema político diminuiu a força do Poder Executivo e a partilhou com o Congresso e o STF: 

"Na sua avaliação, o Supremo atua nesse arranjo como uma terceira câmara do Legislativo, e a recente indicação do ministro da Justiça Flávio Dino para a Corte reforça a tendência de um tribunal com perfil mais político nos próximos anos." [Leia: O Novo Presidencialismo de Coalizão]


 O novo arranjo surgiu da criatividade de elites bem posicionadas no aparato estatal, mas não pediu opinião e aprovação do restante da população. A adoção de um semipresidencialismo tutelado pelo STF foi tema do Ministro Dias Toffoli quando participou de um fórum em Lisboa: 

"Nós já temos um semipresidencialismo com um controle de Poder Moderador que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal. Basta verificar todo esse período da pandemia”, disse o magistrado, citado pelo site Poder360. 
Toffoli não é o único entusiasta da mudança entre os ministros do STF. Nos últimos meses, magistrados como Luís Roberto Barroso – que também preside o Tribunal Superior Eleitoral – e Gilmar Mendes revelaram simpatia pelo sistema". [Leia: Semipresidencialismo tutelado]



O Ministro Gilmar Mendes criticou mais de uma vez o "Presidencialismo cesarista'' que, segundo ele, existia no Brasil. Críticas assim eram comuns em grupos defensores do parlamentarismo, uma discussão esvaziada com a derrota do modelo no Plebiscito de 1993. Mas os críticos do Poder Executivo não descansaram até que pudessem adotar a configuração atual, com o superdimensionamento do STF. O papel de Alexandre de Moraes, transformado em um tipo de Inquisidor Geral da Nova República, representa fielmente a concentração de poderes na juristocracia. Alguns falam de Democracia Militante, mas não errariam se preferissem "Ditadura da Toga". 

"Diante de ameaças violentas ou não violentas ao regime democrático, a teoria da democracia militante se apoia na possibilidade de restringir princípios e direitos fundamentais, individuais ou coletivos, para proteger a democracia. Entre as medidas identificadas por Loewenstein para cumprir esse objetivo encontram-se legislações que criminalizam incitações à violência e ao ódio, rebeliões, insurreições ou levantes armados contra o Estado, até legislações que preveem o banimento de partidos políticos e movimentos subversivos, assim como a proibição de atividade política por membros das Forças Armadas." [Leia: Crise Democrática]




Os cidadãos não foram avisados nem puderam escolher o novo sistema, que reformula inteiramente o pacto inscrito na Constituição de 1988. Chegamos ao ponto do Senador Randolfe Rodrigues, líder do Governo no Congresso, se mostrar imensamente surpreso diante de jornalistas quando informado que o semipresidencialismo não consta na Carta Magna nem, a rigor, em legislação alguma do país:

"Em relação à execução de emendas, vamos dialogar. O nosso regime é semipresidencialista, foi assim que a Constituição de 1988 fundou o regime republicano semipresidencialista no Brasil. Tem o Executivo, tem um governo que tem que fazer a execução. O Executivo que é o ordenador da despesa", declarou o senador, que representa o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas sessões do Congresso Nacional. [...]
Repórteres disseram a Randolfe que o sistema é presidencialista. Ele respondeu: "pela Constituição de 1988 é semipresidencialista. Tem um sistema, os poderes do Parlamento, a doutrina constitucional já proclama isso porque os poderes do Parlamento foram ampliados a partir da Constituição de 1988 em relação ao regime anterior" [Líder do governo jura que vive em sistema semipresidencialista]


A maior parte dos defensores da Nova República, esquerda à frente, parece dormir muito bem com a tutela de uma República semipresidencialista, uma situação anormal não apenas diante da Constituição de 1988, mas também de nossa história e cultura política. Afinal, golpe ruim é o dos outros.



sábado, 23 de novembro de 2024

O JUDAÍSMO NÃO ERA MONOTEÍSTA, ou: livre-se do protestante e do iluminista dentro de você

 "Eles basicamente tinham liberdade para dominar segundo suas próprias regras, o que lhes dava permissão para lutar entre eles, discutir com superiores, abusar de seus poderes para frustrar os demais [tanto deuses quanto homens] e até se matarem [para não falar de matar os homens]. Em todas estas coisas, entretanto, podiam ser responsabilizados por seu comportamento e podiam ser chamados em juízo diante de El"


Handy, Lowell K. [1994]


A informação pode espantar muita gente, mas o conceito de Monoteísmo é construído na Modernidade, mais especificamente nos séculos XVII E XVIII, e está permeado de percepções muito ao gosto do Iluminismo. Uma em particular é bastante importante pra essa postagem, a ideologia do progresso. No século XIX, as universidades europeias e norte-americanas imaginavam que o Monoteísmo era uma etapa superior da história religiosa da humanidade, característica portanto de um desenvolvimento civilizacional e intelectual mais sofisticado e profundo. 


