sábado, 2 de novembro de 2024

Gênesis, as Rebeliões Angélicas e Enoque

"E Ele me chamou de O YHWH menor na presença de toda Sua Corte Celeste; pois assim está escrito [Ex 23:21]: ''Porque meu nome está nele''."

III Enoque 12:5







Esta semana, escrevi bastante sobre o livro de Gênesis em algumas redes sociais. Noutra oportunidade vou reunir as postagens e republicá-las de modo mais organizado neste blog. O propósito era divulgar entre a meia dúzia de três que me leem a posição que os Santos Padres tem sobre Genesis, indicando que: i) eles evitam distorcer o livro para adequá-lo à ciência de seu tempo; ii) eles encaram os relatos como 'literais', no sentido de 'físicos', 'corpóreos', 'históricos'.


Na minha opinião, estes ponto estão bem estabelecidos, sequer são difíceis de contra-argumentar. Evidente que eles desagradam muita gente, que gostaria de encontrar uma conciliação entre a Revelação e o espírito vigente de nossa época. Mas eu penso que nós cristãos temos de fazer como ensinou o Glorioso Apóstolo e, antes de qualquer coisa, transmitir aquilo que recebemos. A conciliação é uma coisa menor, e até mesmo dispensável.


Mas é possível ir além no aprofundamento do texto de Gênesis -- ainda que por própria conta e risco --, o que nos leva sem pestanejar à literatura enoquiana e apocalíptica que circulava nos séculos imediatamente anteriores ao Nascimento do Senhor. Estes textos traziam 'crenças' sobre a História Sagrada que foram obscurecidas no decorrer dos séculos, dificultando para muitos a compreensão do contexto de composição das Escrituras.


Um dos exemplos mais marcantes é o Primeiro Livro de Enoque, também chamado de Enoque etíope -- porque a versão mais completa que nos chegou está na língua Ge'ez e porque é considerado canônico na Igreja Ortodoxa etíope, que é pré-calcedoniana.




I Enoque era considerado por muitos Padres como obra de fato redigida pelo Profeta Enoque, o sétimo Patriarca depois de Adão, pai de Matusalém, e que foi 'arrebatado' por Deus segundo Gênesis:


"Enoque viveu sessenta e cinco anos e gerou Matusalém. Após o nascimento de Matusalém, Enoque andou com Deus durante trezentos anos e gerou filhos e filhas. A duração total da vida de Enoque foi de trezentos e sessenta e cinco anos. Enoque andou com Deus e desapareceu, porque Deus o levou." [Gênesis 5:21 a 24]


Uma questão a ser explorada, portanto, é o destino de Enoque. O que significa esse desaparecimento/arrebatamento? O Glorioso Apóstolo São Paulo escreve na Epístola aos Hebreus que Enoque não passou pela morte.

"Pela fé Enoque foi arrebatado, sem ter conhecido a morte: e não foi achado, porquanto Deus o arrebatou; mas a Escritura diz que, antes de ser arrebatado, ele tinha agradado a Deus" [Hebreus 11:5]


A retirada de Enoque da terra tem similaridades com a ascensão do Profeta Elias, que também é levado para o alto em uma carruagem de fogo. Os Santos Padres divergem sobre o paradeiro destes personagens, mas concordam que eles não foram para o Reino dos Céus, o Paraíso Celestial. Ou Deus os levou para o Éden ou para algum lugar inacessível para os mortais comuns.


Estas tradições eram bastante difundidas no judaísmo pós-exílico, e estavam presentes na literatura apocalíptica da qual os livros atribuídos a Enoque fazem parte. Não é à toa, inclusive, que a tradição patrística tenha visto Enoque e Elias nas duas testemunhas do Apocalipse de São João Teólogo. Eles retornarão à terra no fim dos tempos para denunciar o anticristo, ocasião em que serão martirizados. Há similaridades nessa abordagem e as crenças muçulmanas que se desenvolveriam em torno do retorno de Cristo para combater o Djalal, bem como no Imã oculto, o que dá ainda mais credibilidade à ideia de São João Damasceno de que o Islam seria uma ''heresia cristã".





