Antes de continuar descrevendo o processo da
morte de acordo com a Igreja, segundo descrito na obra ''Life after Death
according to the Orthodox Tradition'', de Jean-Claude Larchet, faço cá um
parêntese para expor certas posições do autor sobre as ''Experiências de Quase
Morte'', ou seja, aqueles relatos de gente que chegou perto de bater as botas
mas conseguiu sobreviver e relatar o que vivenciou naqueles momentos em que estava
inconsciente ou com a morte clínica constatada pelos médicos. Há vários e
vários relatos deste tipo, alguns deles surpreendentes, como o de cegos que,
neste estado de morte clínica, foram capazes de contar depois tudo o que viram
ao seu redor e até em outros cômodos. Há livros inteiros que reúnem este tipo
de narrativa, classificando-as e retirando delas alguma forma de padrão. Um dos mais famosos é o ''Life after Life'', do Dr. Robert
Moody. Muitos destes padrões são corroborados pela tradição ortodoxa. Essas
experiências, porém, tem de ser lidas com cuidado por causa da possibilidade de
interveniência de ilusões demoníacas.
3) Após descrever as percepções sobrenaturais que o sujeito
vivenciadas pelo sujeito que se encontra diante da morte, a obra passa a
abordar o processo em si e as diferentes etapas por quais passa a alma em seu
caminho para a vida futura. Estas etapas são abordadas pela Ortodoxia a partir
de uma representação cronológica dividida principalmente em três fases: até o
terceiro dia após a morte clínica; do terceiro ao nono dia; do nono ao
quadragésimo dia. É muito importante notar que esta representação possui uma
natureza também simbólica. A temporalidade do mundo espiritual não é aquela
vivenciada na realidade corporal, então não há porque esperar que estes
períodos de tempo sejam exatamente aquilo que conhecemos no cotidiano. Há uma
associação temporal mas que não é certamente unívoca. Outra questão bastante
importante a ser ressaltada é a própria palavra ''processo''. Embora exista um
momento exato da morte clínica, a separação entre alma e corpo não é algo
instantâneo nem irreversível, mas se estende durante um determinado período de
tempo. É este lapso de tempo que será abordado agora, os primeiros três dias
após a morte clínica, em que a separação do corpo e alma ainda não é
incontornável nem total ou completa.
4) Há uma tradição que afirma que o indivíduo ainda pode retornar à
vida antes de completado este período de três dias após a morte clinica. Por
isso há o costume piedoso de só enterrar o ente querido após o terceiro dia.
Outra consequência desta tradição, segundo o autor, envolve a prática
contemporânea da doação dos órgãos. Como a alma ainda se encontra muito ligada
ao corpo nessa fase, seria desaconselhável a retirada de seus órgãos, pois isso
poderia traumatizá-la e afetá-la de alguma maneira. Este tópico é controverso
entre as várias jurisdições da Igreja, mas é comum um certo repúdio quanto a
doação de certos órgãos, como o coração e os pulmões. Este repúdio se
fundamenta no conhecimento sobre o papel do corpo e sua ligação com a alma
inclusive após a separação entre ambos. Diferente das doutrinas que minimizam o
papel e função do corpo no homem, encarando-o apenas como uma roupa que em nada
afeta a personalidade, a Igreja ensina que a pessoa humana é composta por dois
elementos complementares que existem um em função do outro em uma relação que
se inicia com a vinda à existência do indivíduo e que não se esgota em nenhum
momento, nem mesmo com a morte. Após a dita cuja, a alma retém potencialmente
em si a memória e forma do corpo, bem como as faculdades que por ele se
expressam. Da mesma maneira, há santos Padres, como Máximo o Confessor e
Gregório de Nissa, que ensinam que os elementos que formam o corpo também
guardam em si uma afinidade com a alma, de modo que, mesmo quando dissolvidos e
espalhados pela criação, são conhecidos por ela, e continuam ainda
'pertencendo' àquela Hipóstase humana particular. É desta maneira que todo
corpo humano é também uma relíquia, pois está ligado à personalidade que o
possuiu. O culto cristão às relíquias se baseia nesta verdade, pois os
elementos corporais não são venerados em si, mas é a pessoa à qual pertencem e
a qual continuam ligados que é venerada através deles. [No caso dos santos,
como são energizados por Deus, suas relíquias acabam também operando milagres.]