Sociedades menos evoluídas, acreditavam os europeus, eram "animistas". Com o tempo passariam a espiritualidades politeístas, que tomariam formas muitas vezes henoteístas. O politeísmo podia ser acompanhado da monolatria. Até que a ideia da existência de um só Deus se imporia quando as populações atingiam determinada complexidade social e política. Os fenômenos religiosos eram classificados de modo a caber nessas categorias. Do mesmo modo, a narrativa histórica tinha de dar conta destas transições [ou evoluções no sentido ideológico do termo, de ''melhora com o passar do tempo'']. 


Um exemplo bastante nítido: uma das grandes questões dos pesquisadores desse período, por exemplo, era saber quem havia ''criado'' o Monoteísmo. Dada a centralidade do Egito Antigo para a arqueologia -- e o impacto da terra dos Faraós no imaginário da Europa Moderna desde o século XVII --, não surpreende que a resposta científica se voltasse para aqueles lados. E assim egiptólogos propuseram o Faraó Amenhotep IV, mais conhecido como Akhenaton, da décima oitava dinastia, como o arauto de uma nova espiritualidade. Esse Faraó teria conduzido uma verdadeira ''revolução'' política e religiosa no século XIV a.C., desafiando o poderoso sacerdócio do deus Amon em prol de uma perspectiva mais profunda, centrada no culto a Aton, antiga divindade heliopolitana que era simbolizada pelo disco solar. 



Alguns iam além, sugerindo que o Profeta Moisés tinha sido influenciado pela "Revolução Amarniana", como chamavam o reinado de Akhenaton. Talvez ele fosse iniciado no culto atoniano, ou vivido em um tempo em que este culto alcançou as elites das regiões que gravitavam em torno do Egito. Esse tipo de especulação, nem tão acadêmica assim, transbordou para a cultura popular, e se tornou leitura padrão de certo ocultismo e esotericismo oitocentista. Ora Moisés era um renegado e traidor dos mistérios egípcios, ora era um enviado do próprio Faraó, ora era o próprio Akhenaton reelaborado pelos hebreus em uma narrativa mitológica.


O entendimento de então era marcado pela projeção das próprias crenças oitocentistas em uma sociedade egípcia para a quais elas seriam incompreensíveis. A visão de um Faraó vanguardista combatendo sacerdotes reacionários para defender uma ideologia  mais avançada, ética e solidária representava a sensibilidade mainstream na elite ocidental sobre as revoluções burguesas e liberais da Europa e dos EUA. Um culto solar secreto de iniciados capazes de impulsionar a História adiante caía ao gosto de aristocracias que se reuniam em lojas maçônicas e para-maçônicas a fim de fazer política e contribuir para a ''evolução da humanidade''.


A tendência de ler o passado com lentes do presente está em basicamente toda a iniciativa de se fazer História, seja em que âmbito for. Não era, evidentemente, um vício apenas da pesquisa em religiosidade. Com o tempo, os pesquisadores desenvolveram métodos, ferramentas e experiência suficientes para reduzir os riscos mais flagrantes de anacronismo. Mas eles estão sempre presentes, são incontornáveis em certa medida, porque é impossível que um homem situado em um tempo e lugar se desnude de todo seu arcabouço ideológico e cultural para abordar povos e crenças de séculos e milênios atrás. As próprias questões que orientam a pesquisa expressam preocupações contemporâneas que, seguramente, os povos do passado não tinham, ou as tinham em outra abordagem e contexto.



A consciência de que o passado é, até certo ponto, reconstruído por um olhar presente integra o próprio esforço de objetividade, a tentativa sincera de conhecer a realidade histórica. O perigo de que o viés do historiador nuble a compreensão do passado em vez de torná-lo mais acessível exige uma vigilância contínua que pode ser usada a favor da ciência. E que deu aos estudos históricos uma maior humildade em relação às suas próprias possibilidades e conclusões. Infelizmente, não é assim no discurso público e no senso comum, em que as teses científicas do momento são encaradas quase que como revelações caídas do alto, ungidas por uma verdade da qual divergir beira a insanidade, é praticamente cair no ''crime'' ou "blasfêmia'' do obscurantismo, pior acusação possível que se pode fazer em uma sociedade fundamentada no Iluminismo. 


As concepções sobre a história religiosa se tornaram mais complexas já no século XIX, com o conceito de Ur-Monoteísmo, os estudos em fenomenologia da religião, as ferramentas dos estudos antropológicos e culturais. Enfim, um olhar mais crítico logo notou que Akhenaton não se enquadrava no conceito de Monoteísmo, e que nunca aboliu o culto a si próprio ou à sua [esposa] favorita, e que nunca deixou de lado o culto aos deuses funerários [que estão bem representados em seu túmulo]. Mais ainda, logo se notou que o próprio conceito de Monoteísmo não fazia sentido nenhum para os povos deste período, que não era sequer uma questão. Nem os egípcios nem os escritos atribuídos ao Profeta Moisés [o Pentateuco] podem ser compreendidos por meio dessas categorias. 


