quarta-feira, 6 de novembro de 2024

GÊNESIS, UM DOS PILARES DA DOUTRINA CRISTÃ, ou: E no princípio a soteriologia e a escatologia

 "É apropriado que peguemos as Escrituras Sagradas e descubramos nelas o que é, e de que maneira se dá, a vinda do Anticristo; e em que ocasião e tempo o ímpio se manifestará; e de que lugar e tribo ele virá; e qual é o seu nome, que está indicado pelo número nas Escrituras; e de que maneira ele vai espalhar o erro entre os povos, reunindo-os desde os confins da terra; e como ele suscitará a tribulação e a perseguição contra os santos; e como ele se exaltará como Deus; e qual será seu fim".

Santo Hipólito de Roma


O filho da perdição


Os cristãos costumam defender o Jardim do Éden e a Criação de Adão e Eva dos ataques da mentalidade materialista e iluminista dada a importância destes elementos para a cristologia, a soteriologia e a escatologia. O Glorioso Apóstolo São Paulo não deixa dúvidas que o pecado entrou no mundo por um homem, fazendo um paralelo com a vitória sobre a morte instanciada também em uma pessoa humana. São tópicos importantes da Teologia, que apontam que uma pessoa pode ser, de alguma maneira, a síntese das possibilidades e elementos de toda a humanidade. 


Mas não basta defender a historicidade/realidade/fisicalidade dos três primeiros capítulos de Gênesis para manter a integridade da Boa Nova. Saltar de Éden para Abrão, encarando os capítulos 4 a 11 como ''alegorias'' sem consistência histórica e corpórea, é tornar a Santa Tradição incompreensível, e se apartar inteiramente da mente da Igreja tal como exposta nas Escrituras e nos Santos Padres.


A Tradição fala de uma Apostasia que envolve ao mesmo tempo potências celestes e os homens. Apostasia tem o sentido de ''defecção'', mais ou menos como aquele soldado que abandona o posto, que desertou, que dormiu em serviço. Pode ser entendida, em termos místicos e espirituais, como uma dispersão do Nous, falta de sobriedade, de consciência alerta e focada naquela única coisa realmente importante. 


Mas o Cristianismo é também uma História Sagrada, não apenas um mapa do que ocorre na alma de cada homem em sua jornada de retorno para o Pai. É um drama cósmico em toda sua inteireza. A defecção, a apostasia, gera uma guerra, que é espiritual porque envolve o destino final de cada alma, mas é também histórica e cósmica, porque envolve toda a criação, incluindo a material. Este conflito é descrito em termos bélicos nas Escrituras e nos Santos Padres, e tem literalmente o homem no centro do campo de batalha e dos objetivos de guerra. 

Tubalcaim em sua forja


É que Apostasia dos Anjos se deu por inveja do homem, que é expressão da inveja pela Economia Divina e pelo Verbo. O diabo não pretende derrotar o Deus Absoluto ou tomar o lugar do Altíssimo, mas substituí-lo no coração do homem, rei da criação, e portanto governar o Cosmos. Gênesis não é um relato curioso de obscuras origens sobre as quais só poderíamos nos referir de modo alegórico. É uma Revelação sobre a declaração de guerra de anjos contra o homem, da tentativa de Satã de se tornar senhor da criação ao dominar a criatura que foi destinada para o reinado. Sem levar esta Revelação a sério, não é possível compreender a dimensão da guerra diabólica -- a Grande Apostasia, o Mistério da Iniquidade -- nem compreender a abrangência da resposta dada por Deus a esta querela. São João Teólogo é muito explícito sobre isso:

"Considerai com que amor nos amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos de fato. Por isso, o mundo não nos conhece, porque não o conheceu. Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando isso se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porquanto o veremos como ele é. E todo aquele que nele tem essa esperança torna-se puro, como ele é puro. Todo aquele que peca transgride a Lei, porque o pecado é a transgressão da Lei. Sabeis que (Jesus) apareceu para tirar os pecados, e que nele não há pecado. Todo aquele que permanece nele não peca; e todo o que peca não o viu, nem o conheceu. Filhinhos, ninguém vos seduza: aquele que pratica a justiça é justo, como também (Jesus) é justo. Aquele que peca é do diabo, porque o diabo peca desde o princípio. Eis porque o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do diabo. Todo o que é nascido de Deus não peca, porque o germe divino reside nele; e ele não pode pecar, porque nasceu de Deus. É nisso que se conhece quais são os filhos de Deus e quais os do diabo: todo o que não pratica a justiça não é de Deus, como também aquele que não ama o seu irmão. Pois esta é a mensagem que tendes ouvido desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não façamos como Caim, que era do Maligno e matou seu irmão. E por que o matou? Porque as suas obras eram más, e as do seu irmão, justas. Não vos admireis, irmãos, se o mundo vos odeia. Nós sabemos que fomos transladados da morte para a vida, porque amamos nossos irmãos. Quem não ama permanece na morte. Quem odeia seu irmão é assassino. E sabeis que a vida eterna não permanece em nenhum assassino. Nisto temos conhecidos o amor: (Jesus) deu sua vida por nós. Também nós devemos dar a nossa vida pelos nossos irmãos." [I Jo 3:1 a 16]