Retornado a I Enoque, podemos ler na Espístola de São Judas Tadeu:

"A respeito deles profetizou Enoque, o sétimo dos patriarcas a contar de Adão, quando disse: "Eis que o Senhor veio com suas santas milícias exercer o julgamento sobre todos os homens e arguir os ímpios de todas as obras de impiedade que praticaram e de todas as palavras duras que proferiram contra ele os pecadores ímpios." [Judas 1:14 e 15]


Muitos cristãos titubeiam mas essa é, com toda a certeza, uma citação ipsis litteris de I Enoque 1:9:

"Veja! Ele vem com miríades de santos para executar o julgamento sobre todos, destruir os pecadores e pedir conta às pessoas sobre todos os seus trabalhos pecaminosos que cometeram e todas as coisas duras que os pecadores falaram contra ele."


Enfim, talvez não seja tão importante saber se São Judas Tadeus citava diretamente do livro ou de uma perícope da tradição oral que também foi incluída em I Enoque, embora a primeira alternativa seja imensamente mais plausível. E sim que a ausência de I Enoque do cânone tem de ser entendida sob o pano de fundo da influência de 4 Ezra/Esdras, também chamado de 2 Esdras e de Apocalipse de Esdras, e que não por acaso também faz parte do cânone da Igreja etíope. A obra relata como Esdras recebeu de Deus a missão de recompor as Escrituras após o Exílio da Babilônia. Elas não teriam sido salvas pela tradição oral, mas reveladas de novo ao Profeta em uma visão divina. Esdras ditou a escribas 94 livros, recebendo ordem de que os 24 primeiros se tornassem públicos no culto, e que os 70 últimos circulassem de maneira discreta, conhecidos apenas pelos mais preparados.

"O Altíssimo deu inteligência [também] aos cinco homens, e o que lhes era dito, passo a passo, escreviam-no com caracteres que não conheciam, ficando lá durante quarenta dias, escrevendo durante o dia, e comendo pão durante a noite, enquanto durante o dia falava, mas durante a noite não me calava. Foram escritos, nestes quarenta dias, noventa e quatro livros. Acontece que, quando se completaram os quarenta dias, o Altíssimo falou-me dizendo: “Os vinte e quatro livros que escreveste antes torna-os públicos, que os leia quer quem é digno quer quem é indigno; mas os setenta escritos por último conserva-os, para os entregar aos sábios do teu povo, porque neles está a fonte da inteligência, a fonte da sabedoria e o rio do conhecimento!” [4 Esdras]


Daí o ímpeto de cristãos [e também dos judeus] de adequarem o cânone do Antigo Testamento ao número de 24 livros públicos, adaptando-o ao número de letras do alfabeto hebraico ou grego [um signo de perfeição na Antiguidade]. O sentido de ''apócrifo'' se coadunava igualmente com as espiritualidades mistéricas: obras reservadas aos mais preparados, e não aquelas lidas publicamente no culto diário.


Independente do acerto ou não dessas considerações, mais de uma passagem neotestamentária se refere diretamente a ensinamentos presentes nestas obras enoquianas e apocalípticas, como se pode depreender não apenas de Sâo Judas, mas também de São Pedro e São Paulo. E a partir dessas crenças do Judaísmo do Segundo Templo podemos entender melhor os primeiros capítulos de Gênesis:

"Quando os homens come­ça­ram a multiplicar-se sobre a terra, e lhes nas­ceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas, e escolheram esposas entre elas. O Se­nhor então disse: “Meu espírito não perma­necerá para sempre no homem, porque todo ele é carne, e a duração de sua vida será só de cento e vinte anos”. Naquele tempo viviam gigantes na terra, como também daí por diante, quando os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens e elas geravam filhos. Estes são os heróis, tão afamados dos tempos antigos. O Senhor viu que a maldade dos homens era grande na terra, e que todos os pensamentos de seu coração estavam continuamente voltados para o mal. O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem na terra, e teve o coração ferido de íntima dor. E disse: “Exterminarei da superfície da terra o homem que criei, e com ele os animais, os répteis e as aves do céu, porque eu me arrependo de tê-los criado”. Noé, entretanto, encontrou graça aos olhos do Senhor." [Gênesis 6:1 a 8]