Os relatos do Pentateuco foram comparados e contextualizados segundo o que sabemos das crenças mesopotâmicas e cananéias do segundo milênio e início do primeiro milênio antes de Cristo, principalmente a partir de pesquisas de campo dos anos 1920 e 1930. Afinal, este era o lugar de desenvolvimento dos hebreus e dos israelitas, os próprios relatos escriturísticos ressoavam os mitos comuns daquelas populações semíticas. Havia um complexo cultural comum que pode ser flagrado nas fontes escritas e não escritas, pela arqueologia, pelo estudo da mitologia e simbologia dos povos daquela região. 



Os cananeus acreditavam em um panteão que descreviam como um Concílio/Conselho de deuses. A Divindade Suprema era El, que recebia diversos epítetos, como "Altíssimo". El tinha por esposa Athirat, e dessa união nasceram cerca de 72 filhos -- um número que vai se repetir muito nas Escrituras e na Tradição cristã --, os filhos de El, ou Filhos de Deus, eles próprios divinos também e imagens minoradas do próprio pai [porque é isso que significa ser um filho, ou seja, a imagem do progenitor]. 


A ideia de divindade entre estes povos estava vinculada à de Realeza, ou de domínio sobre uma determinada área do cosmos. De modo que El era o Rei dos reis, e os filhos de El eram todos eles governantes ou príncipes de alguma parte do universo criado: os ventos, os mares, cidades e populações específicas. Todo o cosmos estava dividido entre os filhos de Deus, como numa partilha entre a família divina, e todos eles estavam submetidos à autoridade máxima do Altíssimo. 


Os filhos de Deus nem sempre conviviam pacificamente. Eles podiam discordar, entrar em conflito. O barraco era comum no Concílio dos deuses, e os homens podiam ter sinais destas discussões e batalhas por meio dos eventos celestes [astrologia] e políticos [história], por meio de mitos e ritos. Estas dimensões da realidade não estavam separadas, elas se imbricavam e se refletiam mutuamente. Desastres naturais, movimentos dos astros, doenças e guerras estavam ligados a uma dinâmica que ocorria entre os deuses, que governavam estas esferas. O Conselho discutia estas questões em reuniões que ocorriam em Montanhas míticas, em cujo cume existiam jardins de delícias. Estas reuniões eram marcadas por procedimentos jurídicos, com acusações e defesas. El Elyon, o Deus Altíssimo, tinha autoridade para julgar definitivamente as pendengas e aplicar as sentenças. 



Mas não era bem o Altíssimo que julgava, e sim seu vice-regente, um dos aspectos mais fascinantes e importantes de todo esse complexo religioso. El escolhia um de seus filhos para governar cotidianamente o Concílio dos deuses. Na virada do segundo para o primeiro milênio antes de Cristo, o vice-regente era Baal


Durante algum tempo, os pesquisadores da espiritualidade mesopotâmia e cananeia imaginaram que Baal destronou El de seu trono, mais ou menos como os mitos de sucessão da Grécia [em que Urano é deposto por Cronos, e este por uma rebelião da geração olímpica liderada por Zeus]. Mas no arcabouço religioso que deu origem às Escrituras Sagradas, Baal [ou o vice-regente] reinava sob autoridade do Altíssimo e no Nome do Altíssimo -- esta transposição do Nome tornava Baal a imagem acessível de El, considerado mais distante, uma Divindade adormecida e transcendente. De modo que se rebelar contra Baal era se rebelar contra a imagem [filho] de El. Não que inexistissem disputas pelo posto de Vice-Regente, o próprio Baal, deidade celeste e solar, teria sido entronizado ao derrotar seu irmão Yam, deidade do mar, em um conflito cósmico.


Existiam outras entidades espirituais importantes presentes neste Concílio, mas não eram consideradas divinas porque lhes faltava este aspecto da realeza. Elas se prostravam diante dos filhos de El e não tinham voz nas reuniões. Não podiam afirmar sua vontade, não podiam deliberar, discutir decisões, deviam obediência estrita à família de El. Estas entidades estão mais próximas de concepções posteriores sobre os Anjos. 



Quando a existência dos hebreus e israelitas é flagrada pela pesquisa histórica, por volta do século X a.C., é este modelo de religiosidade e panteão que emerge das fontes escritas, da arqueologia etc. Ou seja, os autores dos textos sagrados tinham em mente este conjunto de crenças, são estes os mitos e símbolos que servem de pano de fundo dos relatos sagrados. Isto não quer dizer que os hebreus e israelitas praticassem a mesmíssima religião dos demais cananeus. Havia especificidades, diferenças que são muito importantes e sem as quais não é possível entender o Judaísmo do Primeiro e do Segundo Templos nem a emergência do Cristianismo. Mas estas diferenças não eclipsam as similaridades, só tem sentido se atentarmos para o arcabouço comum em torno do qual estas distinções surgiam. 


