sábado, 13 de janeiro de 2018

AS DIFERENÇAS ENTRE A ESPIRITUALIDADE ORTODOXA E OUTRAS TRADIÇÕES

Metropolita Hierotheos Vlachos

traduzido por André Luiz V. B. T. dos Reis




Santo Ancião Paisios

A espiritualidade ortodoxa é bastante diferente de qualquer outra ''espiritualidade'' de tipo oriental ou ocidental. Não pode existir confusão entre as diversas espiritualidades, porque a Ortodoxia é teocêntrica, enquanto as demais são antropocêntricas.

A diferença aparece primeiro no ensino doutrinal. Por isso colocamos a palavra ''ortodoxa'' depois de ''Igreja'' para distingui-la de qualquer outra religião. Com certeza, a palavra''ortodoxa'' deve estar associada com a palavra ''eclesiástica'', já que a Ortodoxia não pode existir fora da Igreja; nem, claro, pode a Igreja existir fora da Ortodoxia.

Os dogmas são resultados de decisões dos Concílios Ecumênicos sobre vários assuntos de fé. Os dogmas são chamados assim porque delimitam as fronteiras entre o erro e a verdade, entre a doença e a saúde. Assim, eles são, por um lado, expressões da Revelação, e por outro lado, agem como ''remédios'' para nos guiar até a comunhão com Deus, nossa razão de ser.

As diferenças dogmáticas refletem diferenças correspondentes na terapia. Se uma pessoa não segue o ''caminho reto'', não consegue alcançar seu destino. Se não toma os ''remédios'' apropriados, não consegue adquirir saúde; em outras palavras, não vai experimentar nenhum benefício terapêutico. Repito, se comparamos a espiritualidade ortodoxa com outras tradições cristãs, a diferença de abordagem e método terapêutico se torna mais evidente.



Um ensinamento fundamental dos Santos padres é de que a Igreja é um ''hospital'' que cura o homem doente. Em muitas passagens das Sagradas Escrituras é usada essa linguagem. Uma delas é a parábola do Bom Samaritano: ''Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar.'' [Lucas 10:33-35]

Nessa parábola, o samaritano representa Cristo que cura o homem ferido e o leva para a estalagem, que é o ''hospital'', a Igreja. É evidente aqui que Cristo é apresentado como um Curador, um médico que sana os males; e a Igreja é o verdadeiro hospital. É muito representativo que São João Crisóstomo, ao analisar essa parábola, destaque essas verdades enfatizadas acima.

A vida do homem ''no Paraíso'' foi reduzida a uma vida governada pela diabo e seus ardis. ''E caiu nas mãos de ladrões'', isto é, nas mãos do diabo e de todos os poderes hostis. As feridas sofridas pelo homem são os vários pecados, como dito pelo Profeta Davi: ''As minhas chagas cheiram mal e estão corruptas, por causa da minha loucura'' [Salmos 37]. Porque ''todo pecado causa uma injúria e uma ferida''. O Samaritano é o próprio Cristo que desce dos Céus à terra para curar o homem ferido. Ele usa óleo e vinho para ''tratar'' as feridas; em outras palavras, ao ''misturar Seu sangue com o Espírito Santo, traz o homem à vida''. Segundo uma outra interpretação, o óleo corresponde à palavra consoladora e o vinho à palavra de rigor. Misturadas, elas tem o poder de unificar a mente dispersa. ''Ele o pôs sobre seu animal'', isto é, Ele assumiu a carne humana sob ''os ombros'' de Sua Divindade e ascendeu encarnado ao Seu Pai nos Céus.

Então o bom samaritano, ou seja, Cristo, levou o homem pra a grandiosa, maravilhosa e espaçosa estalagem -- a Igreja. E entregou o homem ao estalajadeiro, que é o Apóstolo Paulo, e através do Apóstolo Paulo todos os Bispos e padres, dizendo: ''Tomem conta dos gentios, que entreguei a vocês na Igreja. Eles sofrem com a doença do pecado, então curem-nos, usando como remédio as palavras dos Profetas e os ensinamentos do Evangelho; tornai-os saudáveis através das admoestações e das palavras consoladoras do Velho e Novo Testamentos.'' Assim, segundo São João Crisóstomo, Paulo é quem mantém as Igrejas de Deus, ''curando todas as pessoas por meio de suas admoestações espirituais e oferecendo a cada uma delas aquilo de que realmente necessitam.''

