Metropolita Hierotheos Vlachos
traduzido por André Luiz V. B. T. dos Reis
Santo Ancião Paisios |
A espiritualidade ortodoxa é bastante diferente de qualquer outra
''espiritualidade'' de tipo oriental ou ocidental. Não pode existir confusão
entre as diversas espiritualidades, porque a Ortodoxia é teocêntrica, enquanto as
demais são antropocêntricas.
A diferença aparece primeiro no ensino doutrinal. Por isso colocamos a palavra
''ortodoxa'' depois de ''Igreja'' para distingui-la de qualquer outra religião.
Com certeza, a palavra''ortodoxa'' deve estar associada com a palavra
''eclesiástica'', já que a Ortodoxia não pode existir fora da Igreja; nem,
claro, pode a Igreja existir fora da Ortodoxia.
Os dogmas são resultados de decisões dos Concílios Ecumênicos sobre vários
assuntos de fé. Os dogmas são chamados assim porque delimitam as fronteiras
entre o erro e a verdade, entre a doença e a saúde. Assim, eles são, por um
lado, expressões da Revelação, e por outro lado, agem como ''remédios'' para
nos guiar até a comunhão com Deus, nossa razão de ser.
As diferenças dogmáticas refletem diferenças correspondentes na terapia. Se uma
pessoa não segue o ''caminho reto'', não consegue alcançar seu destino. Se não
toma os ''remédios'' apropriados, não consegue adquirir saúde; em outras
palavras, não vai experimentar nenhum benefício terapêutico. Repito, se
comparamos a espiritualidade ortodoxa com outras tradições cristãs, a diferença
de abordagem e método terapêutico se torna mais evidente.
Um ensinamento fundamental dos Santos padres é de que a Igreja é um
''hospital'' que cura o homem doente. Em muitas passagens das Sagradas
Escrituras é usada essa linguagem. Uma delas é a parábola do Bom Samaritano:
''Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se
de íntima compaixão; E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes
azeite e vinho; e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma estalagem, e
cuidou dele; E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao
hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to
pagarei quando voltar.'' [Lucas 10:33-35]
Nessa parábola, o samaritano representa Cristo que cura o homem ferido e o leva
para a estalagem, que é o ''hospital'', a Igreja. É evidente aqui que Cristo é
apresentado como um Curador, um médico que sana os males; e a Igreja é o
verdadeiro hospital. É muito representativo que São João Crisóstomo, ao
analisar essa parábola, destaque essas verdades enfatizadas acima.
A vida do homem ''no Paraíso'' foi reduzida a uma vida governada pela diabo e
seus ardis. ''E caiu nas mãos de ladrões'', isto é, nas mãos do diabo e de
todos os poderes hostis. As feridas sofridas pelo homem são os vários pecados,
como dito pelo Profeta Davi: ''As minhas chagas cheiram mal e estão corruptas,
por causa da minha loucura'' [Salmos 37]. Porque ''todo pecado causa uma
injúria e uma ferida''. O Samaritano é o próprio Cristo que desce dos Céus à
terra para curar o homem ferido. Ele usa óleo e vinho para ''tratar'' as
feridas; em outras palavras, ao ''misturar Seu sangue com o Espírito Santo,
traz o homem à vida''. Segundo uma outra interpretação, o óleo corresponde à
palavra consoladora e o vinho à palavra de rigor. Misturadas, elas tem o poder
de unificar a mente dispersa. ''Ele o pôs sobre seu animal'', isto é, Ele
assumiu a carne humana sob ''os ombros'' de Sua Divindade e ascendeu encarnado
ao Seu Pai nos Céus.
Então o bom samaritano, ou seja, Cristo, levou o homem pra a grandiosa,
maravilhosa e espaçosa estalagem -- a Igreja. E entregou o homem ao
estalajadeiro, que é o Apóstolo Paulo, e através do Apóstolo Paulo todos os
Bispos e padres, dizendo: ''Tomem conta dos gentios, que entreguei a vocês na
Igreja. Eles sofrem com a doença do pecado, então curem-nos, usando como
remédio as palavras dos Profetas e os ensinamentos do Evangelho; tornai-os saudáveis
através das admoestações e das palavras consoladoras do Velho e Novo
Testamentos.'' Assim, segundo São João Crisóstomo, Paulo é quem mantém as
Igrejas de Deus, ''curando todas as pessoas por meio de suas admoestações
espirituais e oferecendo a cada uma delas aquilo de que realmente necessitam.''