Os autores do Pentateuco e dos relatos de conquista de Canaã acreditavam que Iahweh era Rei de um Concílio divino. Este Conselho reunia 72 filhos de Deus que, assim como o Altíssimo, eram reis de âmbitos diversos da realidade e que dividiam entre si os povos/nações da terra. Havia um Vice-Regente que era imagem do Altíssimo de modo especial: Ele trazia o Nome Oculto e Reinava sobre os demais deuses com a autoridade do próprio Rei dos reis. Este Vice-Regente era portador de emblemas bélicos que o apresentavam como conquistador e vitorioso sobre forças obscuras em um conflito cósmico [que se completaria no futuro] e era também um arauto de boas novas na escatologia. Existiam também seres espirituais menores neste Conselho, mas eles não tinham vontade autônoma, eram mensageiros e servidores dos filhos de Deus. 



Os autores do Pentateuco e dos relatos de conquista de Canaã acreditavam que toda a realidade estava trespassada por este modelo religioso e a refletia em algum grau. Não existiam eventos históricos ou políticos separados deste modelo, não existia um mundo natural independente. A geografia era sagrada, toda região, rio, mar, floresta, montanha estava sob égide de algum ser espiritual. Portanto, todo acontecimento ligado a estas áreas flagrava algum movimento também de ordem espiritual. O mesmo pode ser dito para conflitos entre cidades e populações, doenças e pragas que ocorriam em colheitas e homens. Todo rei estava em diálogo com alguma divindade, e todo conflito humano era também conflito entre deuses.


O mesmo em relação aos eventos celestes. Quem lê as Escrituras e não atina a camada astrológica não está conseguindo entender o que os autores escreveram. As estrelas ''fixas'' e ''errantes'' eram símbolos, corpos ou regiões cósmicas governadas e associadas aos filhos de Deus. Os eventos celestes falavam de uma dinâmica espiritual e portanto afetavam a vida humana. Não vou entrar em discussões sobre o melhor termo a ser aplicado a essa perspectiva -- se astronomia, se astroteologia etc. --, e é evidente que entre os hebreus e israelitas não havia crença em determinismo, destino, nem muito menos permissão para culto a estes astros ou seres. Falarei disto em outra ocasião em que retornarei ao tema de O que há de bom na Astrologia?



O fato é que é impossível ser honesto em relação às Escrituras sem entender essa dimensão astrológica. Os Profetas, hagiógrafos e Santos Apóstolos não olhavam para a natureza, a história, as estrelas como se fossem caixinhas estanques de uma realidade natural governada por leis mecânicas e impessoais. Não eram homens modernos e de crenças iluministas. As estrelas eram governadas por deuses, e seus movimentos eram indissociáveis dos mitos, dos ritos, dos símbolos, dos conhecimentos sacros, da história, da escatologia, da soteriologia etc. 


Muitos historiadores não desistiram, no entanto, de buscar uma origem para o Monoteísmo judaico ainda na Antiguidade. Se não era possível estabelecê-lo no fim do segundo milênio, se não estava posto já na composição do Pentateuco e na consolidação da monarquia davídica, em que momento da história dos israelitas poderíamos flagrá-lo? Quando foi que os israelitas deixaram de lado o concílio de deuses e partiram para uma visão mais ''sofisticada'' ou ''intolerante" [na segunda metade do século XX, o Monoteísmo passou a ser encarado muitas vezes sob a clave do exclusivismo fanático, não mais do ''avanço civilizacional"]?


No período pós II Guerra Mundial, a resposta se concentrou cada vez mais na Reforma do Rei Josias, acontecida nas décadas que antecederam a derrota de Jerusalém diante da Babilônia. Segundo o consenso do período, o Exílio da Babilônia marca uma reformulação poderosa na tradição judaica. É a partir do século VI e V a.C. que temos a versão definitiva da Torah, agora em hebraico [uma língua também nova]. Falei a respeito da formação do cânone escriturístico em uma série de postagens que se inicia em A Bíblia Protestante não é a da Igreja Primitiva [clique para ler], de modo que não vou me estender sobre este ponto. Mais importante é frisar que, nesta nova abordagem, se acreditava que os escribas do Judaísmo do Segundo Templo revisaram os mitos e textos mais antigos a fim de adequá-los à ideia de que os demais deuses não existiam, de que eram todos ídolos ''construídos por mãos humanas". Um monoteísmo radical sem espaço para um Conselho de deuses intervindo na Criação, e em que todas as entidades espirituais se tornam anjos no sentido descrito nos parágrafos anteriores. 


