sábado, 16 de março de 2024

O Pastor Yago Martins e o Cânone Judaico parte V: Os Concílios

 


Para terminar a série de postagens em que comento a defesa do Antigo Testamento protestante pelo Pastor Yago Martins, apresento algumas fontes deixadas de lado no vídeo do Dois Dedos de Teologia


Se alguém tiver interesse de acompanhar toda a análise, deixo os links para os textos anteriores:


1) O Cânone estava aberto na Palestina do século I

2) O Cânone Rabínico, a Mishná, Flávio Josefo e Fílon de Alexandria

3) Os livros citados por Cristo e pelos Apóstolos

4) O Cânone na Patrística


Já que o Pastor trouxe para a arena argumentos baseados na Patrística, não custa também analisar as resoluções conciliares, os encontros oficiais entre as lideranças da Igreja, ocorridas no mesmo período de tempo das obras citadas em Lutero tirou livros da Bíblia?


Em resposta a um canal católico-romano, Yago Martins disse que os Concílios apenas "batiam o martelo" sobre aspectos da vida religiosa que já tinham tomado corpo nas comunidades cristãs. O argumento é que o cânone não se trata de uma imposição conciliar, que ele foi fechado aos poucos e de modo orgânico nas diferentes igrejas, e só foi oficializado pelas autoridades clericais nos sínodos. É uma forma dos protestantes se livrarem do peso institucional da decisão dos Bispos, que coloca em risco a visão calvinista sobre a organização eclesiástica.


O problema é que se trata de uma visão a-histórica e até ingênua. Afinal, os Concílios nem sempre ''batem o martelo'' sobre o que já está estabelecido. É bastante comum que as decisões fossem contestadas durante décadas, até mesmo séculos. O arianismo, só para dar um exemplo, não foi inteiramente resolvido no mundo cristão em Nicéia [325]. As discussões cristológicas deram pano pra manga por muito tempo, e provocaram divisões entre que se mantém até hoje. 


Muitas decisões conciliares eram tomadas em momentos de intenso conflito, algumas contra as autoridades constituídas. Quando mais a Igreja e o Império se aproximaram, mais os Concílios estiveram imbricados com perigos provenientes do exercício do poder temporal.


A noção de que os principais temas discutidos na Cristandade chegavam apaziguados nos sínodos, bastando ao Bispos referendarem o que já estava dado na vida interna das diferentes comunidades é um mundo cor-de-rosa que nunca existiu. O argumento protestante torna muito difícil explicar, aliás, as dissensões ainda existentes, como aquelas das igrejas orientais, dos monofisitas e nestorianos etc. 


Voltarei a este ponto quando der continuidade à série específica sobre cânone neotestamentário. Não são poucos os autores protestantes que tiram todo o peso possível do ''martelo'' das autoridades eclesiásticas e outras que possam recordá-los, minimamente, de que a Igreja se tratava sim de uma instituição hierarquizada e orgânica. Mas o cânone do Novo Testamento não surgiu desse modo espontâneo com que defendem em suas obras. Houve Igrejas que, distanciadas do catolicidade, adotaram um Novo Testamento de apenas 22 livros, e não 27. 


Além disso, os Bispos e Presbíteros participavam do dia a dia das comunidades. Eles não eram elementos exógenos assistindo ''de fora'' as posições tomarem corpo em suas igrejas. É fato que não há liderança sem seguidores, mas os líderes tem uma capacidade de influência no cotidiano que não pode ser desprezada. É por isso, inclusive, que o Pastor Yago decidiu citar a posição de Padres dos primeiros séculos em seu vídeo de defesa do cânone: pelo peso que as palavras destas figuras tinham entre os cristãos de sua época e de outras.


Enfim, os Concílios são testemunhas evidentes do que as Igrejas cristãs pensavam das Escrituras Sagradas, que livros eram lidos e estudados. 


