sábado, 16 de novembro de 2024

MELQUISEDEQUE E O REI DO MUNDO

"Nós que misticamente
Representamos os Querubins
E que cantamos à Vivificante Trindade
Um Hino triplamente Santo
Afastemos toda preocupação mundana
A fim de acolhermos o Rei de todos
Invisivelmente escoltado pelas Hostes Angélicas
Aleluia!"

Hino dos Querubins, Divina Liturgia



Melquisedeque é uma das figuras mais misteriosas e impressionantes das Sagradas Escrituras, e muitas polêmicas se levantam em torno de seu significado e papel. O Novo Testamento o cita direta e indiretamente para se referir ao próprio Cristo, e até René Guénon o mobiliza n'O Rei do Mundo, uma de suas obras mais esotéricas. Judeus e intelectuais irreligiosos criticaram muito os cristãos pelo que consideravam ser um ''uso impróprio'' da figura, mas as descobertas dos Manuscritos do Mar Morto demonstraram que a Igreja deu continuidade a uma rigorosa tradição do Judaísmo do Segundo Templo.


Melquisedeque surge no capítulo 14 de Gênesis depois de uma intervenção de Abrão na guerra entre os Reis reunidos por Colordoamor contra cidades de Nephilim ou Gigantes: 

"No décimo quarto ano, Codorlaomor pôs-se em marcha com os reis que se tinham aliado a ele, e desbarataram os refaim em Astarot Carnaim, e igualmente os zuzim em Ham, os emim na planície de Cariataim e os horreus, em sua montanha de Seir até El-Farã, cerca do deserto. Voltando, chegaram à fonte do Julgamento, em Cades, e devastaram as terras dos amalequitas, assim como os amorreus que habitavam em Asasontamar. O rei de Sodoma , o rei de Gomorra, o rei de Adama, o rei de Seboim, o rei de Bala, isto é, Segor, saíram e puseram-se em ordem de batalha do vale do Sidim, contra Codorlaomor, rei de Elam, Tadal, rei de Goim, Anrafael, rei de Senaar, e Arioc, rei de Elasar, quatro reis contra cinco."


Abrão rompeu sua neutralidade quando soube que Ló, seu sobrinho, foi capturado por Colordoamor. Ló expandia suas propriedades e habitações na direção de Sodoma, o que representava em certo âmbito um afastamento espiritual gradual de Abrão. Ainda assim, seu tio reuniu 318 guerreiros para libertá-lo da escravidão, façanha que só se explica pela proteção que tinha do Deus Altíssimo. O episódio foi usado pelos Padres do Primeiro Concílio Ecumênico, também reunidos em número de 318, para ilustrar a intenção da reunião, que era a de reconduzir os hereges para a Igreja, livrando-os das falsas doutrinas dos heresiarcas. O tema repercute a ideia de São Pedro e São João de que os falsos mestres estão sob poder dos demônios, ou seja, dos espíritos dos Gigantes. É a Gnose demoníaca, que mencionei em Gigantes e demônios [clique para ler], e que é mencionada entre os Padres do Deserto e nas obras ascéticas de Evágrio Pôntico.


O Rei de Sodoma pretende realizar um acordo com Abrão ao pedir de volta os bens que foram saqueados por Codorlaomor. O Patriarca, no entanto, não retém nada do que pertencia a essa população de Gigantes, antecipando o veto que mais tarde Deus imporia a Israel quando entrasse em Canaã e guerreasse contra os Nephilim: os israelitas não poderiam manter nada desses inimigos, nenhum saque ou espólio, todas as propriedades estavam amaldiçoadas e tinham de ser destruídas. 