Para os pesquisadores da segunda metade do século XX, a revisão realizada pelos escribas e sacerdotes do Judaísmo pós-exílico não foi perfeita. É possível flagrar nos textos os motivos mitológicos mais antigos e entender a transição realizada da mentalidade cananeia para a nova abordagem monoteísta, influenciada pelos persas e pelo mundo helênico. O Judaísmo do Segundo Templo teria originado toda uma ''história deuteronômica'' da monarquia davídica já adaptada às Reformas do Rei Josias. Os livros proféticos refletiriam essa mudança na condenação mais extremada à idolatria, como se vê no "Pseudo-Isaías" [também chamado de Deutero-Isaías, já que os críticos da forma passaram a acreditar que o livro de Isaías foi composto em três períodos históricos diferentes]. E a literatura sapiencial desenvolvida entre os séculos III e I a.C. já traria uma perspectiva mais metafísica e sutil que contextualizava as Escrituras segundo o Logos grego.



É muito fácil perceber a projeção de temas protestantes no consenso historiográfico do período. É uma narrativa que cabe na fantasia de um Monoteísmo mosaico original que mais tarde foi deixado de lado em prol de um politeísmo cananeu e por práticas idolátricas, e depois recuperado por reformadores, mesma história que os protestantes imaginam para a Igreja. É possível ver também porque esta mesma narrativa se tornou cômoda para muitos católico-romanos e alguns cristãos ortodoxos. Ele permite que eles se livrem de todos aqueles mitos e símbolos e textos estranhos sobre Jardins, Montanhas Sagradas, Nephilim, Gigantomaquia, Concílios Divinos, Astrologia, Dilúvios etc. em prol de uma religião supostamente mais ''intelectualizada'' [leia-se, que não desafie demasiadamente o senso comum contemporâneo.]


A questão é que o mesmo ímpeto crítico da historiografia tem colocado tudo isto em xeque. É possível sustentar academicamente, sem qualquer problema, que os revisores do Judaísmo do Segundo Templo não tinham intenção nenhuma de esconder o Conselho de deuses, a camada astrológica das Escrituras, o Vice-Regente, nem tampouco os mitos do Pentateuco. Mais ainda, eles continuavam acreditando em tudo isto, como se flagra nos livros hoje canônicos e nos pseudopígrafos e apócrifos [O cânone não estava fechado até o século III e IV da Era cristã: clique para ler a série: O cânone judaico parte I]. 


As alegações pós-exílicas de que ''não há deuses ao lado de Iahweh'' não são em nada diferentes de declarações do mesmo tipo encontradas em escritos pré-exílicos ou na religiosidade cananeia. Não era a negação da existência dos outros deuses, mas uma declaração a respeito da incomparabilidade, do status especial e inalcançável do próprio Altíssimo. De modo similar, as acusações de idolatria não podem ser lidas da forma como os protestantes modernos e iconoclastas as encaram. Ídolo e Idolatria eram conceitos e práticas bem específicos, e que não significavam nem de longe apenas a confecção de imagens dos poderes celestes nem muito menos a crença tosca, e inexistente na Antiguidade, de que estas imagens eram as divindades elas próprias.



Ou seja, o Judaísmo do Segundo Templo, os escritos proféticos pós-exílicos, toda a literatura pseudopígrafa [que muitos consideravam canônica no período], todos os escritos sapienciais, as correntes judaicas anteriores à emergência do Judaísmo Rabínico nos primeiros séculos da Era Cristã, bem como a Igreja apostólica e os Padres dos primeiros séculos, viam o mundo de modo similar ao modelo ''cananeu''. E assim jamais poderiam ser descritos nos termos do monoteísmo consolidado durante a Era Moderna.


Daí não se tira, já me repetindo, a inexistência de mudanças durante o primeiro milênio antes de Cristo nem que as crenças do Judaísmo eram as mesmas dos assírios e babilônios. Mas é necessário ''limpar o terreno'' antes de mencionar as divergências entre os judeus e os cananeus, ou entre os cristãos e a religiosidade greco-romana. Afinal, protestantismo é uma novidade dos séculos XVI e XVII. O Iluminismo é uma novidade ainda mais tardia. E o progressismo, obviamente, não passa de ideologia.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

VERDADES ÉTNICO-RACIAIS QUE PODEM [OU NÃO] INCOMODAR


2024 é o primeiro ano em que o Dia da Consciência Negra é comemorado oficialmente como feriado nacional. É possível dizer então que os defensores da data, organizados em torno do Movimento Negro Unificado [MNU], venceram a batalha política iniciada quando a propuseram nos anos 1970. As principais justificativas do MNU para a comemoração do 20 de novembro eram: i. a necessidade de refletir sobre o escravismo e sua herança no país; ii. combater a chaga do racismo; iii. enfatizar o protagonismo histórico dos negros.


Mas eu acrescentaria um elemento a mais agora que o mito de Zumbi dos Palmares quase que eclipsou totalmente a Princesa Isabel. Refletir sobre o momento do próprio Movimento Negro, sempre tendo em mente que a fase atual da militância não resume nem realiza todas as suas possibilidades. Afinal, grande parte dos abolicionistas eram negros e veneravam a Princesa Isabel. O primeiro partido negro do país foi a Frente Negra Brasileira, ideologicamente nacionalista, de direita, e muito atrelada à Monarquia. A etapa atual do Movimento Negro, hegemonizada por uma mistura de trotskismo e de ideologia woke, está longe de ser a definitiva.


