"Vamos curar nosso país. Vamos consertar nossas fronteiras, consertar tudo no nosso país. Fizemos história, superamos obstáculos considerados impossíveis. É uma vitória sem precedentes."
Donald Trump
A vitória de Donald Trump foi esmagadora e histórica, e fez dele o maior fenômeno da política norte-americana desde Franklin Delano Roosevelt. Repudiado pelo establishment como um ''perigo para a democracia norte-americana'', emblema da divisão e conflito no seio do Deep State, não conseguiu se reeleger, deixou a Casa Branca com pecha de golpista e semeador de uma guerra civil. Seus inimigos mobilizaram as instituições possíveis na tentativa de enterrá-lo politicamente, inclusive apelando para a Justiça e forjando um grande arco de ''resistência democrática'' que trazia desde o início a marca da paródia. Não podemos esquecer também as tentativas de assassiná-lo, que trouxeram várias questões sobre a omissão de agências de segurança.
E eis que Trump retorna com um discurso tão ou mais radical, varrendo os swing-states, surrando Kamala no voto popular [são pelo menos quatro pontos percentuais de vantagem, uma lavada nos EUA], e levando o Partido Republicano à conquista da maioria no Senado e na Câmara, além de maioria dos Governadores. Ele praticamente dividiu os votos latinos com os Democratas, fez um arrastão entre os eleitores negros, reconquistou o ''cinturão da ferrugem'', e transformou a Flórida [um swing state até a década passada] em um novo Texas.
De nada adiantou os identitários escolherem uma ''Janja ianque'', com origem na Califórnia, e uma narrativa de defesa do feminismo contra o avanço do Patriarcado por causa da derrocada do abortismo -- causada por uma das principais consequências do primeiro mandato de Trump, o domínio conservador na Corte Suprema.
A reviravolta foi possível porque Trump nunca confiou somente em uma suposta verve ''populista'' [ou seja, no seu carisma eleitoral]. O trumpismo ocupou espaços importantes nas instituições. Seu controle sobre o Partido Republicano avançou continuamente e a própria versão de que teria sido roubado nas eleições de 2020 serviu ao propósito de expandir esse domínio sobre um Partido que tem capilaridade imensa nas demais instituições e na sociedade norte-americana.
Trump perdeu a Casa Branca, mas manteve um poder que ia muito além de sua popularidade em parte do eleitorado, uma lição que a direita brasileira, atarantada em torno da figura de Bolsonaro, não entendia até pouco tempo atrás, e que já era gritada por Olavo de Carvalho -- ele mesmo -- décadas atrás: vitórias eleitorais fugazes são muito insuficientes, o segredo está na ocupação de espaços vitais. É isso, aliás, que mantém a existência do identitarismo mesmo diante de seu fracasso diante da população. É por isso que Olavo de Carvalho falava tanto, ainda que de modo intencionalmente caricatural, de "gramscismo". O "guru da nova direita" era um Calabar, mas estava longe de ser um idiota.
Trump não foi eleito Presidente. Ele foi aclamado como Imperador. Nos próximos dois anos [antes das eleições de meio-mandato], terá poder suficiente para reformular o que quiser. Desde Lyndon Johnson, que usufruía o prestígio do mítico John Kennedy, que um Presidente não reunia tamanho controle do Executivo, do Legislativo e da Suprema Corte. A hegemonia Democrata nos anos 1960 permitiu a implementação dos Direitos Civis, de Roe vs Wade, o avanço do Direito Humanitário Internacional etc. De modo similar, Trump poderá levar adiante o Projeto 2025, cujo objetivo é inflar o Poder Executivo, reeditando o "spoil system", muitas vezes atribuído a Andrew Jackson, e subordinar as organizações de segurança mais visíveis do Deep State, dando configurações mais unitárias e autoritárias aos EUA. O modelo liberal sofreria bastante impacto e se retrairia em prol de uma maior centralização em torno da figura presidencial.