Há muita profundidade nessa passagem do Discípulo Amado, mas eu gostaria de destacar os seguintes pontos ligados à nossa conversa: i. O homem foi criado para ser filho de Deus. A palavra filho aqui tem de ser entendida como ''imagem menor''. O filho é a imagem do Pai, pois filho de peixe, peixinho é. O homem é chamado a ser um ''Pequeno Iahweh''; ii. Trata-se de um mistério enorme, porque não é só o da imagem de Deus, mas tornar-se semelhante a Deus [theosis]; iii. O grande obstáculo para tanto são as obras do diabo, que em vez de nos tornar filhos de Deus nos tornam filhos do cramulhão, em vez de nos tornar deuses [pela Graça] nos tornam capirotos [pelo pecado]; iv. As obras do diabo são o pecado e a morte, e ambas estão associados ao homicídio. O diabo é o assassino original, homicida desde o princípio. Mas em termos humanos, o arquétipo do assassino mencionado por São João é Caim, que odeia seu irmão e o mata por inveja, o mata porque seu coração é mau, porque está dominado pelo pecado e pelo diabo; v. Caim se torna no relato o antípoda de Cristo, sua antítese: o homicida, que peca e portanto é filho do diabo, e que então só gera morte vs Jesus Cristo, que dá sua vida por amor de todos, e portanto propicia a vida eterna.

Ataque de um íncubo


Pois bem, todas as questões elencadas por São João Teólogo nesta passagem são conhecidas por meio de Gênesis. A morte entrou no mundo por meio do pecado ancestral, quando Adão é expulso do Éden, o Paraíso Terrenal. A consequência é que eles retoram ao pó, pois foram formados do pó da terra; e o Grande Dragão, a Serpente Primitiva [a serpente é a imagem dos Serafins], perde sua verticalidade e se arrasta se alimentando do po da terra, ou seja, se torna senhor do Hades, devorador de almas. 


Mas Adão não se torna ''escravo do pecado'', um transgressor, alguém dominado pelo diabo. Suas obras eram justas, assim como justas eram as obras de Abel. O arquétipo de transgressão, do homem que se deixa dominar pelo pecado -- no sentido dito pelo Apóstolo São João, de ''transgressão à Lei", ou seja, de 'anomia', 'iniquidade', 'caos', 'destruição' --, esse personagem é Caim, o primeiro homicida que, assim como o diabo invejou o sentido da criação do homem, inveja as obras justas de seu irmão e o mata. E assim, Caim se torna o protótipo do filho do diabo, aquele que se torna semelhante ao capiroto, que é o deus que governa seu coração. Este é um tema importante para a escatologia, porque se liga à figura do Anticristo. Estes eram os ensinamentos dos Padres, bastando exemplificar com Santo Irineu de Lyon em "Contra as Heresias":

"[H]á nesta besta [o anticristo], quando ela surgir, a recapitulação de todos os tipos de iniquidade e de todo o engano, de modo que o poder da apostasia, fluindo e sendo encerrado nele, possa ser enviado para a fornalha de fogo. De maneira apropriada, seu nome terá o número de seiscentos e sessenta e seis, já que ele resume em sua pessoa toda a mistura de maldade que teve lugar antes do dilúvio por causa da apostasia dos anjos. Pois Noé tinha seiscentos anos de idade quando o dilúvio veio à terra, varrendo o mundo rebelde devido à geração infame que viveu nos tempos de Noé. E o Anticristo também sintetiza todos os erros dos ídolos criados desde o dilúvio, juntamente com o assassinato dos profetas e o extermínio dos justos." [V:29:2]


Existe muita coisa importante nessa passagem, vamos abordar com calma algumas delas. Primeiro, a figura do Anticristo é a realização plena do protótipo que está dado em Caim: o homem cuja mente está dominada pelo diabo de modo que tudo nele se torne energia do próprio diabo. Daí que o anticristo é plenamente filho do cramulhão. Isto faz parte do plano diabólico contra o homem, a Igreja e Deus, o plano iniciado com a sedução de Eva e cuja etapa seguinte foi a possessão de Caim. Notem que usei a palavra possessão, porque é disto que se trata no fim das contas, o diabo domina e governa o Nous [coração] e as energias humanas são cada vez mais energias do cramulhão, de modo que o diabo substitua deus na criação. 