Na interpretação dessa parábola por São João Crisóstomo, é claramente demonstrado que a Igreja é um hospital que cura as pessoas afligidas pelo pecado; e os Bispos e padres são os terapeutas do povo de deus.


São José o Hesicasta

E é precisamente esse o trabalho da teologia ortodoxa. Quando nos referimos à teologia ortodoxa, não falamos simplesmente da história da teologia. A última, claro, é parte dela mas não de modo absoluto ou exclusivo. Na tradição patrística, os teólogos são videntes de Deus. São Gregório Palamas chama Barlaão [que tentou trazer a teologia escolástica ocidental para dentro da Igreja Ortodoxa] de ''teólogo'', mas ele enfatizavam claramente que a teologia intelectual diferia grandemente da experiência da visão de Deus; aqueles que seguiram o ''método'' da Igreja e conquistaram a perfeita fé, a iluminação do nous e a deificação (theosis). A teologia é o fruto da cura do homem e o caminho que leva à cura e à aquisição do conhecimento de Deus.

A teologia ocidental, portanto, se diferenciou da teologia ortodoxa. Em vez de ser terapêutica, possui um caráter mais emocional e intelectual. No Ocidente (após a ''Renascença Carolíngea''), a teologia escolástica evoluiu, o que é contrário à Tradição Ortodoxa. A teologia ocidental está baseada no pensamento racional enquanto a Ortodoxia é hesicasta. A teologia escolástica tentou entender logicamente a Revelação de Deus e se conformar à metodologia filosófica. Tal abordagem é representada pelo dito de Anselmo [Arcebispo de Canterbury de 1093-1109, um dos primeiros após a conquista normanda e a destruição da antiga Igreja Ortodoxa inglesa]: Creio para entender''. Os escolásticos reconhecem Deus no início e então tentam provar sua existência por argumentos lógicos e categorias racionais. Na Igreja ortodoxa, tal como expresso pelos Santos Padres, a fé é a Revelação de Deus ao homem. Aceitamos a fé a ou ouvir não de modo a entendê-la racionalmente, mas para que possamos purificar nossos corações, alcançar a theoria e experimentar a Revelação de Deus.

A teologia escolástica alcançou seu ponto culminante na pessoa de Tomás de Aquino, um santo na Igreja Católica Romana. Ele defendeu que as verdades cristãs são divididas em naturais e sobrenaturais. As verdades naturais podem ser provadas filosoficamente, como a verdade da Existência de Deus. As verdades sobrenaturais -- tais como o Deus Triuno, a Encarnação do Verbo, a Ressurreição dos corpos -- não podem ser provadas filosoficamente, e assim não podem ser refutadas. A Escolástica associa a teologia com a filosofia de modo muito próximo, e mais ainda com a metafísica. Em consequência, a fé foi alterada e a própria teologia escolástica caiu em descrédito quando o ''ídolo'' do Ocidente -- a metafísica -- colapsou. A Escolástica é responsável por boa parte da situação trágica criada no Ocidente a respeito da fé e das questões de fé.

Os Santos Padres ensinam que as categorias natural e metafísica não existem mas se referem antes ao criado e ao incriado. Os Santos Padres nunca aceitaram a metafísica aristotélica. Mas não é minha intenção me alongar sobre isso. Os teólogos do Ocidente durante a idade Média consideravam a teologia escolástica um desenvolvimento dos ensinamentos dos Santos padres, e daí em diante tiveram início os ensinamentos dos francos de que a teologia escolástica era superior àquela dos Santos Padres. Consequentemente, os escolásticos, que se ocupam com a razão, se consideram superiores aos Santos Padres da Igreja. Eles também acreditam que o conhecimento humano, um fruto da razão, é mais elevado do que a Revelação e a experiência.



