segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Areia que escorre entre os dedos, ou: O Progressismo liberal destruiu Guerra nas Estrelas? Parte Final

''Os Antigos, os Celestiais, os Rakata, não pronunciavam julgamento  de seu trabalho. Moviam planetas, organizavam sistemas estelares, conjuravam aparatos do lado sombrio, como a Forja Estelar, quando julgavam adequado. Se milhões morriam no processo, sem problema. As vidas de boa parte dos seres não tem importância. Os Jedi não conseguiram entender isso. Ocupam-se tanto tentando salvar vidas e lutando para manter em equilíbrio os poderes da Força que perderam a noção de que a vida senciente foi feita para evoluir, não simplesmente regozijar numa estase tranquila.''

Darh Plagueis





A cena final revela Luke como um Mestre realizado, a ''lenda da galáxia'': o reencontro com o personagem se tornou despedida dolorosa para alguns fãs e gloriosa para outros



Quando tratamos das causas para as críticas conservadoras atuais em cima da nova trilogia de Guerra nas Estrelas há de se ter redobrado cuidado para não cair em psicologismos. Há um óbvio viés político e sociológico imbricado com esse repúdio, que se liga por um lado ao conteúdo progressista que eu concordei existir na franquia, e, por outro, ao pêndulo ideológico que existe na vida das sociedades em que ela é exibida.







Mas dando prosseguimento à linha de raciocínio, prefiro discutir a tendência conservadora de criticar essa trilogia específica da saga enquanto se engana ao pretender separar as demais da mentalidade liberal, como se Guerra nas Estrelas não estivesse desde seu início mergulhado nos mais típicos valores americanos. Ora, se deixarmos de lado os dois extremos, aquele em que o cinema é mera propaganda dos valores ocidentais e aquele em que não traz nenhum abraço a eles, a obra de George Lucas se insere em um conjunto de filmes que pode tanto ser criticado por seu liberalismo como apreciado apesar dessas limitações. Muitos direitistas e conservadores estão preferindo, no entanto, louvar as duas primeiras trilogias ao mesmo tempo que condenam os filmes recentes ao inferno por pecados que são cometidos desde 1977. Nesse sentido é inócuo fingir que não há influências geracionais por trás dessa postura, ainda que eu admita existirem aqueles que escolhem manter o duplo critério por razões mais propriamente de caráter político.









Cada geração tem a tendência de encarar seu tempo como um período especial, e, mais curioso ainda, a proteger os elementos cuja ligação afetiva alimenta a sensação tão desejável de fazer parte da última bolacha do pacote, depois da qual tudo é decadência e nulidade. No caso de Guerra nas Estrelas, esse sentimento se traduz pela ilusão de que o estado em que conhecemos a saga é o que revela sua versão definitiva, sua verdade mais profunda e suas características mais essenciais. O que veio antes foi preparação para o cume que tivemos a sorte de conhecer, e o que vem depois é mero desvio e comércio. Evidente que toda e qualquer obra possui traços que a distinguem e sem as quais ela se torna definitivamente outra coisa. “The Walking Dead” acabaria como tal se deixasse de ser ambientada em um apocalipse zumbi. A saga criada por George Lucas não poderia abandonar o conceito de 'Força'. Mas essas particularidades não estão fixas nem no interior da concretude artística que as veiculam nem num determinado momento temporal. Como mencionei mais de uma vez nessas postagens, a obra é relida, vai sendo redimensionada à medida que encontra seu público, criando certa autonomia diante das intenções de quem a assina. E se esse público que recebe e remodela continuamente o significado da obra se estende no tempo em mais de uma geração fica complicado estabelecer um limite objetivo para o desenvolvimento daquelas particularidades que permitem reconhecê-la.




