2024 é o primeiro ano em que o Dia da Consciência Negra é comemorado oficialmente como feriado nacional. É possível dizer então que os defensores da data, organizados em torno do Movimento Negro Unificado [MNU], venceram a batalha política iniciada quando a propuseram nos anos 1970. As principais justificativas do MNU para a comemoração do 20 de novembro eram: i. a necessidade de refletir sobre o escravismo e sua herança no país; ii. combater a chaga do racismo; iii. enfatizar o protagonismo histórico dos negros.
Mas eu acrescentaria um elemento a mais agora que o mito de Zumbi dos Palmares quase que eclipsou totalmente a Princesa Isabel. Refletir sobre o momento do próprio Movimento Negro, sempre tendo em mente que a fase atual da militância não resume nem realiza todas as suas possibilidades. Afinal, grande parte dos abolicionistas eram negros e veneravam a Princesa Isabel. O primeiro partido negro do país foi a Frente Negra Brasileira, ideologicamente nacionalista, de direita, e muito atrelada à Monarquia. A etapa atual do Movimento Negro, hegemonizada por uma mistura de trotskismo e de ideologia woke, está longe de ser a definitiva.
Pois bem, segundo os dados do IBGE, e mais especificamente o Censo de 2022:
--> No Estado do Rio de Janeiro, o percentual da população que se considera preta sobe para 16,2%. Mas no Município de São Sebastião do Rio de Janeiro é de 15,6%;
--> A UF com maior percentual de população preta é a Bahia. Mas mesmo lá, não chegam a 1/4 do total [22,4%];
--> A capital com maior proporção de pretos é Salvador. Mas mesmo lá, não passam de 1/3 do total [34,1%].
Há outros dados do mesmo Censo que tendem a incomodar certo movimento negro, que força a barra para encaixá-los em ideias importadas dos Estados Unidos. Antes de listá-los, convém lembrar o seguinte: Pessoas que se dizem ''pardas'' no censo se consideram mestiças. Se declaram que são mestiças, é porque não se consideram nem brancos nem pretos. O movimento negro prefere fingir que mestiços não existem, o que transformaria quase metade dos brasileiros em vítimas de uma alucinação coletiva. Uma vez que admitam, a muito custo e depois de retórica evasiva, que mestiços existem, o movimento negro decide juntá-los todos sob o rótulo de ''afro-descendentes''.
Já escrevi alhures sobre a falsidade e o caráter deletério desse apagamento histórico. De todo modo, faz tanto sentido chamar um mulato [o movimento negro odeia essa palavra, mas aqui no Rio, a mulata é a tal] de afro-descendente quanto chamá-lo de euro-descendente. Se é mestiço, descende de ambos.
Vamos aos números:
-> 45,3% dos brasileiros se consideram pardos. No Censo de 2010 eram 43,1%. A consciência da mestiçagem, ou quem sabe a própria mestiçagem, cresceu no país nesse período;
--> No Estado do Rio de Janeiro, o percentual da população que se considera parda cai para 41,6%. No Município de São Sebastião do Rio de Janeiro é de 38,7%.
--> A UF com maior percentual de população parda é o Pará, com 69,9%. Percebam que é um Estado da Região Norte, de extrema matriz indígena -- com certeza, o peso da herança ameríndia na região é elevadíssimo. O que torna ainda mais risível querer sinonimizar ''pardo'' e ''afro-descendente''. A segunda UF com mais pardos é o Amazonas [68,8%], também marcadamente indígena e caboclo.
O racismo é ao mesmo tempo uma das maiores chagas e um dos grandes pilares do mundo contemporâneo, no sentido que a defesa do Ocidente implica antes de tudo em teses iluministas que são indissociáveis do cerne e das funções do racismo.
Afinal, o Iluminismo consagrou o eurocentrismo como única experiência civilizacional possível, o telos para o qual toda a humanidade está destinada. Nesse sentido, os herdeiros do Movimento Negro Unificado, hegemonizado pela Convergência Socialista, contribui para o racismo sempre que importa, sem qualquer crítica, agendas e teorias do Norte Geopolítico, aplicando-as sem qualquer rigor ao Brasil, que tem experiência histórica e cultura distintas das ocidentais.
Ora, não existe conceito universal de raça, nem uma forma única no mundo de ser racista. O equívoco de muitos militantes é o de ''universalizar'' conceitos e processos históricos raciais que só dizem respeito a algumas sociedades, como a norte-americana. Eles chegam ao ponto de exigir que brasileiros e sul-americanos em geral se definam racialmente como um norte-americano faria. Mas isto é nonsense, pois a construção da ideia de raça tanto em um quanto em outros país se deu de maneira diversa, e é impossível dizer que uma é ''mais ou menos'' correta do que a outra sem cair em uma postura racista, ou seja, sem hierarquizar os povos e suas experiências.
Infelizmente, a negação do Iluminismo realizada a partir de ideologias e tendências pós-modernas descambou para um tribalismo e relativismo que substitiu a noção de verdade e objetividade pela de desejos e consumo. Em vez de atacar o racismo a partir de uma noção universalista de homem, a nova moda intelectual ocidental o reforça por meio da absolutização de particularismos. Visando combater a chaga, muitos caem em posturas influenciadas pelo próprio racismo, e não conseguem assim se livrar de todo o cerne do pensamento iluminista.
Na tentativa de se contrapor ao racismo ocidental, que é geralmente identificado como uma hierarquia que coloca os caucasianos e o fenótipo branco acima das demais populações, alguns movimentos construíram um tipo de racismo para ''raças não brancas''. E assim surgiram racismos negros, afrocentrismos, racismos asiáticos e outras posturas mergulhadas na mesmíssima mentalidade, ainda que busquem valorizar tradições e culturas não ocidentais.
É hora de repensar esta agenda. O brasileiro, e o censo o demonstra, se considera cada vez mais como pardo. Se a categoria mestiço ou moreno fosse levada em conta pelo IBGE, a proporção dos que se recusam ao reducionismo racial seria certamente ainda maior. Em vez de importar noções raciais estrangeiras com o objetivo de incentivar um conflito étnico-racial para depois ofertar soluções também elas importadas -- e em geral fracassadas nas próprias sociedades que as conceberam --, precisamos de concepções que pensem as relações raciais a partir da civilização brasileira.
Comecemos deixando as narrativas pseudo-mitológicas de lado. O Quilombo dos Palmares não era uma proposta anti-escravista nem antirracista. Boa parte de seus habitantes eram mestiços. Muitos deles eram cristãos. A escravidão brasileira não tinha fundamento racial. A mestiçagem é um processo que se iniciou no país antes do início do tráfico atlântico de almas, e está associada à própria cultura portuguesa e tupi. O Brasil nunca foi uma Rodésia, nunca aderiu institucionalmente ao segregacionismo. Pelo contrário, construiu suas próprias vias de integração e convivência de etnias e raças distintas. A mestiçagem é o cerne da experiência histórica e da constituição de nosso povo. É necessário recuperar e revalorizar este processo.
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