''Os Antigos, os Celestiais, os Rakata, não pronunciavam julgamento de seu trabalho. Moviam planetas, organizavam sistemas estelares, conjuravam aparatos do lado sombrio, como a Forja Estelar, quando julgavam adequado. Se milhões morriam no processo, sem problema. As vidas de boa parte dos seres não tem importância. Os Jedi não conseguiram entender isso. Ocupam-se tanto tentando salvar vidas e lutando para manter em equilíbrio os poderes da Força que perderam a noção de que a vida senciente foi feita para evoluir, não simplesmente regozijar numa estase tranquila.''
Darh Plagueis
A cena final revela Luke como um Mestre realizado, a ''lenda da galáxia'': o reencontro com o personagem se tornou despedida dolorosa para alguns fãs e gloriosa para outros |
Quando tratamos das
causas para as críticas conservadoras atuais em cima da nova trilogia de Guerra
nas Estrelas há de se ter redobrado cuidado para não cair em psicologismos.
Há um óbvio viés político e sociológico imbricado com esse repúdio, que se
liga por um lado ao conteúdo progressista que eu concordei existir na franquia,
e, por outro, ao pêndulo ideológico que existe na vida das sociedades em que ela é exibida.
Mas dando prosseguimento à linha de
raciocínio, prefiro discutir a tendência
conservadora de criticar essa trilogia específica da saga enquanto se engana ao
pretender separar as demais da mentalidade liberal, como se Guerra nas Estrelas
não estivesse desde seu início mergulhado nos mais típicos valores americanos.
Ora, se deixarmos de lado os dois extremos, aquele em que o cinema é mera
propaganda dos valores ocidentais e aquele em que não traz nenhum abraço a eles,
a obra de George Lucas se insere em um conjunto de filmes que pode tanto ser
criticado por seu liberalismo como apreciado apesar dessas limitações. Muitos
direitistas e conservadores estão preferindo, no entanto, louvar as duas
primeiras trilogias ao mesmo tempo que condenam os filmes recentes ao inferno
por pecados que são cometidos desde 1977. Nesse sentido é inócuo fingir que não
há influências geracionais por trás dessa postura, ainda que eu admita existirem aqueles que escolhem manter o duplo critério por razões mais
propriamente de caráter político.
Cada geração tem a tendência de
encarar seu tempo como um período especial, e, mais curioso ainda, a proteger
os elementos cuja ligação afetiva alimenta a sensação tão desejável de fazer
parte da última bolacha do pacote, depois da qual tudo é decadência e nulidade. No
caso de Guerra nas Estrelas, esse sentimento se traduz pela ilusão de que o
estado em que conhecemos a saga é o que revela sua versão definitiva, sua verdade
mais profunda e suas características mais essenciais. O que veio antes foi
preparação para o cume que tivemos a sorte de conhecer, e o que vem depois é
mero desvio e comércio. Evidente que toda e qualquer obra possui
traços que a distinguem e sem as quais ela se torna definitivamente outra
coisa. “The Walking Dead” acabaria como tal se deixasse de ser ambientada em um
apocalipse zumbi. A saga criada por George Lucas não poderia abandonar o
conceito de 'Força'. Mas essas particularidades não estão fixas nem no interior
da concretude artística que as veiculam nem num determinado momento temporal.
Como mencionei mais de uma vez nessas postagens, a obra é relida, vai sendo
redimensionada à medida que encontra seu público, criando certa autonomia
diante das intenções de quem a assina. E se esse público que recebe e remodela
continuamente o significado da obra se estende no tempo em mais de uma geração
fica complicado estabelecer um limite objetivo para o desenvolvimento daquelas
particularidades que permitem reconhecê-la.