A narrativa é sucinta mas repercute de modo muito poderoso as tradições enoquianas. Mesmo depois que muitos Padres concluíram que I Enoque era um pseudopígrafo [ou seja, um livro falsamente atribuído a Enoque], e mesmo depois que a maior parte deles passou a ver nos ''filhos de Deus'' uma linhagem de descendentes de Seth e não mais anjos decaídos, Santo Ambrósio de Milão ainda escrevia:

"Os autores das Escrituras Divinas não tinham intenção que estes gigantes fossem considerados ao modo dos poetas, como filhos da terra, mas ele se refere aos que nasceram [do intercurso] de anjos e homens, que os autores nomeiam ''gigantes'' para apontar a grandeza de seus corpos." [Sobre Noé, 4:8]



A história conta um avanço desmedido da corrupção e da degeneração humana, que foi contido pelo Dilúvio. A narrativa é explicada em I Enoque, mais especificamente no primeiro dos cinco livros menores que o formam, o "Livro dos Vigilantes":


"E naqueles dias, os filhos dos homens se multiplicaram e nasceram filhas bonitas e agradáveis. E os anjos, os filhos do paraíso, as viram e desejaram e disseram uns aos outros: "Vamos escolher esposas dentre as filhos dos homens e ter filhos com elas". E Samyaza, que era o líder deles, disse: "Receio que vocês não concordarão com este ato e eu sozinho tenha que sofre o castigo por um grande pecado". E eles todos disseram. "Vamos fazer um juramento e um pacto nos ligando por imprecações mútuas para não abandonarmos estes plano, mas para concluí-lo". E todos eles juraram juntos e se ligaram por imprecações mútuas. E eram ao todo duzentos; que desceram nos dias de Jarede no pico do monte Hérmon e o chamaram Monte Hérmon porque foi onde todos juraram e se ligaram por imprecações mútuas. [...] E todos os anjos escolheram esposas e cada um escolheu uma, e começaram a ter relações sexuais com elas e a conviver com elas e ensinaram a elas encantamentos e feitiços, o corte de raízes e o conhecimento das plantas. E elas engravidaram e conceberam gigantes cuja altura era de 3 mil côvados [Nota: cerca de 150 metros de altura]. Eles consumiam todas as produções dos homens. E quando os homens não conseguiam mais sustentá-los, os gigantes se voltaram contra eles e devoraram as pessoas. E começaram a pecar contra as aves, os animais, os répteis e peixes, e a devorar a carne uns dos outros, e a beber o sangue. Então a terra apresentou uma acusação contra os iníquos. E Azazel ensinou os homens a construírem espadas e facas e escudos e couraças e ensinou a eles sobre os metais da terra e a arte de trabalhá-los e os braceletes e os ornamentos e o uso do antimônio, e o embelezamento das pálpebras, todos os tipos de pedras caras e todas as tinturas colorantes. E surgiu muita impiedade e eles cometeram fornicação e foram desviados de todas as formas". [I Enoque 6:1 a 8:2]

O relato ajuda a entender o véu das mulheres nas Igrejas [por causa dos anjos], e também o paradigma mais básico da bruxaria. O mais fundamental, porém, é o tema da transgressão de seres 'celestes', que ensinam aos homens a guerra, as artes, as ciências ocultas. E que iniciam as mulheres em segredos vetados, e tem relações sexuais com elas e geram toda uma linhagem de seres, os Gigantes, que governaram os homens como se fossem deuses, e o parasitaram e os exploraram, e em determinado ponto passaram a assassiná-los e canibalizá-los.