Pois bem, segundo os dados do IBGE, e mais especificamente o Censo de 2022:

--> Somente 10,2% da população brasileira se considera preta;
--> No Estado do Rio de Janeiro, o percentual da população que se considera preta sobe para 16,2%. Mas no Município de São Sebastião do Rio de Janeiro é de 15,6%;
--> A UF com maior percentual de população preta é a Bahia. Mas mesmo lá, não chegam a 1/4 do total [22,4%];
--> A capital com maior proporção de pretos é Salvador. Mas mesmo lá, não passam de 1/3 do total [34,1%].

Há outros dados do mesmo Censo que tendem a incomodar certo movimento negro, que força a barra para encaixá-los em ideias importadas dos Estados Unidos. Antes de listá-los, convém lembrar o seguinte: Pessoas que se dizem ''pardas'' no censo se consideram mestiças. Se declaram que são mestiças, é porque não se consideram nem brancos nem pretos. O movimento negro prefere fingir que mestiços não existem, o que transformaria quase metade dos brasileiros em vítimas de uma alucinação coletiva. Uma vez que admitam, a muito custo e depois de retórica evasiva, que mestiços existem, o movimento negro decide juntá-los todos sob o rótulo de ''afro-descendentes''.



Já escrevi alhures sobre a falsidade e o caráter deletério desse apagamento histórico. De todo modo, faz tanto sentido chamar um mulato [o movimento negro odeia essa palavra, mas aqui no Rio, a mulata é a tal] de afro-descendente quanto chamá-lo de euro-descendente. Se é mestiço, descende de ambos.

Vamos aos números:

-> 45,3% dos brasileiros se consideram pardos. No Censo de 2010 eram 43,1%. A consciência da mestiçagem, ou quem sabe a própria mestiçagem, cresceu no país nesse período;
--> No Estado do Rio de Janeiro, o percentual da população que se considera parda cai para 41,6%. No Município de São Sebastião do Rio de Janeiro é de 38,7%.
--> A UF com maior percentual de população parda é o Pará, com 69,9%. Percebam que é um Estado da Região Norte, de extrema matriz indígena -- com certeza, o peso da herança ameríndia na região é elevadíssimo. O que torna ainda mais risível querer sinonimizar ''pardo'' e ''afro-descendente''. A segunda UF com mais pardos é o Amazonas [68,8%], também marcadamente indígena e caboclo.


O racismo é ao mesmo tempo uma das maiores chagas e um dos grandes pilares do mundo contemporâneo, no sentido que a defesa do Ocidente implica antes de tudo em teses iluministas que são indissociáveis do cerne e das funções do racismo.


Afinal, o Iluminismo consagrou o eurocentrismo como única experiência civilizacional possível, o telos para o qual toda a humanidade está destinada. Nesse sentido, os herdeiros do Movimento Negro Unificado, hegemonizado pela Convergência Socialista, contribui para o racismo sempre que importa, sem qualquer crítica, agendas e teorias do Norte Geopolítico, aplicando-as sem qualquer rigor ao Brasil, que tem experiência histórica e cultura distintas das ocidentais.


Ora, não existe conceito universal de raça, nem uma forma única no mundo de ser racista. O equívoco de muitos militantes é o de ''universalizar'' conceitos e processos históricos raciais que só dizem respeito a algumas sociedades, como a norte-americana. Eles chegam ao ponto de exigir que brasileiros e sul-americanos em geral se definam racialmente como um norte-americano faria. Mas isto é nonsense, pois a construção da ideia de raça tanto em um quanto em outros país se deu de maneira diversa, e é impossível dizer que uma é ''mais ou menos'' correta do que a outra sem cair em uma postura racista, ou seja, sem hierarquizar os povos e suas experiências.



Infelizmente, a negação do Iluminismo realizada a partir de ideologias e tendências pós-modernas descambou para um tribalismo e relativismo que substitiu a noção de verdade e objetividade pela de desejos e consumo. Em vez de atacar o racismo a partir de uma noção universalista de homem, a nova moda intelectual ocidental o reforça por meio da absolutização de particularismos. Visando combater a chaga, muitos caem em posturas influenciadas pelo próprio racismo, e não conseguem assim se livrar de todo o cerne do pensamento iluminista.


Na tentativa de se contrapor ao racismo ocidental, que é geralmente identificado como uma hierarquia que coloca os caucasianos e o fenótipo branco acima das demais populações, alguns movimentos construíram um tipo de racismo para ''raças não brancas''. E assim surgiram racismos negros, afrocentrismos, racismos asiáticos e outras posturas mergulhadas na mesmíssima mentalidade, ainda que busquem valorizar tradições e culturas não ocidentais.