Rey e Finn descobrem a velha sucata que é a nave mais rápida da galáxia: os fãs dos anos 1980 voltam para casa |
Parte considerável dos fãs de Guerra
nas Estrelas carrega a firme convicção de que conhece a estrutura definitiva da
narrativa, a partir da qual pode jogar anátemas sobre qualquer tentativa de
mudança. É espantoso ver garotos que nasceram quase vinte anos depois da
primeira trilogia dizendo que a linhagem Skywalker não poderia ser abandonada,
pois a saga se trata principalmente sobre Anakin, o ''escolhido'', quando
sabemos que nos primeiros rascunhos Luke era filho de Obi
Wan, e que sua filiação a Vader não havia sido decidida pelo próprio criador da
saga antes do início da produção d’O Império contra-ataca. Outro dia, eu lia
uma entrevista antiga de George Lucas, em que o cineasta explicava que Yoda não
era exatamente um Jedi. Ele seria um mestre que guiava outros que pretendiam e
podiam se tornar cavaleiros da Ordem. Como consequência dessa perspectiva,
continuava Lucas, Yoda não lutava, e, disse ele literalmente, não conseguiria
enfrentar, por exemplo, Darth Vader. Agora pensem na segunda trilogia, em que acompanhamos
o mesmo Yoda como um dos membros mais importantes do Conselho Jedi, hábil o
suficiente para se digladiar com inimigos e dar saltos acrobáticos brandindo
seu sabre de luz em lutas magníficas contra o Conde Dooku e contra o Imperador
em pessoa [Darth Sidious para os mais novos]. Qual a ''verdade'' da saga,
aquela na cabeça de George Lucas nessa entrevista ou a que ele próprio levou ao
cinema?
Eu cresci nos anos 1980 com os três
primeiros filmes, e os fãs da minha idade tem uma relação ambígua com os
lançamentos da Disney. Nos anos 2000 fomos engolfados por uma certa estranheza
quanto aos rumos estabelecidos pela Lucasfilm. ''Ameaça Fantasma'' era
demasiado infantil para nós, que já estávamos cursando a faculdade ou
iniciando a vida profissional, quando não criando já o primeiro filho e
sustentando a primeira casa. A ambiência nos deslocava, não reconhecíamos de
imediato o universo com o qual havíamos crescido -- apesar do filme ter alguns
planos e cenas belíssimos, como o dos amplos salões de Naboo, mergulhados num
misto de grandiosidade e orientalismo. Esse deslocamento era acentuado pelo
novo trio de protagonistas: Luke, Leia e Solo foram descartados, e em seu lugar
víamos Anakin, Padmé e um jovem Obi Wan. Ainda mais estarrecedor, porém, era a
baixa qualidade dos filmes. De fato, o único que merece ser chamado de bom é
''A Vingança do Sith''. Diante disso, fiquei espantado com o sucesso da
empreitada: George Lucas foi extremamente bem sucedido ao levar Guerra nas
Estrelas para adolescentes criados entre PCs, na Internet, desejosa por
realidade virtual e mergulhados em cada vez mais impressionantes jogos de
console, uma geração que crescia entre os embates do fim da União
Soviética, do unilateralismo geopolítico ianque, das tentativas de fortalecimento
da ONU e dos novos eixos da política americana. O sucesso foi de tamanha magnitude que multiplicou de modo espetacular uma série de produtos, o ''Universo
Extendido'' semi-oficial, que possibilitou que os novos fãs criassem sua
própria leitura daquele universo.
Na verdade, dei boas vindas à
maior parte dos conceitos implementados na segunda trilogia. Ainda que a
experiência cinematográfica não tenha sido satisfatória, as ideias
desenvolvidas para Guerra nas Estrelas aprofundaram a mitologia e a elevaram de
patamar. Eu as absorvi tanto quanto a nova geração, e imagino que o mesmo
aconteceu com a maioria de nós que continuaram acompanhando a saga. Mas existia uma saudade do universo e dos personagens originais, e isso ficou nítido
quando J.J. Abrams nos mergulhou de novo na ambiência dos primeiros filmes e,
ao lado de novos protagonistas, trouxe de volta os velhos herois dos anos
1980. Muitos se comoveram com a entrada
de Solo na Millenium Falcon dizendo a seu fiel parceiro, ''Chewie, estamos em
casa!'', ou com o encontro do mesmo Solo com a perene princesa Leia. [embora a
nova geração vá crescer chamando-a de ''general'']. Os sentimentos positivos em
relação aos novos filmes foram contrabalançados ao se perceber que os herois retornaram também para que fosse possível se despedir deles,
algo que foi negado pelas obras de 1999 a 2005. O choro que se produziu em
parte dos fãs mais antigos foi acrescido de resmungos quanto à partida de Luke.