É dentro desse contexto que deve ser visto o conflito entre São Gregório Palamas e Barlaão. Barlaão era essencialmente um teólogo escolástico que tentava transmitir a teologia escolástica para a Ortodoxia.

As perspectivas de Barlaão -- de que não podemos realmente saber Quem o Espírito Santo verdadeiramente é (uma forma de agnosticismo), de que os antigos filósofos gregos são superiores aos Profetas e Apóstolos (já que a razão está acima da visão dos Apóstolos), de que a luz da Transfiguração é criada e que pode ser desfeita, de que o modo hesicasta de vida (isto é, a purificação do coração e oração noética incessante) não é essencial -- são visões que expressam uma perspectiva escolástica e, portanto, secularizada da teologia. São Gregório Palamas previu o perigo que essas opiniões levavam à Ortodoxia e através do poder e energia do Santíssimo Espírito e a experiência que ele mesmo adquiriu como um sucessor dos Santos Padres, confrontou esse perigo e preservou sem adulterações a Tradição e a Fé ortodoxa.

Tendo fornecido um panorama do tópico em tela, se examinamos a espiritualidade ortodoxa em comparação ao catolicismo romano e ao protestantismo, as diferenças são imediatamente descobertas.

Os protestantes não tem uma tradição de ''tratamento terapêutico''. Eles supõe que acreditar em Deus, intelectualmente, constitui a salvação. Mas a salvação não é um objeto de aceitação intelectual da verdade; antes é uma transformação pessoal e deificação pela graça. Essa transformação é efetuada por um ''tratamento'' análogo ao de uma pessoa, como veremos nos próximos capítulos. Nas Escrituras Sagradas parece que a fé vem por meio da audição da Palavra e da experiência da ''theoria'' (a visão de Deus). Aceitamos a fé primeiro pela audição de modo a sermos curados, e então conquistamos a fé pela theoria, que salva o homem. Os protestantes, por acreditarem que a aceitação das verdades de fé, a aceitação teorética da Revelação de Deus, ou seja, a fé pelo ouvir salva o homem, não possuem uma ''tradição terapêutica''. Podemos dizer que se trata de uma concepção de salvação muito ingênua.

Os católico-romanos também não possuem a perfeição da tradição terapêutica que a Igreja Ortodoxa possui. Sua doutrina da Filioque é uma manifestação da fraqueza de sua teologia para perceber a relação entre a pessoa e a sociedade. Eles confundem as propriedades pessoais: o ''não gerado'' do Pai, o ''gerado'' do Filho e a processão do Espírito Santo. O Pai é causa da ''geração'' do Filho e da processo do Espírito Santo.

A fraqueza latina em compreender e a falha em expressar o dogma da Trindade mostra a inexistência de uma teologia empírica. Os três discípulos de Cristo (Pedro, Tiago e João) contemplaram a glória de Cristo no Monte Tabor; eles ouviram de uma vez a voz do Pai, ''Esse é meu filho amado'', e viram a descida do Espírito Santo em uma nuvem, pois a nuvem é a presença do Espírito Santo, tal como diz São Gregório Palamas. Assim os discípulos de Cristo adquiriram o conhecimento do Deus Triuno em theoria (visão de Deus) e por revelação. Foi revelado a eles que Deus é uma essência em três Hipóstases.


Isso é o que ensina São Simeão o Novo Teólogo. Em seus poemas, ele proclama uma vez após a outra que, enquanto contempla a Luz Incriada, o homem deificado adquire a Revelação da Trindade Divina. Se encontrando em ''theoria'' (visão de Deus), os santos não confundem os atributos hipostáticos. O fato de que a tradição latina chegou ao ponto de confundir os atributos hipostáticos e o ensinamento de que o Espírito Santo procederia também do Filho mostra a inexistência de uma teologia empírica entre eles. A tradição latina fala da graça criada, o que sugere que eles não experimentam a graça de Deus. Pois quando um homem obtém a experiência de Deus, então ele vem a compreender que a graça é incriada. Sem essa experiência não pode existir nenhuma ''tradição terapêutica'' genuína.