O cuidado com o ente falecido é expressão não apenas de uma honra ao corpo, mas
uma honra à pessoa humana, à qual este corpo está e sempre estará associada,
inclusive após a morte. Em alguns países ortodoxos há o costume piedoso, por
exemplo, de após cinco anos após o falecimento do indivíduo, exumar seus restos
mortais, lavá-los com vinho e levá-los à Igreja para um serviço em memória,
após o qual serão colocados em um ossuário na esperança da futura ressurreição.
É por isto também que a cremação é repudiada pela Igreja e vista como uma forma
ou intenção de aniquilação, desrespeito e desamor. Todo este cuidado com o
corpo da pessoa humana, bem como os ritos funerários e de memória, encontram
sua imagem na santas miróforas, que cuidaram do Senhor quando de Seu
sepultamento.
5) A morte clínica em si é, em geral e independente da maior ou menor
santidade da pessoa, muito angustiante e dolorosa para alma. A explicação para
tal é que a separação entre alma e corpo é anti-natural, como descrito no item
anterior. Isto posto, o evento pode ser facilitado ou dificultado pelas
virtudes ou vícios que o sujeito carrega. Uma pessoa que levou vida piedosa e
dedicada a Deus, retificando suas paixões e conquistando os dons do Espírito,
tende a se elevar para o alto de modo muito mais simples, desvencilhando-se da
carne sem maiores apegos. Há inclusive casos raros de santos que foram levados
imediatamente para o Paraíso logo após a morte, tamanha a iluminação e glória
possuíam. Mas, em geral, a pessoa possui um certo grau de virtude e vício que influenciará
na sua partida deste mundo. Quando o indivíduo é muito apaixonado e apegado a
essa realidade material e ao corpo há muitos obstáculos em sua partida, e
alguns santos, como Santa Macrina e São Gregório de Nissa, explicam desta
maneira a existência de fantasmas. Quando do falecimento, as faculdades
anímicas ligadas ao corpo continuam fazendo parte da alma, mas em estado
potencial pela falta dos meios necessários à sua expressão.
6) A partir da separação da alma e do corpo, a batalha pelo homem que
teve lugar em toda a sua existência, se intensifica ou ganha novos contornos.
Anjos e demônios se apresentam à hora da morte buscando levar a alma com eles.
As imagens proporcionadas pela Igreja apresentam estes seres espirituais como
dois exércitos colocados um de frente para o outro e prontos para a batalha
pela alma. A pessoa vai se inclinar para cada um deles de acordo com suas
tendências durante a vida e no momento da morte. Deve ser ressaltado que a alma
mantém no além o estado apresentado no momento de sua morte. Depois disto,
ainda que queira, ela não pode alterá-lo pela falta justamente do corpo e de
seu ambiente, necessários à expressão da metanoia e de seus frutos. Após a
morte, o estado da alma só pode ser alterado por uma intervenção outra, da
Igreja e de seus santos, por meio das orações e serviços litúrgicos. Voltando à
batalha pela alma, o momento da separação é como um julgamento, no qual os
demônios tentarão reconhecer na alma as paixões que lhe são correspondentes e
às quais ela mesma se escravizou durante sua vida terrena, a fim de arrastá-la
com eles para o Hades. Nas imagens da Igreja, as almas tem de pagar aos
demônios com os elementos de si próprias que são a afins às forças da
escuridão, e os indivíduos que partem cheios de vícios são despedaçados por
estes poderes das trevas. Outras imagens apresentam as almas que partem sendo
defendidas pelos anjos, principalmente pelo anjo da guarda e pelo anjo
psicopompo, citados na resenha anterior, e que reúnem todas as virtudes e bons
atos praticados pelo indivíduo a fim de apresentá-los como compensação e
livrá-los da garra das potestades do ar. O fato é que a alma enfrentará o
terrível obstáculo dos poderes tenebrosos após a morte, que buscarão impedir
sua subida até os céus e mergulhá-la e escravizá-la no inferno. Durante os três
primeiros dias, a alma permanece na terra, sob a influência ou dos anjos ou dos
demônios, em volta do seu corpo ou visitando os lugares que lhe sejam mais
afins. No terceiro dia, que é simbolicamente associado à ressurreição de Cristo
e à Sua saída do túmulo, se inicia sua ascensão até os céus para ser julgada
diante do Trono do Senhor. Este processo, sintetizado nas imagens das batalhas
entre anjos e demônios no momento da morte, é mais detalhado pelos santos nos ensinamentos
sobre os 'telônios aéreos', dimensões associadas a uma hierarquia de paixões e
nas quais, gradualmente, as almas são acossadas e atacadas pela fúria dos
demônios que se reúnem em torno dela como 'leões prontos para devorá-la'.
Este será o tema da próxima postagem.
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