No post anterior [Parte 2] falava eu dos
três períodos 'cronológicos' em que a Santa Tradição divide o processo da morte
da pessoa até sua chegada no locus que lhe está 'reservado' no além. O fim de
cada uma destas etapas é marcada por um dia de ofício específico na Igreja,
realizados portanto ao terceiro, nono e quadragésimo dia após a morte clínica.
Ressalto mais uma vez que esta contagem cronológica possui uma dimensão
simbólica e não pode ser vista de maneira unívoca, pois nossa experiência
espaço-temporal não pode ser transplantada pura e simplesmente para outras
dimensões da existência diferentes da corpórea. Pois bem, no primeiro período a
alma permanece na terra por três dias, durante os quais ela se deixa guiar ou
pelos anjos que Deus coloca para guardá-la e orientá-la [o anjo da guarda e o
anjo psicopompo] ou pelos demônios aos quais se fez afim durante a vida
terrena. Nesta fase, a alma pode vaguear pelas regiões que quiser, ou ficando
próxima do seu corpo, da sua casa, dos seus parentes ou dos locais dos quais se
sente saudosa. No terceiro dia, associado com a Ressurreição de Cristo e com
Sua saída do túmulo, a alma inicia sua ascensão até os Céus. Alguns santos,
conforme expliquei, rumam para o Paraíso imediatamente após a morte, dada a
vida piedosa que levaram e a concentração de todos os seus desejos em Cristo
Nosso Deus. A maior parte das pessoas, no entanto, realiza uma ascensão gradual
até o Trono de Cristo. Nesta 'subida' a alma tem de passar por aquilo que a
Santa Tradição chama comumente de 'telônios aéreos'.
7) Na
ascensão da alma pelos ares rumo ao Paraíso ela é acompanhada por anjos,
principalmente pelo anjo psicopompo, encarregado de guiá-la até o Trono de
Deus. Mas assim como no momento da morte existem batalhões de demônios prontos
a arrastar a alma, assim também em seu vôo para Deus ela enfrenta oposição e
resistência dos poderes das trevas, que se postam no caminho até o Paraíso e a
investigam, inquirem e ameaçam de acordo com as paixões que possua e os pecados
que tenha cometido. Os demônios se estabelecem no caminho da alma em
''estações'' progressivas, cada uma delas ligada a uma paixão ou a determinados
tipos de pecado. Ao passar por casa uma destas estações, a alma é atacada por
estes poderes, que buscam tirá-la das mãos do anjo da guarda e do anjo
psicopompo e levá-la para os abismos do Hades. Em cada uma destas 'estações',
ou 'telônios', os príncipes da obscuridade investigam se a alma possui aquilo
que pertence a eles, demônios, ou seja, más paixões. Uma vez que estas paixões
correspondentes aos telônios sejam encontradas, a alma, para prosseguir, deve
'pagar' com elementos de si mesma, ou então com virtudes e bons atos que
compensem os maus feitos e os vícios. Nesta batalha, os anjos ajudam a alma
reunindo tudo de bom que ela tenha feito como também as orações da Igreja que
são feitas ao seu favor. Caso a alma não os possua de modo suficiente a passar
por aquela estação específica, é arrastada pelos demônios a ela associados e
fica sob seu poder, acorrentada e torturada, até que a Misericórdia de Deus a
liberte. É a esta batalha nos ares que se refere a São Paulo quando afirma que
nossa luta não é ''contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados,
contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as
hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais''. Para passar ilesa
pelos telônios aéreos, a alma deve ter corrigido suas paixões ainda em vida por
meio do ascetismo, levado uma vida virtuosa, se arrependido de todos os seus
pecados e os confessado ao pai espiritual, já que, por meio do mistério da
confissão o Espírito Santo pode apagá-los do livro da vida. Todas as faltas,
voluntárias e involuntárias, cometidas por palavras e atos, consciente ou
inconscientemente, são trazidas à tona durante o confronto contra os demônios
''coletores'' ou ''publicanos'', que acusam a alma até mesmo do que ela não
fez.