É hora de repensar esta agenda. O brasileiro, e o censo o demonstra, se considera cada vez mais como pardo. Se a categoria mestiço ou moreno fosse levada em conta pelo IBGE, a proporção dos que se recusam ao reducionismo racial seria certamente ainda maior. Em vez de importar noções raciais estrangeiras com o objetivo de incentivar um conflito étnico-racial para depois ofertar soluções também elas importadas -- e em geral fracassadas nas próprias sociedades que as conceberam --, precisamos de concepções que pensem as relações raciais a partir da civilização brasileira.


Comecemos deixando as narrativas pseudo-mitológicas de lado. O Quilombo dos Palmares não era uma proposta anti-escravista nem antirracista. Boa parte de seus habitantes eram mestiços. Muitos deles eram cristãos. A escravidão brasileira não tinha fundamento racial. A mestiçagem é um processo que se iniciou no país antes do início do tráfico atlântico de almas, e está associada à própria cultura portuguesa e tupi. O Brasil nunca foi uma Rodésia, nunca aderiu institucionalmente ao segregacionismo. Pelo contrário, construiu suas próprias vias de integração e convivência de etnias e raças distintas. A mestiçagem é o cerne da experiência histórica e da constituição de nosso povo. É necessário recuperar e revalorizar este processo.

O TOURO DE MALLORCA

"O silêncio digno de uma igreja na quadra central favorece a minha concentração. Porque, em uma partida de tênis, a maior batalha para mim é silenciar as vozes na minha cabeça, afastar tudo da minha mente com exceção do torneio em si e focar cada átomo do meu ser no ponto que estou disputando. Se tiver cometido um erro no ponto anterior, tenho de esquecê-lo; se um vislumbre da vitória se insinua, preciso eliminá-lo. ''

Rafael Nadal, 2008





Agora se tornou mais realidade do que nunca. Rafael Nadal fez sua derradeira partida como tenista profissional ontem, pela tradicional e cada vez mais maltratada Copa Davis. Apesar de não ser um fã do estilo do espanhol, o considero o modelo acabado do esportista. Seus fãs veem nele a encarnação da superação, da persistência, da raça, do vigor físico juvenil, e da gana de vencer não só a partida mas todo e qualquer ponto.


Quem acompanhou a carreira de Rafa sabe que não foi apenas isto. Ele não era só um sujeito raçudo, embora ninguém tivesse esse perfil mais do que ele. Nadal foi um dos maiores gênios táticos dentro de uma quadra de tênis. Capaz de elaborar uma estratégia de jogo e segui-la à risca. E também de ter alternativas a ela e mudar sempre que necessário.


Daí que derrotar Nadal em uma quadra exigia muito mais do que estar num bom dia, de ter a inspiração dos deuses. Seus adversários, e estou falando de nêgo do naipe de Federer, Djokovic e Murray, logo perceberam que não bastava jogar bem para se sair melhor contra o maiorquino. Era necessário suplantar a guerra mental que ele dominava tão bem. Em uma lista dos tenistas de mente mais poderosa da Era Aberta, Nadal facilmente sobe ao pódio. Sua competitividade era acrescida desse fator raro, ele sabia que, por mais bela e monumental que fosse uma jogada, ela valia apenas um ponto. E que depois de todo game, a contagem era zerada. E que o próximo set começaria 0 a 0. Não havia espaço para ponderações, arrependimentos e devaneios, só para intensidade máxima, aplicação tática, xadrez com raquete em mãos.


Essa combinação se tornava ainda mais mortal no saibro. Nunca ninguém dominou tanto uma superfície do esporte dos Reis quanto Rafa o fez na terra batida. Enfrentá-lo em Roland Garros era o maior desafio do tênis, um feito quase tão memorável quanto levantar um Grand Slam. Todos lembram de Robin Soderling, não porque ele tenha sido número 1 do mundo, não porque ele tenha sido campeão de major. Mas porque foi o primeiro a vencer Nadal na Philippe Chatrier. O "Touro" venceu mais de 91% das partidas que fez no saibro. Em Grand Slam, que exige melhores de cinco sets, a proporção cresce para inigualáveis 97,5%. No fundo, Rafa disputou 115 partidas no saibro em melhor de 5 sets, e só foi derrotado três vezes. Surreal para alguém que se aposenta aos 38 anos de idade.





É desnecessário dizer que sua carreira não se resume só ao saibro. Ele tem nada menos que 8 Grand Slam em superfícieis diferentes, mesma quantidade de troféus que Agassi, Lendl e Connors em toda a carreira. Os números são impressionantes, e só não causam mais espanto porque sempre comparados com os de Federer e Djokovic, seus dois principais rivais e com os quais Rafa escreveu páginas imortais na história do esporte.