Na interpretação dessa parábola por São João Crisóstomo, é claramente
demonstrado que a Igreja é um hospital que cura as pessoas afligidas pelo
pecado; e os Bispos e padres são os terapeutas do povo de deus.
São José o Hesicasta |
E é precisamente esse o trabalho da teologia ortodoxa. Quando nos referimos à
teologia ortodoxa, não falamos simplesmente da história da teologia. A última,
claro, é parte dela mas não de modo absoluto ou exclusivo. Na tradição
patrística, os teólogos são videntes de Deus. São Gregório Palamas chama
Barlaão [que tentou trazer a teologia escolástica ocidental para dentro da
Igreja Ortodoxa] de ''teólogo'', mas ele enfatizavam claramente que a teologia
intelectual diferia grandemente da experiência da visão de Deus; aqueles que
seguiram o ''método'' da Igreja e conquistaram a perfeita fé, a iluminação do
nous e a deificação (theosis). A teologia é o fruto da cura do homem e o
caminho que leva à cura e à aquisição do conhecimento de Deus.
A teologia ocidental, portanto, se diferenciou da teologia ortodoxa. Em vez de
ser terapêutica, possui um caráter mais emocional e intelectual. No Ocidente
(após a ''Renascença Carolíngea''), a teologia escolástica evoluiu, o que é
contrário à Tradição Ortodoxa. A teologia ocidental está baseada no pensamento
racional enquanto a Ortodoxia é hesicasta. A teologia escolástica tentou
entender logicamente a Revelação de Deus e se conformar à metodologia
filosófica. Tal abordagem é representada pelo dito de Anselmo [Arcebispo de Canterbury
de 1093-1109, um dos primeiros após a conquista normanda e a destruição da
antiga Igreja Ortodoxa inglesa]: Creio para entender''. Os escolásticos
reconhecem Deus no início e então tentam provar sua existência por argumentos
lógicos e categorias racionais. Na Igreja ortodoxa, tal como expresso pelos
Santos Padres, a fé é a Revelação de Deus ao homem. Aceitamos a fé a ou ouvir
não de modo a entendê-la racionalmente, mas para que possamos purificar nossos
corações, alcançar a theoria e experimentar a Revelação de Deus.
A teologia escolástica alcançou seu ponto culminante na pessoa de Tomás de
Aquino, um santo na Igreja Católica Romana. Ele defendeu que as verdades
cristãs são divididas em naturais e sobrenaturais. As verdades naturais podem
ser provadas filosoficamente, como a verdade da Existência de Deus. As verdades
sobrenaturais -- tais como o Deus Triuno, a Encarnação do Verbo, a Ressurreição
dos corpos -- não podem ser provadas filosoficamente, e assim não podem ser
refutadas. A Escolástica associa a teologia com a filosofia de modo muito
próximo, e mais ainda com a metafísica. Em consequência, a fé foi alterada e a
própria teologia escolástica caiu em descrédito quando o ''ídolo'' do Ocidente
-- a metafísica -- colapsou. A Escolástica é responsável por boa parte da
situação trágica criada no Ocidente a respeito da fé e das questões de fé.
Os Santos Padres ensinam que as categorias natural e metafísica não existem mas
se referem antes ao criado e ao incriado. Os Santos Padres nunca aceitaram a
metafísica aristotélica. Mas não é minha intenção me alongar sobre isso. Os
teólogos do Ocidente durante a idade Média consideravam a teologia escolástica
um desenvolvimento dos ensinamentos dos Santos padres, e daí em diante tiveram
início os ensinamentos dos francos de que a teologia escolástica era superior
àquela dos Santos Padres. Consequentemente, os escolásticos, que se ocupam com
a razão, se consideram superiores aos Santos Padres da Igreja. Eles também
acreditam que o conhecimento humano, um fruto da razão, é mais elevado do que a
Revelação e a experiência.