E de fato não encontramos em toda a tradição latina o equivalente ao método terapêutico ortodoxo. Não se fala do Nous; nem se distingue o Nous da razão. O Nous obscurecido não é tratado como uma doença, nem a iluminação do Nous como uma terapia. Muitos textos latinos altamente difundidos são sentimentais e se exaurem em uma estéril etiologia. Na Igreja Ortodoxa, pelo contrário, há uma grande tradição a respeito desses temas, que mostra que no interior dela existe o verdadeiro método terapêutico.

Uma fé é verdadeira na medida em que possua benefícios terapêuticos. Se está apta a curar, então é uma fé verdadeira. Se não cura, não é uma fé verdadeira. A mesma coisa pode ser dita sobre a medicina: um cientista verdadeiro é aquele que sabe como curar e seu método traz benefícios terapêuticos, enquanto um charlatão é incapaz de curar. As mesmas verdades se sustentam quando se diz respeito aos assuntos da alma. A diferença entre a ortodoxia e a tradição latina, tanto quanto as confissões protestantes, parece estar principalmente no método da terapia. Essa diferença se torna manifesta nas doutrinas de cada denominação. Os dogmas não são filosofia, nem é a teologia o mesmo que a filosofia.

Dado que a espiritualidade ortodoxa difere de modo distinto das ''espiritualidades'' de outras confissões, ainda mais difere da ''espiritualidade'' das religiões orientais, que não acreditam na natureza teantrópica de Cristo e no Espírito Santo. Elas são influenciadas pela dialética filosófica, que foi superada pela Revelação de Deus. Essas tradições não são conscientes da noção de pessoa e do princípio hipostático. E o amor, como ensinamento fundamental, está totalmente ausente. Alguém pode encontrar, é claro, nessas religiões orientais um esforço da parte de seus seguidores para se apartarem de pensamentos racionais e imagens, mas este é na verdade um movimento rumo ao nada, à não existência. Não há um caminho levando seus ''discípulos'' à theosis-deificação (ver a nota abaixo) do homem integral.



Daí porque há um vasto e caótico abismo entre a espiritualidade ortodoxa e as religiões orientais, apesar de certas similaridades externas na terminologia. Por exemplo, as religiões orientais podem empregar termos como ''êxtase'', ''impassibilidade'', ''iluminação'', ''energia noética'' etc. mas estão impregnadas por um conteúdo diferente dos termos correspondentes na espiritualidade ortodoxa.

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Do Capítulo 2 de ''Orthodox Spirituality: A brief introduction'', publicado em 1994 pelo Mosteiro da Natividade de Theotokos, Levadia, Grécia. Veja também ''Way Apart: What is the Difference Between Orthodoxy and Western Confessions?'', do Metropolita Anthony (Khrapovitsky) de Kiev e Galícia

Orthodox Christian Information Center
Met. Hierotheos Vlachos
25 / 11 / 2013

ps.: Theoria é a visão da glória de Deus. A theoria é identificada com a visão da Luz incriada, a energia incriada de Deus, com a união do homem com Deus, com a theosis [ver nota abaixo] do homem. Assim, theoria, a visão e a theosis estão associados intimamente. A theoria possui vários graus. Há a iluminação, visão de Deus, e a visão constante (por horas, dias, semanas e até meses). A oração noética é o primeiro estágio da theoria. O homem teorético é aquele que atingiu esse estágio. Na Teologia Patrística, o homem teorético é representado como o pastor das ovelhas.

pps.: A Theosis-Deificação é a participação na graça incriada de Deus. A Theosis é identificada e associada com a theoria (visão) da Luz Incriada (veja nota acima). É chamada de theosis na graça porque é alcançada através da energia da graça divina. É uma co-operação de Deus com o homem, já que é Deus quem opera e o homem quem co-opera.

Um comentário:

  1. Belo texto André. Estas considerações também valem para a ordem monástica da carthusia/monges cartuxos? Pelo que andei a ler, esta é a ordem monástica católica cujas práticas mais se assemelham as da Ortodoxia..

    Att

    Henrique Silvério.

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