Mas não falemos hoje dos rivais. E sim do maior nome do esporte espanhol, que fez 30 finais de majors e levantou 22 troféus, que tem 36 títulos de Masters 1000, 92 taças em simples e 11 em duplas, que tem duas medalhas de ouro olímpicas [que ele valorizava como poucos de seus colegas]. Que tem 209 semanas liderando o ranking da ATP, e terminou na liderança do ranking em 5 temporadas.


Nem esses números dão a dimensão do que vimos em quadra.



terça-feira, 19 de novembro de 2024

O QUE NÃO É DITO SOBRE O PLANO GOLPISTA

 


Agora que conhecemos detalhes do plano para sequestrar e possivelmente matar os então Presidente e Vice-Presidente eleitos, e o então Presidente do TSE, algumas coisas tem passado batido nas reações mais gerais do grande público e de parte considerável da mídia.


Ora, muitos fatores impediram que os birutas levassem o plano a cabo. Um dos principais foi a falta de adesão da maioria esmagadora do Alto Comando do Exército. E sem o Alto Comando do Exército, o golpe tal como planejado fracassaria miseravelmente. O 'não' dado pelos principais Comandantes-- estou falando daqueles que efetivamente tem tropas à disposição -- foi fundamental para que o chefe da conspiração, que quase certamente é o próprio Bolsonaro, titubeasse e não desse o aval na hora 'h'. Provavelmente, tentaram convencer o Alto Comando, ou pelo menos o Comandante do Exército, até o fim, mas sem resultado.


Muita gente prefere concentrar atenção no Exército, até de forma jocosa, como se o plano tivesse sido elaborado minuciosamente pela instituição, com todos os seus principais quadros envolvidos. Pelo contrário, a estratégia era levada adiante por um círculo restrito de oficiais com ligações pessoais com Bolsonaro e, provavelmente, visto com muita desconfiança ou franca desaprovação fora desse grupo.


Interessa focar no Exército porque o mito fundador da Nova República defende que a Constituição de 1988 é consequência de uma batalha da sociedade civil contra militares que realizaram uma quartelada em 1964, isentando assim todas as organizações que deram apoio direto e indireto ao golpe e ao regime que nasceu dele. E, de forma mambembe e até ridícula, dando a guerrilheiros comunistas com financiamento e lealdades estrangeiras algum tipo de heroísmo em prol da Pátria e, pior ainda, da "democracia liberal".


Outra coisa pouca notada é a participação de policiais federais. Wladimir Soares, que trabalhava na segurança de Lula e repassou informações para os golpistas, e que também frequentava os acampamentos montados em frente aos quartéis, é figura importante no esquema golpista. Não é o primeiro policial federal envolvido, pois já se conhece a pressão exercida por Bolsonaro sobre as chefias da corporação no caso de investigação de seu filho Flávio.


Chama atenção também que o financiamento de toda essa operação seja varrido para debaixo do tapete. É como se estivéssemos lidando com intrigas palacianas ou uma mera pendenga entre corporações do Estado, sem qualquer participação da sociedade civil, justamente o mito da Nova República em relação a 1964. Mas de onde vem a grana? Que outras figuras do mundo político-partidário, do Judiciário, e do empresariado se envolveram direta e ou indiretamente com esses planos? Quantos deles sabiam e mexeram os pauzinhos para ajudar os conspiradores? Nada disso parece importar tanto a Alexandre de Moraes e ao grosso da mídia. Mais ou menos como se fala de ''corrupção'', centrando denúncias, escândalos e investigações apenas no desvio de agentes públicos e deixando de lado as ''forças do mercado'', aqui também os financiadores e apoiadores na sociedade civil se tornam invisíveis.


Por fim, impressiona como o mundo não apenas gira mas capota. Não tem muito tempo que a esquerda reclamava de certas oligarquias políticas que conduziram o impeachment de Dilma, e de que a traição de Temer se tornou um símbolo, e da Operação Lava-Jato liderada pelos execráveis Sérgio Moro e Deltan Dallagnol. Neste exato momento, essa mesma esquerda faz de Alexandre de Moraes, um juristocrata ainda mais perigoso e competente que Sérgio Moro, o grande herói da manutenção da democracia, como se o STF não estivesse em disputa com os demais Poderes e também com as Forças Armadas pelo 'direito' de exercer o Poder Moderador do país. Não à toa, Alexandre de Moraes concentra poderes de modo incompatível com a Constituição. Ou nem tão incompatível assim, já que o próprio STF se diz competente para 'interpretar' o texto de acordo com suas próprias conveniências travestidas de teoria jurídica da mais alta qualidade.


Falar do plano golpista conduzido pelo entorno de Bolsonaro é contar apenas metade da história. Mas as principais forças políticas do Brasil não parecem estar dispostas a falar nada além da versão oficial, que é aquela que Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Barroso, Fux etc. tem na ponta da língua, e que será repercutida pelas principais empresas de informação desde que o problema todo se concentre no Exército, o grande bode expiatório da Nova República.