O livro prossegue relatando como Deus sentenciou estes rebeldes e enviou Arcanjos para derrotá-los e aprisioná-los. E como enviou Enoque para admoestá-los e avisá-los da sentença. O Dilúvio visava destruir a humanidade corrompida e os Gigantes. Outros pontos podem ser lido na seguinte passagem:

"E agora, os gigantes, que foram geados por espíritos e pela carne, serão chamados espíritos maus sobre a terra e a terra será a habitação deles. Espíritos maus vieram do corpo deles; porque nasceram de mulheres e dos que eram Vigilantes santos em sua origem primordial e inicial; eles serão espíritos maus na terra e assim serão chamados. Os espíritos dos gigantes, os Nefilim, eles oprimem, causam prejuízo, atacam, lutam, destroem a terra e trazem tristeza, não se contentam com alimentos, nem com a sede. E esses espíritos se levantarão contra os filhos dos homens e contra as mulheres, porque vieram deles. Nos dias da matança, destruição e morte dos gigantes, onde quer que saírem os espíritos de seus corpos, eles continuarão a destruir sem julgamento até o dia da consumação, o grande julgamento, quando será consumada esta era e será o fim dos Vigilantes e dos ímpios, a consumação total. E para os Vigilantes que o enviaram para que interceda por eles, que viviam no paraíso, diga a eles: "Vocês viviam no paraíso, mas nem todos os mistérios lhe foram revelados e vocês conheciam os menos importantes e, na dureza de seus corações, vocês os revelaram a mulheres e através desses mistérios, as mulheres e os homens multiplicaram o mal na terra". Portanto, diga a eles: "Não há paz para vocês". [I Enoque 15:8 a 16:4]

Antes de continuar, é muito interessante comparar o trecho acima com a seguinte passagem de exorcismo realizada por Cristo. Os demônios se dirigem a Ele nos seguintes termos:

"E eis que gritavam, dizendo: "O que há de comum para nós e para ti, filho de Deus? Vieste aqui antes do tempo para nos torturares?" [Mt. 8:29]


Enoque faz então uma jornada pelo cosmos, e em certo momento vislumbra o local da prisão dos Vigilantes:

"E além desses abismo, vi um lugar que não tinha firmamento do céu acima dele e não havia terra afundada abaixo: não havia água nem pássaros, mas era um lugar vazio e horrivel. Vi ali sete estrelas como grandes montanhas envolvidas em fogo quando perguntei sobre elas, o anjo me disse: este lugar é o fim do céu e da terra, ele serve como prisão para as estrelas e legiões que vivem no céu. E as estrelas envoltas em fogo são as que transgrediram o mandamento do Senhor no início do nascimento delas, porque não nasceram no horário marcado. E ele se enfureceu com elas e as prendeu até o tempo que a culpa seja consumada; por dez mil anos." E Uriel me disse: "Aqui ficarão os anjos que tiveram relações sexuais com mulheres, cujos espíritos assumirão muitas formas diferentes pervertendo a humanidade e desviando as pessoas a ponto de fazerem sacrifício para demônios como se eles fossem deuses, até o dia do grande julgamento quando serão julgados. E as mulheres dos anjos chorarão por eles." [I Enoque 18:12 a 19:2]

Em algumas cópias, as mulheres que choram são chamadas de sereias ou corujas do deserto. O fundamental, no entanto, é o seguinte:

i. Embora os Gigantes tenham sido mortos pelo Dilúvio, seus espíritos permaneceram atrelados à terra. E estes espíritos vão atacar os homens até o dia do juízo final. Os Nefilim, portanto, são os espíritos maus dos Gigantes mortos, a progênie dos filhos dos paraíso e das bruxas, que atormentam os homens até o fim dos tempos. Há uma demonologia implícita no livro.

ii. Os Vigilantes estão presos em um lugar terrível. Mas não estão sozinhos. Eles tem a companhia de Anjos ['estrelas' são associadas a anjos na literatura sacra] culpados de outro tipo de transgressão que não é especificada pelo Arcanjo Uriel mesmo sob perguntas insistentes de Enoque.