É dentro desse contexto que deve ser visto o conflito entre São Gregório
Palamas e Barlaão. Barlaão era essencialmente um teólogo escolástico que
tentava transmitir a teologia escolástica para a Ortodoxia.
As perspectivas de Barlaão -- de que não podemos realmente saber Quem o
Espírito Santo verdadeiramente é (uma forma de agnosticismo), de que os antigos
filósofos gregos são superiores aos Profetas e Apóstolos (já que a razão está
acima da visão dos Apóstolos), de que a luz da Transfiguração é criada e que
pode ser desfeita, de que o modo hesicasta de vida (isto é, a purificação do
coração e oração noética incessante) não é essencial -- são visões que
expressam uma perspectiva escolástica e, portanto, secularizada da teologia.
São Gregório Palamas previu o perigo que essas opiniões levavam à Ortodoxia e
através do poder e energia do Santíssimo Espírito e a experiência que ele mesmo
adquiriu como um sucessor dos Santos Padres, confrontou esse perigo e preservou
sem adulterações a Tradição e a Fé ortodoxa.
Tendo fornecido um panorama do tópico em tela, se examinamos a espiritualidade
ortodoxa em comparação ao catolicismo romano e ao protestantismo, as diferenças
são imediatamente descobertas.
Os protestantes não tem uma tradição de ''tratamento terapêutico''. Eles supõe
que acreditar em Deus, intelectualmente, constitui a salvação. Mas a salvação
não é um objeto de aceitação intelectual da verdade; antes é uma transformação
pessoal e deificação pela graça. Essa transformação é efetuada por um
''tratamento'' análogo ao de uma pessoa, como veremos nos próximos capítulos.
Nas Escrituras Sagradas parece que a fé vem por meio da audição da Palavra e da
experiência da ''theoria'' (a visão de Deus). Aceitamos a fé primeiro pela
audição de modo a sermos curados, e então conquistamos a fé pela theoria, que
salva o homem. Os protestantes, por acreditarem que a aceitação das verdades de
fé, a aceitação teorética da Revelação de Deus, ou seja, a fé pelo ouvir salva
o homem, não possuem uma ''tradição terapêutica''. Podemos dizer que se trata
de uma concepção de salvação muito ingênua.
Os católico-romanos também não possuem a perfeição da tradição terapêutica que
a Igreja Ortodoxa possui. Sua doutrina da Filioque é uma manifestação da
fraqueza de sua teologia para perceber a relação entre a pessoa e a sociedade.
Eles confundem as propriedades pessoais: o ''não gerado'' do Pai, o ''gerado''
do Filho e a processão do Espírito Santo. O Pai é causa da ''geração'' do Filho
e da processo do Espírito Santo.
A fraqueza latina em compreender e a falha em expressar o dogma da Trindade
mostra a inexistência de uma teologia empírica. Os três discípulos de Cristo
(Pedro, Tiago e João) contemplaram a glória de Cristo no Monte Tabor; eles
ouviram de uma vez a voz do Pai, ''Esse é meu filho amado'', e viram a descida
do Espírito Santo em uma nuvem, pois a nuvem é a presença do Espírito Santo,
tal como diz São Gregório Palamas. Assim os discípulos de Cristo adquiriram o
conhecimento do Deus Triuno em theoria (visão de Deus) e por revelação. Foi
revelado a eles que Deus é uma essência em três Hipóstases.
Isso é o que ensina São Simeão o Novo Teólogo. Em seus poemas, ele proclama uma
vez após a outra que, enquanto contempla a Luz Incriada, o homem deificado
adquire a Revelação da Trindade Divina. Se encontrando em ''theoria'' (visão de
Deus), os santos não confundem os atributos hipostáticos. O fato de que a
tradição latina chegou ao ponto de confundir os atributos hipostáticos e o ensinamento
de que o Espírito Santo procederia também do Filho mostra a inexistência de uma
teologia empírica entre eles. A tradição latina fala da graça criada, o que
sugere que eles não experimentam a graça de Deus. Pois quando um homem obtém a
experiência de Deus, então ele vem a compreender que a graça é incriada. Sem
essa experiência não pode existir nenhuma ''tradição terapêutica'' genuína.