Sacrifícios de Abel e Melquisedeque



Melquisedeque aparece na narrativa antes do diálogo entre Abrão e os Nephilim, abençoa o Patriarca e realiza um rito com pão e vinho provavelmente ligado ao culto de El Elyon, principal Divindade do panteão de deuses do Oriente Próximo [El era um epíteto mas também a designação da "Divindade mais elevada", e trazia a ideia de ''ascensão'' e de Realeza]. As ofertas de pão e vinho estiveram mais tarde entre as mais sagradas do Judaísmo do Templo. No Sinai, o Profeta Moisés ascende misticamente ao Concílio de deuses [anjos] governado por Iahweh, e reproduz o Tabernáculo de acordo com o que viu nos Céus. O Pentateuco fala de uma mesa de ouro que traria perpetuamente o pão da Presença e libações de vinho. 

"[A]lguns acadêmicos argumentam que a expressão deve ser traduzida tão literalmente quanto possível. Eles apontam que que a palavra comumente traduzida para ''presença'' é na verdade a palavra hebraica para Face [panim]. Assim, a tradução mais literal do hebraico é Pão da Face. Dessa perspectiva, o sentido da expressão se torna claro, mas as implicações são ainda maiores: o Pão da Presença é nada menos que o Pão da Face de Deus. Nesta visão, o próprio pão é um sinal visível da face de Deus. Em apoio a esta segunda interpretação, devemos nos recordar exatamente da primeira vez em que o Pão da Presença é dado ao povo de Israel. Em Êxodo, Deus ordena que Moisés construa uma mesa de de ouro para o Pão da Presença imediatamente depois do banquete celeste do qual ele e os anciãos participaram no Monte Sinai. A razão porque esta proximidade é importante é que a narrativa do Banquete Celeste enfatiza que, quando eles comeram e beberam, também viram Deus: "Moisés subiu com Aarão, Nadab e Abiú, e setenta anciãos de Israel. Eles viram o Deus de Israel. Sob os seus pés havia como um lajeado de safiras transparentes, tão límpido como o próprio céu. Sobre os eleitos dos israelitas, Deus não estendeu a mão. Viram Deus, e depois comeram e beberam. [Ex 24:9 a 11]". Em uma palavra, quando colocamos a oferta do Pão da Presença no seu contexto bíblico, parece que o "Pão da Presença" terreno foi feito para ser um tipo de memorial do banquete celeste em que Moisés e os anciãos ''viram'' o Deus de Israel enquanto "comiam e bebiam". Daí também porque Deus ordena que Moisés construa a mesa para o Pão da Presença (junto com a Arca e o Menorá) de acordo com o "modelo" celeste que lhe foi revelado em cima da Montanha. O tabernáculo terreno é um sinal visível do invisível lugar celeste de Deus, e o Pão da Presença terreno é um sinal visível da invisível Face Celeste de Deus." [Brant Printe, 2011]


Sobre o significado do termo panim:

"A Bíblia hebraica usa o termo panim para falar da Presença de Deus, às vezes de modo oblíquo: o panim ou é ou representa a presença da divindade. A literatura judaica tardia, no entanto, vai além da ideia de Presença hipostática e designa uma criatura celestial distinta conhecida como mal'ak piinim, '(o) anjo da Presença'. O conceito parece um desenvolvimento de Isaías 63:9, e de acordo com uma tradição preservada no texto massorético e [no fragmento] 1QIsaa, que atribui a libertação de Israel ao 'Anjo da Presença' -- provavelmente um circunlóquio para a presença da própria divindade. Textos judaicos tardios falam, entretanto, não apenas do 'Anjo da Presença' no singular, mas de vários "anjos da Presença" (Jub. 2:2, 18; 15:27; 31:14; T. Jlldah 25:2; T. Le,'i 3:5; 1 QH vi 13). Os "anjos da Presença'' servem a Deus na morada celeste e, desse modo, são conhecidos como "Ministros da Presença" ou "ministros da Presença Gloriosa" (4QSirSabb 40:24). Na hierarquia angélica, eles e os ''anjos da santificação'' são superiores a todos os demais.  (Jub. 2: 18; 5: 17). A literatura chega a dizer que os eleitos vão partilhar de um lugar comum com estes "anjos da Presença" e se tornar príncipes no meio deles (lub. 31 :4; I QSb iv 25-26)." [C.L. Seow, 1995]