Asmodeus, demônio citado no livro de Tobit


As Escrituras Sagradas, os Gloriosos Apóstolos e os Santos Padres não tratam isso apenas de uma forma mística, embora  seja assim também. O Dilúvio é uma imagem do Batismo, que introduz o Espírito Santo no coração de cada cristão e expulsa o diabo lá de dentro. Mas quem está disposto a encarar isso só pela perspectiva do drama na alma humana está muito próximo de abandonar o Cristianismo. Pois o Batismo só ocorre porque Cristo encarnou e deificou as águas no Rio Jordão [Festa da Teofania]. Sem este evento histórico, sem Batismo, sem drama místico do Espírito Santo no Nous dos homens. E estes eventos são históricos porque os problemas que eles visam solucionar são igualmente históricos, físicos, corporais. 

"No que diz respeito à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e nossa reunião com ele, rogamo-vos, irmãos, não vos deixeis facilmente perturbar o espírito e alarmar-vos, nem por alguma pretensa revelação nem por palavra ou carta tidas como procedentes de nós e que vos afirmassem estar iminente o dia do Senhor. Ninguém de modo algum vos engane. Porque primeiro deve vir a apostasia, e deve manifestar-se o homem da iniquidade, o filho da perdição, o adversário, aquele que se levanta contra tudo o que é divino e sagrado, a ponto de tomar lugar no Templo de Deus, e apresentar-se como se fosse Deus. Não vos lembrais de que vos dizia estas coisas, quando ainda estava convosco? Não vos lembrais de que vos dizia estas coisas, quando estava ainda convosco? Agora, sabeis perfeitamente que algo o detém, de modo que ele só se manifestará a seu tempo. Porque o mistério da iniquidade já está em ação, apenas esperando o desaparecimento daquele que o detém. Então, o tal ímpio se manifestará. Mas o Senhor Jesus o destruirá com o sopro de sua boca e o aniquilará com o resplendor de sua vinda. A manifestação do ímpio será acompanhada, graças ao poder de Satanás, de toda a sorte de portentos, sinais e prodígios enganadores. Ele usará de todas as seduções do mal com aqueles que se perdem, por não terem cultivado o amor à verdade que os teria podido salvar. Por isso, Deus lhes enviará um poder que os enganará e os induzirá a acreditar no erro. Desse modo, serão julgados e condenados todos os que não deram crédito à verdade, mas consentiram no mal." [II Tessalonicenses 2:1 a 12]


O Anticristo, o filho da perdição, é também um homem que instancia toda transgressão [anomia, caos, perdição, pecado]. Ele é plenamente filho do diabo, que recebe suas energias diretamente de Satã. O protótipo desse homem histórico, que será derrotado pela Gloriosa Vinda do Senhor -- que é um evento que ocorre na alma mas também no cosmos e na História -- é outro personagem histórico: Caim e sua linhagem, que como ensinou Santo Irineu de Lyon, já operava o poder da Apostasia. Essa história é contada em Gênesis. Como Caim deixou que o pecado dominasse seu Nous, e como ele imitou o diabo em sua inveja pela justiça de seu irmão, e como o matou. E como ele se tornou maldito como a serpente, tão maldito que era repudiado pela própria terra, que foi obrigada a engolir sangue humano. Negado pela terra, ele se torna errante, como as estrelas móveis, e sua descendência inaugura um novo modo de existência, funda a primeira cidade, cujo nome está ligado ao da Babilônia [que se torna arquétipo da cidade fundada e governada pelo filho do diabo, símbolo que também será usado na escatologia cristã, e presente nas Escrituras do início ao fim]. 