8) O
ensinamento sobre os 'telônios aéreos' não é um dogma de fé mas está presente em
virtualmente todos os Santos Padres que escreveram sobre a morte e também em
textos litúrgicos da Igreja. Eles são, portanto, parte incontestável da Santa
Tradição. Sobre eles falaram São Gregório de Nissa, São Paphnuntio, Sao
Theodoreto de Cyrrhus, São Cirilo de Alexandria, São Gregório o Grande, São
Simeão o Tolo de Cristo, São Máximo Confessor, São Theognostos, São Dorotheos
de Gaza, São Hesíquio de Bastos, São Macário do Egito, São Nicetas Stethatos,
São Simeão o Novo Teólogo, São João Crisóstomo, Santo Antão, São João Clímaco,
Santo Abba Isaías de Scetis, São Gregório da Trácia, São João dos Cárpatos,
Orígenes, São Justino Popovic, Santo Inácio Brianchaninov, São Diadochos de
Foticeia, Santo Atanásio do Sinai, São João do Chipre, São Bonifácio apóstolo
dos anglo-saxões, São Teófano o Recluso, São Macário de Moscou, São João
Maximovich, São Serafim de Platina etc. Está também presente em vários ofícios
da Igreja, como a oração de Santo Eustratio, lida no Ofício da Meia Noite, e no
Cânone de Súplica à Toda Santa e Pura Theotokos no momento da Partida da alma.
É muito importante lembrar que este
ensinamento não deve ser tomado de maneira completamente literal e
materializada, pois descreve uma dimensão da existência que só pode ser
entendida por meio de comparações, analogias e símbolos. As imagens não devem
se tornar fetiches. Por outro lado, como ensinou São Teófano o Recluso, estas
mesmas imagens se referem a uma realidade, não são meras alegorias morais. São
uma realidade espiritual que deve ser meditada e compreendida sem apego a
ideias sensuais e cruas. Outro ponto a ser notado, é que as ''toll houses'', ou
''telônios aéreos'', não devem ser confundidos com a doutrina católica-romana
do ''purgatório'', que é condenada na Igreja Ortodoxa e que será tratada de
maneira mais precisa em outra parte do livro. Não se deve também pensar que
após a morte a alma está sob poder total dos demônios, e sim compreender que
quem não se fez completamente livre das próprias paixões e pecados durante a
vida terrena, tampouco se libertará facilmente deles após a morte, pois, como
já dito, a alma tende a manter o mesmo estado em que se encontrava no momento
da separação do corpo, e, ainda que queira, não pode alterá-lo por si própria por
causa justamente da falta do elemento corporal que possibilitaria sua metanoia.
9) Houve
no fim do século passado algumas críticas aos ensinos sobre ''telônios aéreos''
realizadas por clérigos mal instruídos e que sustentavam doutrinas errôneas
sobre o pós-morte [como o 'sono da alma', tratado noutra parte da obra de
Larchet]. Mas elas são infundadas e já foram rebatidas não só por hierarcas mas
inclusive por santos. Reproduzo cá trecho do livro que trata rapidamente destas
críticas e do descrédito das dita cujas: ''Uma primeira acusação por parte
[destes] autores[...] é que este ensinamento se baseia em apócrifos que possuem
todos origem no Egito. Esta acusação não se sustenta: vimos que os testemunhos
hagiográficos e patrísticos possuem uma base muito ampla no tempo e no espaço.
Uma segunda acusação é de que este ensinamento possui origem na religião dos
antigos egípcios e em crenças gnósticas. Indubitavelmente há uma analogia, mas
é também verdade de muitas outras crenças cristãs (numerosos exemplos desta
área podem ser encontrados nas obras de Mircea Eliade) sem que se possa colocar
em questão seu caráter cristão: os dois conjuntos de crenças estão associados a
contextos espirituais e teológicos irreconciliáveis (veja as considerações
feitas sobre isto pelo Metropolita Hierotheos Vlachos, em ''Vida após a
Morte'', pp. 77-78)[...]''.
A alma que passa pelos telônios está diante dos
portões do Paraíso. Mas antes de seu juízo particular, ela tem de conhecer os
Infernos e os Céus, por quais passa entre o nono e o quadragésimo dia após a
morte clínica.
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Continua
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