Voltando ao contexto histórico, o nome Melchi-Tzedek significa "Meu Senhor é Tzedek", e faz referência à Divindade protetora de Salém [nome primitivo de Jerusalém], cidade da qual ele era Rei. Tzedek é uma hipóstase ou aspecto do Deus solar Shamash, associado à Justiça [e Retidão] e à Verdade [de modo similar à deusa Maat no Egito Antigo, que também era a principal figura do Tribunal que assinalaria o lugar dos mortos no Am Duat, o reino do Além]. Shamash também está na raiz do nome Sansão ["pequeno sol"], indicando que os vínculos de Jerusalém com essa divindade eram muito fortes. De todo modo, ela passou a ser considerada como manifestação de traços importantes de Iahweh. As visões de Ezequiel sobre a carruagem celeste e a ascensão do Profeta Elias também trazem imagens de algum tipo de culto ou simbologia solar.


A própria cidade de Salem, traduzida comumente por Paz, traz no nome a menção a uma deidade solar em sua dimensão crepuscular. Mais especificamente Shalim, nascido do casamento entre o Disco Solar e o Mar, e portanto com uma dimensão hierogâmica. Shalim está ainda mais atrelado à Estrela Vespertina, ou seja, Vênus, e tem a mesma ideia de completude e realização que se vê no símbolo egípcio de Atum, o auto-gerado deus primordial, que retira o mundo do caos, mas que também decretará seu fim. Envolve, portanto, a jornada no submundo e também uma dimensão apocalíptica. Outra conexão de Atum é a soteriologia régia, já que era também responsável pela ''deificação'' do Faraó na Pirâmide.

O deus solar Shamash, do qual Tzedek é uma hipóstase


Evidente que Abrão considerava o Rei Melquisedeque como sacerdote do mesmo Deus a quem ele servia. E isto vincula a bênção do misterioso personagem às expectativas messiânicas da linhagem abraâmica, que não seguiam exatamente a primogenitura biológica: De Abraão a Isaque [e não Ismael], de Isaque para Jacó [e não Esaú], e de Jacó para Judá [seu quarto filho, e não o primogênito Rubens], temos a promessa do futuro Monarca "cujo Reino não teria fim". As profecias de Jacó sobre seus filhos desenvolvem  toda uma literatura pseudopígrafa de grande importância para a Igreja [O Testamento dos Doze Patriarcas] e marcam uma importante diferença entre a Septuaginta e o posterior Texto Massorético:

"Judá, teus irmãos te louvarão. Pegarás pela nuca os inimigos; os filhos de teu pai se prostrarão em tua presença. Filhote de leão, Judá: voltas trazendo a caça, meu filho. Dobra-se, deita-se como um leão; como uma leoa: quem o despertará? Não se apartará o cetro de Judá, nem o bastão de comando dentre seus pés, até que venha aquele a quem pertence por direito, e a quem devem obediência os povos." [Gn 49:8 a 10]


Os massoretas preferiam a tradução "até que venha Siló", desfazendo o sentido original que, de forma muito clara, faz referência a um Rei nascido da tribo de Judá, e do qual a Monarquia Davídica era uma antecipação minorada. Cristo vincula essa expectativa a Melquisedec em seu famoso desafio aos fariseus: "Que pensais vós de Cristo? De quem é filho?”. Responderam: “De Davi!”. "Como então, prosseguiu Jesus, Davi, falando sob inspiração do Espírito, chama-o Senhor, dizendo: "O Senhor disse ao meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu ponha teus inimigos por escabelo de teus pés?" Se, pois, Davi o chama Senhor, como é ele seu filho?"