Outra fonte importante são os manuscritos com as Escrituras, produzidos ainda na Antiguidade: os códices que remontam ao século IV e V. Ainda que não sejam decisivos na questão, já que eu mesmo enfatizei que listas de livros canônicos não são exatamente um cânone, estes documentos comprovam as tendências inclusivas do processo de canonização.


 Abaixo, um quadro com informações sobre estas listas.





Os "Cânones dos Apóstolos" é pseudo-epígrafo. Mas foi referendado por Concílio Ecumênico [na verdade, o Concílio de Trullo], ao lado de outras listas. O que significa que, em pleno século VII, a Igreja convivia normalmente com listas diferenciadas de livros canônicos. Outro ponto notável é que as decisões do Concílio de Trullo não foram inicialmente aceitas pelo Patriarcado de Roma, o que desmonta também a ideia de que o atual formato do Antigo Testamento seguia algum tipo de conspiração católica-romana.


As considerações do Pastor sobre a doutrina presente nos "deuterocanônicos" não são relevantes, já que pressupõem o cristianismo reformado e fazem uso de apelos sentimentais ["vocês iam querer que um livro desses orientasse sua vida?"]. Este tipo de apelo pode ser feito basicamente sobre qualquer livro escriturístico, e é muito usado por ateus contemporâneos quando alegam que o cristianismo é démodé, como se os valores e práticas de nosso tempo fossem o critério seguro de verdade. 


Por fim, se o calvinismo for mesmo uma doutrina abstrata capaz de avaliar o que é certo e errado nas Escrituras e até que livros são ou não revelados, então a ideia de que a Bíblia é a única ou a principal regra de fé cai por terra. Para que o calvinismo esteja correto é necessário antes saber de modo seguro e infalível quais são os livros revelados. Ou então o Sola Scriptura se torna um beco-sem-saída. Não por acaso, a insistência protestante de que há um cânone salvaguardado desde sempre, uma crença que pode ser desmontada até mesmo por uma pesquisa histórica superficial.


Desta série podemos concluir que:


1. Não havia cânone judaico fechado no século I. As pesquisas demonstram, inclusive, a fluidez das formas textuais de diversos livros das Escrituras Judaicas. Antes do século II a.C., a revelação não era entendida como uma forma textual precisa, definitiva e acabada, mas com um sentido apropriado quase de modo xamânico. A estabilização dos textos foi realizada posteriormente, em uma sensibilidade que se estabelecia aos poucos entre o século I a.C. e II d.C. E somente séculos depois, grupos rabínicos concluíram que a revelação estava inscrita de modo literal no texto, dependendo da correta análise de cada letra em seu valor específico, numérico, dando concretude e materialidade à ideia de ''alfabeto divino'' no corpo textual da Tanack.

2. O cânone rabínico [Tanack] só é fechado entre os séculos II e IV da Era cristã. Não faz sentido projetá-lo para antes das Guerras Judaicas. Além disso, o cânone rabínico não pode ser confundido como o ''cânone da comunidade judaica''. 

3. A Igreja usava a Septuaginta, assim como a maioria dos judeus dos primeiros séculos, e a considerava tão inspirada quanto os textos em hebraico. Os próprios autores neotestamentários usavam, prioritariamente, a Septuaginta em suas citações e em sua compreensão das profecias. 

4. Os cristãos não se subordinavam ao cânone rabínico, ainda que levassem em conta, principalmente a partir do século IV, que o número de livros deveria obedecer ao número de letras do alfabeto hebraico ou do alfabeto grego. Eles tentavam acomodar os livros lidos e cantados nas Igrejas a este número, e ao mesmo tempo manter uma noção mais abrangente e inclusiva de inspiração divina.

5. O cânone do Antigo Testamento não estava fechado, o processo de debate ocorreu durante toda a primeira metade do primeiro milênio, se intensificado após o Édito de Milão. No século V, o cânone veterotestamentário era inclusivo e permanecia aberto tanto no Oriente quanto no Ocidente. 


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