A elite política e intelectual norte-americana sempre se viu, em certa medida, como uma reedição da República romana, principalmente em seu formato político oligárquico. Se esta analogia estiver correta, a nova Roma está perto de entrar agora em seu período cesarista. Diferente do Império original, no entanto, essa transformação institucional interna se dá em um momento de decadência econômica e geopolítica, além de profunda crise ideológica e de identidade nacional.
Escrevi anos atrás que, ainda que por um lado Trump represente a ascensão de uma direita norte-americana mais próxima do nacionalismo populista europeu, ele também tem raízes muito profundas nos EUA. O isolacionismo era consenso antes da I Guerra Mundial, e só foi abandonado de fato nos anos 1940. A ação imperialista ianque fora do continente americano sempre foi criticada por paleoconservatives. Tampouco é novo o discurso de que a ''guerra de costumes'' deva ser enfrentada prioritariamente nos estados. O federalismo norte-americano sempre foi muito poderoso, e muito mobilizado por forças racistas ou conservadoras e religiosas. Por fim, o crescimento industrial ianque se fundamentou, por um século, na aliança com os Robber Barons, pouco taxados e com carta branca pra explorar os trabalhadores e liderarem sem amarras impérios industriais; além de um severo protecionismo [o ''sistema americano''] para impulsionar a indústria nacional.
Nesse sentido, Trump tem um sabor de saudosismo da América Profunda em relação aos elementos que, de fato, deram prosperidade e poder ao país, um pathos arcaísta incompatível com a ideologia progressista mainstream, sempre apegada ao amor pelas novidades e à condenação anacrônica do passado. Como todo saudosismo, essa Era Dourada imaginada esconde uma multidão de problemas, o que não a torna menos legítima aos olhos da população. O Império hegemônico em crise enfrenta uma guerra interna sobre seu destino e essa América Profunda nas pequenas cidades, subúrbios e áreas rurais, já muito debilitada pelos rumos tomados no último meio século, ainda tem músculos suficientes para desafiar aquilo que se desenhava como o novo ''destino manifesto'' do cosmopolitismo, religião ''woke'', globalismo. Ela prefere um Império ianque mais tradicional, mesmo que para isto tenha de se tornar um Império menos abrangente em termos mundiais.
O impacto no Brasil vai ser grande, já que o establishment atual se abraçou de vez com o Partido Democrata. A estratégia da Nova República para impedir sua demolição pelo voto popular é o de que estaria ameaçada por uma grande conspiração fascista mundial centrada nos EUA e em Bannon, que tentaria ressuscitar o regime militar contra o qual, dizia a mitologia, toda a sociedade brasileira lutou nos anos 1980. Essa narrativa não colou, apesar de imposta por mecanismos autoritários centrados do STF, e que encontravam sua justificativa na tese da "Democracia Militante" [uma reedição juristocêntrica do conceito de Ditadura da ciência política mais clássica]. Com pouco apoio popular interno e confrontada pelo que acontece no plano internacional, os grupos de pressão que mantém a Nova República só conseguirão manter as instituições atuais se partirem pra uma autoritarismo ainda mais explícito, o que não parece nada viável sem apoio norte-americano.
Por fim, a legitimidade do discurso identitário desceu mais um degrau. Sua derrota para o trumpismo foi acachapante. Isso significa que a ideologia dominante do establishment brasileiro, da mídia às universidades, e incentivada pelas grandes empresas, vai estar mais na defensiva do que nunca. E que todas as desculpas que ela usou para se segurar no poder nos últimos dez anos ["vamos nos dar as mãos", "vamos defender a democracia", "combate contra as forças do caos", "cuidado que Hitler está voltando"] não surtiram muito efeito na população. Reeditá-las seria expor ainda mais o desgaste, anacronismo e decadência esquerdeira.
Que discurso alternativo existe na sociedade brasileira para desafiar os espaços deixados pelo identitarismo que bate em retirada? Eis a grande questão. No momento, só um nacionalismo de discurso cristão teria força suficiente para ocupar o lugar.
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