Cristo está citando o Salmo 109 [Septuaginta]. Era costume fazer referência ao Salmo inteiro a partir de seus versos iniciais. Mas para entender a abrangência da pergunta é necessário abordar a totalidade do texto:

"[Referente] a David. Salmo.
Disse o Senhor ao meu senhor: "Senta-te à minha direita,
Até que eu ponha teus inimigos como escabelo dos teus pés".
O Senhor enviará de Sião um bastão de teu poder.
E exerce domínio no meio de seus inimigos!
Contigo [está] o domínio em dia do teu poder,
Nos esplendores dos santos.
Desde o ventre, antes da aurora, gerei-te.
O Senhor jurou e não mudará o seu pensamento:
"Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec."
O Senhor à tua direita esmagou reis em dia de Sua ira.
Julgará entre as nações; fará abundar cadáveres.
Esmagarás cabeças na terra de muitos. 
De uma torrente no caminho beberá.
Por isso elevará uma cabeça."


A Septuaginta usa o mesmo termo para as duas menções a ''senhor'' no segundo verso: Kírios, indicando elementos de extrema importância para a compreensão do Concílio de Deuses/Anjos, a presença de um Filho ou Imagem da Divindade Suprema. O próprio texto fornece a resolução do enigma proposto por Cristo. A superioridade do Messias quando comparado a Davi se associa ao seu Sumo Sacerdócio. Em Israel, a função da realeza é separada daquela do sacerdócio. Da Tribo de Judá sai o Rei, que não pode exercer função sacerdotal. E da Tribo de Levi saem os sacerdotes, que não podem exercer o governo. Mas o Messias segue o modelo visto em Melquisedeque: Rei e Sacerdote do Altíssimo.


Moisés e Aarão e o Tabernáculo


A relação entre os princípios da Realeza e do Sacerdócio é assunto de máxima importância entre os Tradicionalistas: "[Evola] fazia notar a existência de um estado anterior à divisão de varnas, o estado do próprio Realizado. Neste estado, os poderes de brâmanes e Ksatryias estariam sintetizados. A função social que corresponderia a este estado era a do Rei-Sacerdote, o Pontifex supremo. O Ksatryia teria características que lhe permitiriam conquistar o poder sacerdotal e atingir este elevado patamar espiritual, sem mediação brâmane. Esta via régia colocava o Monarca em uma posição superior a do sacerdote. A resposta guenoniana ao argumento do Barão é de que não vivemos mais na Era de Ouro, em que alguns homens já nasciam Iniciados. No momento atual de degeneração, a Era de Trevas, a posição de Evola não faria sentido." [clique para ler: Guenon e Evola, ou Realeza e Sacerdócio]. Não é surpresa que a figura de Melquisedeque chamasse a atenção destes autores e que Guénon dedique um capítulo inteiro a ele em uma de suas obras mais profundas.


N'O Rei do Mundo, o metafísico francês faz uma série de justaposições e paralelos simbólicos em torno de Melquisedeque, e termina por ver nele não o Rei de uma hipotética cidade chamada Salém, mas o hierofante da organização iniciática suprema, que reflete no mundo os influxos espirituais vindos do 'Manu', o homem arquetípico e progenitor da humanidade de um ciclo chamado Manvantara. Na Índia, o Manu da humanidade atual é Vaivasvata, filho de uma deidade solar, e que foi salvo do Dilúvio por um avatar de Vishnu [ o peixe Matsia]. Guénon vê um paralelo com Noé, em cuja arca enxerga também um símbolo do centro espiritual supremo. O francês nota que, nas Escrituras judaicas, Noé foi o primeiro homem a plantar uma vinha e se embebedar com vinho, elemento do rito de Melquisedeque e um símbolo da gnose [o soma da imortalidade].