Inscrição acadiana sobre o Rei Divino Shark-Kali-Sharri


O surgimento da civilização está diretamente associado à apostasia dos anjos. Não apenas ao diabo tentando Adão, mas os anjos liderados por Azazel na rebelião no Monte Hermón, e que estabelecem um intercurso blasfemo com mulheres, o paradigma da bruxa, e ensinam aos homens as ciências ocultas, e as artes industriais e tecnologias que levam ao avanço civilizacional. E que geram, DE FATO, filhos do diabo, os Gigantes, uma prole de amaldiçoados, gestados por este conhecimento proibido que os cainitas receberam das hostes celestes rebeladas. 


Por isto também estes Gigantes, os Nephilim, são figuras dos falsos mestres, daqueles que atingiram uma gnose demoníaca, e que são heresiarcas. As civilizações originais são fundadas e governadas por estes "homens divinos", na verdade filhos do diabo, que os parasitam e os canibalizam, e pecam contra toda a natureza. Deus colocou fim a esta orgia satanista que governava a humanidade por meio do Dilúvio, mas os espíritos dos Gigantes tiveram permissão para permanecer rondando a terra e levando os homens à destruição. São os espíritos sem corpos, os demônios, que possuem os homens, e a que me referi quando falei dos vampiros, demônios, mortos-vivos porque rejeitados pela terra, sedutores de mulheres, sugadores de sangue, parasitas que infestam o mundo.


Tudo isso é histórico para as Escrituras, os Gloriosos Apóstolos e os Santos Padres, não um drama que se dá exclusivamente na alma humana. Cristo efetivamente encarnou, efetivamente entrou no Jordão para santificar as águas e torná-las aptas ao batismo, efetivamente exorcizava os demônios. Ele conferiu aos Seus Apóstolos este poder de expulsar os demônios da criação e dos corpos. 

"Voltaram os setenta discípulos cheios de alegria, dizendo: "Senhor, até os demônios se sujeitaram a nós no teu nome". Disse-lhes ele: "Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago. Eis que vos dei poder para pisar aos pés serpentes e escorpiões e domínio sobre todo o poder do inimigo, nada vos lesará. Mas não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem; alegrai-vos, antes, por terem ficado os vossos nomes escritos no céu." [Lc 10:17 a 20]


Talvez seja demodé falar disso hoje em dia, mas estes exorcismos eram expulsões reais de demônios, que realmente se apossavam dos homens e que traziam doenças e que traziam aflições e que levavam comunidades à destruição. E autoridade de expulsá-los era considerada divina, um sinal da chegada do Reino de Deus: "Eis porque o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do diabo", como na passagem citada de São João Teólogo. E talvez seja demodé falar de satanismo, do diabo possuindo coração humano, e de ritos sinistros de orgia sexual e de sacrifícios, e de busca de uma imortalidade sacrílega, e de tiranos ''semi-divinos" com um conhecimento [gnose] proibido concedido por anjos caídos, e de infestações demoníacas. 

Exorcismo da Legião de Demônios

Mas se é demodé para o mundo, não o era para os Profetas, os Gloriosos Apóstolos e para os Santos Padres. Se Adão, o Pai Ancestral, é figura chave para entender como Cristo venceu a morte; Caim, os cainitas, os Gigantes, o Dilúvio são elementos igualmente importantes para entender como Cristo vence a anomia/iniquidade. Se Adão é fundamental para entender como o diabo aprisionou os homens no Hades, Caim e seus descendentes são fundamentais para entender toda a escatologia: "Porque o mistério da iniquidade já está em ação, apenas esperando o desaparecimento daquele que o detém."


Enfim, Cristo destruiu o aguilhão da morte/hades, e também exorcizou a infestação demoníaca da criação. Mas há outra fase da Grande Apostasia que também é relatada em Gênesis e que é fundamental para entender toda a História Sagrada e a Soteriologia. A terra é repovoada pelos filhos de Noé, e as Escrituras narram o episodio da Torre de Babel e da criação das nações. Estas nações, que ficaram sob cuidado de anjos, vão passar a cultuar demônios. À morte e à Iniquidade se junta a Idolatria. 


É claro que a Idolatria significa também o combate às imagens que impedem a hesíquia do asceta que quer dialogar com Deus. Mas tem um significado histórico, de modo similar à morte e ao Mistério da Iniquidade. A Grande Apostasia implica também que o culto público e a invocação ao Nome de Deus seja substituído pelo culto público a demônios. O problema da Idolatria tem um espaço enorme no cânone escriturístico, e é fundamental para a compreensão do Cristianismo, especialmente de Pentecostes.


Voltarei a esta conversa.

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