Rey e Finn descobrem a velha sucata que é a nave mais rápida da galáxia: os fãs dos anos 1980 voltam para casa





Parte considerável dos fãs de Guerra nas Estrelas carrega a firme convicção de que conhece a estrutura definitiva da narrativa, a partir da qual pode jogar anátemas sobre qualquer tentativa de mudança. É espantoso ver garotos que nasceram quase vinte anos depois da primeira trilogia dizendo que a linhagem Skywalker não poderia ser abandonada, pois a saga se trata principalmente sobre Anakin, o ''escolhido'', quando sabemos que nos primeiros rascunhos Luke era filho de Obi Wan, e que sua filiação a Vader não havia sido decidida pelo próprio criador da saga antes do início da produção d’O Império contra-ataca. Outro dia, eu lia uma entrevista antiga de George Lucas, em que o cineasta explicava que Yoda não era exatamente um Jedi. Ele seria um mestre que guiava outros que pretendiam e podiam se tornar cavaleiros da Ordem. Como consequência dessa perspectiva, continuava Lucas, Yoda não lutava, e, disse ele literalmente, não conseguiria enfrentar, por exemplo, Darth Vader. Agora pensem na segunda trilogia, em que acompanhamos o mesmo Yoda como um dos membros mais importantes do Conselho Jedi, hábil o suficiente para se digladiar com inimigos e dar saltos acrobáticos brandindo seu sabre de luz em lutas magníficas contra o Conde Dooku e contra o Imperador em pessoa [Darth Sidious para os mais novos]. Qual a ''verdade'' da saga, aquela na cabeça de George Lucas nessa entrevista ou a que ele próprio levou ao cinema?






Eu cresci nos anos 1980 com os três primeiros filmes, e os fãs da minha idade tem uma relação ambígua com os lançamentos da Disney. Nos anos 2000 fomos engolfados por uma certa estranheza quanto aos rumos estabelecidos pela Lucasfilm. ''Ameaça Fantasma'' era demasiado infantil para nós, que já estávamos cursando a faculdade ou iniciando a vida profissional, quando não criando já o primeiro filho e sustentando a primeira casa. A ambiência nos deslocava, não reconhecíamos de imediato o universo com o qual havíamos crescido -- apesar do filme ter alguns planos e cenas belíssimos, como o dos amplos salões de Naboo, mergulhados num misto de grandiosidade e orientalismo. Esse deslocamento era acentuado pelo novo trio de protagonistas: Luke, Leia e Solo foram descartados, e em seu lugar víamos Anakin, Padmé e um jovem Obi Wan. Ainda mais estarrecedor, porém, era a baixa qualidade dos filmes. De fato, o único que merece ser chamado de bom é ''A Vingança do Sith''. Diante disso, fiquei espantado com o sucesso da empreitada: George Lucas foi extremamente bem sucedido ao levar Guerra nas Estrelas para adolescentes criados entre PCs, na Internet, desejosa por realidade virtual e mergulhados em cada vez mais impressionantes jogos de console, uma geração que crescia entre os embates do fim da União Soviética, do unilateralismo geopolítico ianque, das tentativas de fortalecimento da ONU e dos novos eixos da política americana. O sucesso foi de tamanha magnitude que multiplicou de modo espetacular uma série de produtos, o ''Universo Extendido'' semi-oficial, que possibilitou que os novos fãs criassem sua própria leitura daquele universo.

A morte de Han Solo






Na verdade, dei boas vindas à maior parte dos conceitos implementados na segunda trilogia. Ainda que a experiência cinematográfica não tenha sido satisfatória, as ideias desenvolvidas para Guerra nas Estrelas aprofundaram a mitologia e a elevaram de patamar. Eu as absorvi tanto quanto a nova geração, e imagino que o mesmo aconteceu com a maioria de nós que continuaram acompanhando a saga. Mas existia uma saudade do universo e dos personagens originais, e isso ficou nítido quando J.J. Abrams nos mergulhou de novo na ambiência dos primeiros filmes e, ao lado de novos protagonistas, trouxe de volta os velhos herois dos anos 1980.  Muitos se comoveram com a entrada de Solo na Millenium Falcon dizendo a seu fiel parceiro, ''Chewie, estamos em casa!'', ou com o encontro do mesmo Solo com a perene princesa Leia. [embora a nova geração vá crescer chamando-a de ''general'']. Os sentimentos positivos em relação aos novos filmes foram contrabalançados ao se perceber que os herois retornaram também para que fosse possível se despedir deles, algo que foi negado pelas obras de 1999 a 2005. O choro que se produziu em parte dos fãs mais antigos foi acrescido de resmungos quanto à partida de Luke. ''Agora a saga acabou'', li algumas dezenas de vezes. As reclamações incluíam o desenvolvimento dos personagens, e até Mark Hamill se juntou ao coro, embora depois tenha explicado que estava errado. O ator representava o fã antigo que havia sido retirado da zona de conforto.