''Agora a saga acabou'', li algumas dezenas de vezes. As reclamações incluíam o
desenvolvimento dos personagens, e até Mark Hamill se juntou ao coro, embora
depois tenha explicado que estava errado. O ator representava o fã antigo que
havia sido retirado da zona de conforto.
Sensações parecidas podem ser percebidas entre os que
conheceram a franquia nos anos 2000. Descobriram agora que a linhagem Skywalker
está sendo deixada de lado; e se perguntam, atônitos, ''sobre o quê, afinal, é
essa nova trilogia?'' Acusam a Disney de destruir seu
objeto de afeição por razões comerciais -- como se a Lucasfilm não tivesse nascido como um
negócio ou como se fosse desapegada de preocupações com o marketing. Em uma cena
marcante d'Os Últimos Jedi, a Comandante Holdo, preparada para o sacrifício em
prol da Resistência, encara seus companheiros de luta fugindo em transportes,
na execução de um plano que ela mesma havia concebido, e diz, ''Boa sorte,
Rebeldes!'' A frase me lembrou que a Disney havia lançado uma série que vem
fazendo muito sucesso, ''Rebels". A animação, que já vai para a quarta
temporada, se passa logo depois do Episódio III, e mostra a ''fagulha'' de
inconformismo que desembocaria depois na organização de uma Rebelião formal
contra o Império. Impossível deixar de notar a ponte que está sendo feita com a história contada agora nos cinemas, embora a temporalidade seja distinta. A nova
trilogia se foca principalmente no público que está sendo criado assistindo
''Rebels'', com personagens diferentes daqueles rostos com que nos acostumamos,
mas que se encaixam no contexto daquela galáxia muito distante.
E é esse o tema principal de Rian
Johnson -- que, dizem, foi convidado para organizar a quarta trilogia que já
está sendo pensada pela Disney, e espero que a informação não provoque uma
série de suicídios de fãs inconformados pela ausência de um ponto final na saga
--, como levar Guerra nas Estrelas para um novo público sem deixar de
transmitir os elementos essenciais que fizeram da obra um marco do universo
pop. Alguns elementos que capturaram a imaginação das outras gerações serão abandonados ou adormecidos. Ninguém falou até agora de midi-chlorians. O sangue
Skywalker está deixando de ser central. Solo, Luke e Leia estão tão mortos quanto Anakin, Obi Wan e Padmé. É
relativizada a suposta profundidade do embate político entre federalismo e autoritarismo,
que Lucas encarava como uma luta que se perdia nas brumas da civilização. E nem a Ordem Jedi parece
escapar do turbilhão de mudanças. A própria visão sobre a Força pode ser
aprofundada, se levamos a sério tudo o que Luke disse. Ele nos mostrou outra
dimensão dos poderes dos iniciados ao realizar uma projeção
que era também materialização e capacidade de interagir com o mundo físico --
Yoda não é só um uma vaga presença conselheira tampouco, ele conjurou um relâmpago que
incendiou a árvore sagrada dos Jedi. E o Diamante Negro, o poder bruto e
originário, pode vir a ser tema de reflexões que prometem conduzir Guerra nas Estrelas a outro nível. São
mudanças que fazem estremecer os corações conservadores, que agora encaram a
verdade de que a saga não lhes pertence, que não se comunica mais só com eles,
e que um público ainda mais jovem vai reler à luz dos novos filmes tudo o que
eles consideravam firmemente estabelecido. Como dizia o Bardo de Sobral, o novo sempre vem, e tanto
conservadorismo quanto progressismo são insuficientes para lidar com ele.
Ótima série de textos. Escreves sempre com muita lucidez. Parabéns.
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