E de fato não encontramos em toda a tradição latina o equivalente ao método
terapêutico ortodoxo. Não se fala do Nous; nem se distingue o Nous da razão. O
Nous obscurecido não é tratado como uma doença, nem a iluminação do Nous como
uma terapia. Muitos textos latinos altamente difundidos são sentimentais e se
exaurem em uma estéril etiologia. Na Igreja Ortodoxa, pelo contrário, há uma
grande tradição a respeito desses temas, que mostra que no interior dela existe
o verdadeiro método terapêutico.
Uma fé é verdadeira na medida em que possua benefícios terapêuticos. Se está
apta a curar, então é uma fé verdadeira. Se não cura, não é uma fé verdadeira.
A mesma coisa pode ser dita sobre a medicina: um cientista verdadeiro é aquele
que sabe como curar e seu método traz benefícios terapêuticos, enquanto um
charlatão é incapaz de curar. As mesmas verdades se sustentam quando se diz
respeito aos assuntos da alma. A diferença entre a ortodoxia e a tradição
latina, tanto quanto as confissões protestantes, parece estar principalmente no
método da terapia. Essa diferença se torna manifesta nas doutrinas de cada
denominação. Os dogmas não são filosofia, nem é a teologia o mesmo que a
filosofia.
Dado que a espiritualidade ortodoxa difere de modo distinto das
''espiritualidades'' de outras confissões, ainda mais difere da
''espiritualidade'' das religiões orientais, que não acreditam na natureza
teantrópica de Cristo e no Espírito Santo. Elas são influenciadas pela
dialética filosófica, que foi superada pela Revelação de Deus. Essas tradições
não são conscientes da noção de pessoa e do princípio hipostático. E o amor,
como ensinamento fundamental, está totalmente ausente. Alguém pode encontrar, é
claro, nessas religiões orientais um esforço da parte de seus seguidores para
se apartarem de pensamentos racionais e imagens, mas este é na verdade um
movimento rumo ao nada, à não existência. Não há um caminho levando seus
''discípulos'' à theosis-deificação (ver a nota abaixo) do homem integral.
Daí porque há um vasto e caótico abismo entre a espiritualidade ortodoxa e as
religiões orientais, apesar de certas similaridades externas na terminologia.
Por exemplo, as religiões orientais podem empregar termos como ''êxtase'',
''impassibilidade'', ''iluminação'', ''energia noética'' etc. mas estão
impregnadas por um conteúdo diferente dos termos correspondentes na
espiritualidade ortodoxa.
.
Do Capítulo 2 de ''Orthodox Spirituality: A brief introduction'', publicado em
1994 pelo Mosteiro da Natividade de Theotokos, Levadia, Grécia. Veja também ''Way Apart:
What is the Difference Between Orthodoxy and Western Confessions?'', do
Metropolita Anthony (Khrapovitsky) de Kiev e Galícia
Orthodox Christian Information Center
Met. Hierotheos Vlachos
25 / 11 / 2013
ps.: Theoria é a visão da glória de Deus. A theoria é identificada com a visão
da Luz incriada, a energia incriada de Deus, com a união do homem com Deus,
com a theosis [ver nota abaixo] do homem. Assim, theoria, a visão e a theosis
estão associados intimamente. A theoria possui vários graus. Há a iluminação,
visão de Deus, e a visão constante (por horas, dias, semanas e até meses). A
oração noética é o primeiro estágio da theoria. O homem teorético é aquele que
atingiu esse estágio. Na Teologia Patrística, o homem teorético é representado
como o pastor das ovelhas.
pps.: A Theosis-Deificação é a participação na graça incriada de Deus. A
Theosis é identificada e associada com a theoria (visão) da Luz Incriada (veja
nota acima). É chamada de theosis na graça porque é alcançada através da
energia da graça divina. É uma co-operação de Deus com o homem, já que é Deus
quem opera e o homem quem co-opera.
Belo texto André. Estas considerações também valem para a ordem monástica da carthusia/monges cartuxos? Pelo que andei a ler, esta é a ordem monástica católica cujas práticas mais se assemelham as da Ortodoxia..
ResponderExcluirAtt
Henrique Silvério.