Sensações parecidas podem ser percebidas entre os que conheceram a franquia nos anos 2000. Descobriram agora que a linhagem Skywalker está sendo deixada de lado; e se perguntam, atônitos, ''sobre o quê, afinal, é essa nova trilogia?'' Acusam a Disney de destruir seu objeto de afeição por razões comerciais -- como se a Lucasfilm não tivesse nascido como um negócio ou como se fosse desapegada de preocupações com o marketing. Em uma cena marcante d'Os Últimos Jedi, a Comandante Holdo, preparada para o sacrifício em prol da Resistência, encara seus companheiros de luta fugindo em transportes, na execução de um plano que ela mesma havia concebido, e diz, ''Boa sorte, Rebeldes!'' A frase me lembrou que a Disney havia lançado uma série que vem fazendo muito sucesso, ''Rebels". A animação, que já vai para a quarta temporada, se passa logo depois do Episódio III, e mostra a ''fagulha'' de inconformismo que desembocaria depois na organização de uma Rebelião formal contra o Império. Impossível deixar de notar a ponte que está sendo feita com a história contada agora nos cinemas, embora a temporalidade seja distinta. A nova trilogia se foca principalmente no público que está sendo criado assistindo ''Rebels'', com personagens diferentes daqueles rostos com que nos acostumamos, mas que se encaixam no contexto daquela galáxia muito distante.



Rey precisa de alguém que lhe mostre seu lugar em ''tudo aquilo''




E é esse o tema principal de Rian Johnson -- que, dizem, foi convidado para organizar a quarta trilogia que já está sendo pensada pela Disney, e espero que a informação não provoque uma série de suicídios de fãs inconformados pela ausência de um ponto final na saga --, como levar Guerra nas Estrelas para um novo público sem deixar de transmitir os elementos essenciais que fizeram da obra um marco do universo pop. Alguns elementos que capturaram a imaginação das outras gerações serão abandonados ou adormecidos. Ninguém falou até agora de midi-chlorians. O sangue Skywalker está deixando de ser central. Solo, Luke e Leia estão tão mortos quanto Anakin, Obi Wan e Padmé. É relativizada a suposta profundidade do embate político entre federalismo e autoritarismo, que Lucas encarava como uma luta que se perdia nas brumas da civilização. E nem a Ordem Jedi parece escapar do turbilhão de mudanças. A própria visão sobre a Força pode ser aprofundada, se levamos a sério tudo o que Luke disse. Ele nos mostrou outra dimensão dos poderes dos iniciados ao realizar uma projeção que era também materialização e capacidade de interagir com o mundo físico -- Yoda não é só um uma vaga presença conselheira tampouco, ele conjurou um relâmpago que incendiou a árvore sagrada dos Jedi. E o Diamante Negro, o poder bruto e originário, pode vir a ser tema de reflexões que prometem conduzir  Guerra nas Estrelas a outro nível. São mudanças que fazem estremecer os corações conservadores, que agora encaram a verdade de que a saga não lhes pertence, que não se comunica mais só com eles, e que um público ainda mais jovem vai reler à luz dos novos filmes tudo o que eles consideravam firmemente estabelecido. Como dizia o Bardo de Sobral, o novo sempre vem, e tanto conservadorismo quanto progressismo são insuficientes para lidar com ele.

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