Ancião dos Dias, visão do Profeta Daniel



Estes paralelos são todos muito ricos mas se inserem em uma perspectiva do esoterismo islâmico [se sufi, se shi'a ou se propriamente ismailita é uma questão em aberto]. Guénon tende a ler de forma um tanto peculiar a passagem "segundo a ordem de Melquisedeque", interpretando o episódio como a Iniciação de Abrão no centro espiritual supremo, que conectou a tradição hebraica à Tradição Primordial [aquela que remonta ao Manu, o Homem Primordial], e que indicaria que Iahweh seria um deus menor ou apenas um aspecto do Deus Altíssimo [El Elyon], linha de raciocínio que pode ser encontrada em certa leitura esotericista dos cultos do Judaísmo do Primeiro Templo, e de que tratei superficialmente no texto Margaret Barker: o Cristianismo e a História [clique para ler].


Para Margaret Barker, os Altos Sacerdotes realizavam um culto secreto no Templo em torno de uma Trindade formada por El [Divindade Suprema], Iahweh [Deus/Anjo nacional de Israel] e sua consorte Asherá/Astarte. Iahweh não estaria identificado inteiramente com El Elyon, mas seria um dos deuses menores, ou Anjos, que na criação e divisão das nações receberia por porção ou herança o povo de Israel. Sua relação com Asherá é obviamente hierogâmica. Segundo ela, o Cristianismo é uma retomada dos princípios desse culto, eclipsados pelas Reformas do Rei Josias que teriam inaugurado de fato o Monoteísmo judaico. Barker entende este culto primevo como uma apoteose do Sumo Sacerdote, cujos ecos podem ser encontrados na tradição enoquiana e no Misticismo do Trono. Por diversas razões, essa é uma inversão e um recorte do que a Santa Tradição ensina a respeito.


É mais seguro enxergar no trecho ''segundo a ordem de Melquisedeque'' o sentido de ''segundo o modelo'', "na linha de", com o qual ilustrei acima o vínculo entre a oferta do Pão da Presença na mesa de ouro do Tabernáculo e o arquétipo celeste visto por Moisés quando adentrou o "Concílio dos deuses/anjos" do qual Iahweh é Rei. Guénon está consciente desta ligação, pois faz do Hierofante do Centro [Iniciático] Supremo [Pólo terrenal] a manifestação terrestre do Arcanjo Miguel [que, nesse caso, seria o Pólo Celestial], com o qual se comunica por meio do Eixo do Mundo.


É possível encontrar algo parecido em textos enoquianos, em que Miguel é descrito como o chefe das hostes angélicas [o título de Archistrategos é ortodoxo], o rival de Satã/Samael, e em que adquire um papel escatológico e messiânico. No primeiro Livro de Enoque, o Arcanjo Miguel é conhecedor de um nome secreto que sustém toda a Criação. O Livro de Daniel, um dos mais importantes para a correta compreensão dos Evangelhos, também traz esta simbologia, e o mesmo pode ser dito do capítulo 20 do Apocalipse de São João, em que um Anjo não nomeado prende o Dragão por mil anos, dando início à Era Messiânica, uma imagem que, em I Enoque, faz referência a Miguel. Além disso, manuscritos encontrados em Qumram remetem a tradições dos séculos III e II a.C. que fazem transposições entre a figura de Melquisedeque e Miguel:

"E o Dia da Expiação é o[fim do] décimo [Ju]bileu, quando todos os Filhos da [Luz] e os homens da herança de Mel[chi]zedek serão expiados. [E] um estatuto diz respeito a eles [para fornecer]-lhes suas recompensas. Pois este é o momento do Ano da Graça para Melquisedeque. [E ele], por sua força, julgará os santos de Deus, executando o julgamento como está escrito a respeito dele nos Salmos de Davi, que dizem: ELOHIM tomou seu lugar no conselho divino; no meio dos deuses ele exerce o julgamento (Salmos 82:1). E foi sobre ele que está escrito: (Que a assembléia dos povos) retorne às alturas acima deles; EL (Deus) julgará os povos (Salmos 7:7-8). Quanto ao que ele disse: Até quando julgareis injustamente e mostrareis parcialidade para com os ímpios? Selá (Salmos 82:2), sua interpretação diz respeito a Belial e aos espíritos de sua herança, [que] se rebelaram afastando-se dos preceitos de Deus para ... E Melquisedeque executará a vingança dos julgamentos de Deus... e ele irá arrastá-los da mão de Belial e da mão de todos os espíritos de sua [herança]. E todos os 'deuses [da Justiça'] virão em seu auxílio [para] participar da destruição de Belial." [11Q13]

Tratarei do Concílio divino, em que Iahweh acusa os anjos de se omitirem ou se desviarem em relação às nações [gentios], quando escrever sobre a Idolatria. Por enquanto, é necessário reter que Israel é um povo separado como porção de Iahweh, enquanto as demais nações são protegidas por determinados anjos [os demais 'deuses' do concílio]. Mas em outros textos, como em Daniel, o Arcanjo Miguel é descrito como o guardião de Israel. O salmo seguinte, de número 82 na Septuaginta, parece citar o Comandante-Supremo:

"Ode de salmo, [referente] a Asaf.
Ó Deus, quem Te será assemelhado?
Não fiques em silêncio nem Te apazigues, ó Deus!"

Santo Arcanjo Miguel, Comandante Supremo das Hostes Angélicas


No fragmento de Qumram, Miguel/Melquisedeque, dois nomes do Príncipe da Luz, exerce o Juízo apocalíptico sobre as nações, derrotando Belial e seus demônios, o que pode ser visto também no capítulo 7 do Livro de Daniel, em que o Messias surge como figura angélica em forma humana:

"E eu continuava a observar,
Até que foram colocados tronos;
E um Antigo de Dias se sentava
Com uma capa como neve;
E o cabelo de sua cabeça
Era como lã branca, pura;
O trono era como chama de fogo;
E saía, diante do rosto d'Ele,.
Um rio de fogo.
Mil milhares o serviam;
E dez mil miríades
Estavam junto d'Ele.
E um tribunal sentou-se,
E abriram-se os livros.
[...]
Eu continuava a olhar em visão de noite:
E eis que sobre as nuvens do céu
Chegava [alguém] como um filho do Homem,
E como um Antigo de Dias estava presente.
E os que estavam de pé ao lado estavam com ele.
E foi-lhe dada autoridade e todas as nações da terra
Segundo [as suas] raças; e toda a glória o servia.
E a sua autoridade era autoridade eterna,
Que não será afastada;
E o seu reino, que nunca perecerá [...]"


O tema do Juízo e da Retidão repercute no nome de Melchi-Tzedek [Meu Senhor é Tzedek, ou Meu Senhor é a Justiça]. Mas também na Epístola de São Paulo aos Hebreus, que argumenta pela superioridade do sacerdócio de Cristo sobre o levita, porque sacerdócio ''segundo a ordem de Melquisedeque'', isto é, eterno, imortal. Mas este sumo-sacerdócio só desvela todo seu significado na oferta que o acompanha:

"Porém, já veio Cristo, Sumo Sacerdote dos bens vindouros. E através de um tabernáculo mais excelente e mais perfeito, não construído por mãos humanas (não deste mundo), sem levar consigo o sangue de carneiros ou novilhos, mas com seu próprio sangue, entrou de uma vez por todas no santuário, adquirindo-nos uma redenção eterna. Pois se o sangue de carneiros e de touros e a cinza de uma vaca, com que se aspergem os impuros, santificam e purificam pelo menos os corpos, quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu como vítima sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência das obras mortas para o serviço do Deus vivo? Por isso, ele é mediador do novo testamento. [...] Aliás, conforme a Lei, o sangue é utilizado para quase todas as purificações, e sem efusão de sangue não há perdão. Se os meros símbolos das realidades celestes exigiam uma tal purificação, necessário se tornava que as realidades mesmo fossem purificadas por sacrifícios ainda superiores. Eis por que Cristo entrou, não em santuário feito por mãos de homens, que fosse apenas figura do santuário verdadeiro, mas no próprio céu, para agora se apresentar intercessor nosso ante a face de Deus. E não entrou para se oferecer muitas vezes a si mesmo, como o pontífice que entrava todos os anos no santuário para oferecer sangue alheio. Do contrário, lhe seria necessário padecer muitas vezes desde o princípio do mundo; quando é certo que apareceu uma só vez ao final dos tempos para destruição do pecado pelo sacrifício de si mesmo. Como está determinado que os homens morram uma só vez, e logo em seguida vem o juízo, assim Cristo se ofereceu uma só vez para tomar sobre si os pecados da multidão, e aparecerá uma segunda vez, não porém em razão do pecado, mas para trazer a salvação àqueles que o esperam." [Capítulo 9]

Vaivasvata Manu escapando do Dilúvio por intervenção de Matsia, avatar de Vishnu


Muitas imagens e símbolos do misticismo, da escatologia e das tradições enoquianas no Judaísmo do Segundo Templo se interseccionam nestas passagens, como a Ascensão e Deificação de Enoque. Mas São Paulo parece fazer um caminho oposto ao descrito no Enoque hebraico. Em Hebreus, o sumo sacerdócio de Cristo se explica pelo 'despojamento' ou 'descida' do Filho de Deus ["Esplendor da glória (de Deus) e imagem do seu ser, sustenta o universo com o poder da sua palavra. Depois de ter realizado a purificação dos pecados, está sentado à direita da Majestade no mais alto dos céus, tão superior aos anjos quanto excede o deles o nome que herdou."], por Sua paixão e morte, e sua subida mais uma vez para o Santuário verdadeiro [o Celeste], onde está sentado à direita do Pai. A chave é a Encarnação, a Redenção, e a Ascensão -- e a Divina Liturgia e, mais especificamente a Eucaristia, adquire um papel central. Cristo é o Pontífice supremo e definitivo porque, sendo divino, se fez homem e vítima sacrificial. A humanidade deificada pelo Verbo e ofertada na Eucaristia é a Escada de Jacó [clique para ler].


Está claro que São Paulo considerava Melquisedeque um homem, não uma teofania, que prefigurava o verdadeiro Sumo Sacerdote, que é Cristo, ainda que se deixe em aberto a possibilidade de sua theosis. Sua aparição traz uma conexão também com o ''sacrifício interior'', o ascetismo, e a luta contra potências demoníacas, indicadas pela presença dos Gigantes. Parece também que havia uma tradição solar na primitiva Jerusalém, uma linhagem de Reis-Sacerdotes, que mais tarde foi eclipsada quando a cidade seguiu a divisão entre realeza e sacerdócio exigida por Iahweh no Sinai. Esta tradição teve continuidade, no entanto, na promessa da visitação do verdadeiro Rei-Sacerdote, o Messias, que derrotaria definitivamente as forças da iniquidade e reinaria para sempre. Este Reinado e Sacerdócio se revela na Divina Liturgia, que é de certo modo 'atemporal', expressa uma ascensão mística até Deus, é concelebrada com as hostes angélicas, e que tem em seu cerne o Mistério Eucarístico, que só é possível porque Deus se fez carne. 


Em outro texto, veremos a Igreja, a Divina Liturgia, a Eucaristia e Pentecostes imbricados na Era Messiânica, o "Reinado de Cristo em meio a seus inimigos", e portanto ao Milênio. A Grande Apostasia e o Mistério da Iniquidade prosseguem em uma era em que o Dragão sabe que tem pouco tempo e em que vai fazer emergir a Besta, o Anticristo. Isto vai nos levar também ao Katechon.

O Rei do Mundo, obra esotérica de René Guénon



Um comentário:

  1. Incrível série de postagens. Ansioso para as próximas! Obrigado, André!

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