Quem são estes anjos que "transgrediram o mandamento do Senhor no início do nascimento delas"? A resposta pode estar no Segundo Livro de Enoque, ou seja, em outra obra atribuída ao mesmo autor, e que é conhecida como "Enoque eslavônico", por causa da língua em que encontramos sua cópia mais antiga. Ela traz o relato de outra rebelião, anterior à descida dos Vigilantes que arderam em luxúria pelas filhas dos homens.

Nesta obra, Enoque é guiado por anjos psicopompos através de dez esferas celestes [dez céus]. No segundo céu, vê prisioneiros em tormentos, que se afastaram de Deus e seguiram seus próprios desejos, condenados porque ouviram os conselhos do "Príncipe deles, que também está aprisionado no quinto céu". Outro lugar de tortura para fornicadores e feiticeiros e outros perversos se encontra no lado norte do terceiro céu. O mais impressionante, porém, é o que o Patriarca assiste no quinto céu: legiões de anjos silentes chamados Grigori [Vigilantes], ligados aos do segundo céu mas ainda assim diferentes:

"Estes são os Grigori, que seguiram seu príncipe Satanael na rejeição ao Senhor da Luz, e que foram acompanhados por aqueles que são mantidos nas trevas do segundo céu, três dos quais desceram do Trono de Deus até a terra, para o lugar chamado [monte] Hermon, e quebraram seus votos na colina ao verem as filhas dos homens, que tomaram para si como esposas. E contaminaram a terra com suas ações, espalhando a ilicitude e se misturando, e do qual nasceram gigantes e homens poderosos e grandes inimizades. E portanto Deus os julga de modo terrível, e eles choram por seus irmãos e serão punidos pelo Senhor no grande dia. [...]" [II Enoque 18:3 a 5]


Satanael seria, portanto, líder daqueles que se rebelaram em Hermon e desposaram mulheres, que foram iniciadas na bruxaria e pariram os Gigantes. Mas estes Vigilantes não estão juntos com os punidos no segundo céu. O relato prossegue com a ascensão de Enoque até o décimo céu, quando fica diante do próprio Deus, de quem recebe conhecimentos sobre a cosmogonia:

"E assim rapidamente fiz o firmamento. E chamei a este dia de primeiro [Domingo]. E fiz todas as tropas celestes à imagem e essência do fogo. E meu olho se fixou na rocha dura e firme, e do brilho deles [dos olhos] o relâmpago recebeu sua natureza maravilhosa, que é tanto fogo na água quanto água em fogo, sem que um apague ou seque o outro. E assim o Raio é mais brilhante que o sol, mais suave que a água, e mais duro que a Rocha. E da rocha tirei um imenso fogo, do qual criei as dez ordens de tropas de anjos incorpóreos. E suas armas são de fogo e suas vestimentas de chama ardente; e ordenei que cada um deles permanecesse em sua ordem. E um dos anjos, se rebelando junto da ordem que estava sob seu comando, concebeu um pensamento impossível, o de colocar seu trono ainda mais elevado que as nuvens que cobrem a terra, de modo que ele se tornasse igual a mim em poder. E eu o arremessei do alto junto com seus anjos, e ele está voando no ar continuamente acima do abismo sem fundo." [II Enoque 29:1 a 4]





Esta rebelião é descrita de forma diferente daquela do Monte Hermón. Ela não consistem em anjos ardendo em luxúria pelas mulheres, mas em uma versão que depois se tornaria clássica e famosa no cristianismo, a de Lúcifer desafiando Deus, sendo derrotado e arremessado à terra. As imagens do relato apresentam o anjo feito à semelhança de um Raio/Relâmpago, a partir de um Fogo retirado da Rocha. São símbolos que ecoam nas próprias Escrituras:

"Disse-lhes: 'Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago'." [Lucas 10:18]

"Houve uma batalha no céu. Miguel e seus anjos tiveram de combater o Dragão. O Dragão e seus anjos travaram combate, mas não prevaleceram. E já não houve lugar no céu para eles. Foi então precipitado o grande Dragão, a primitiva Serpente, chamado Demônio e Satanás, o sedutor do mundo inteiro. Foi precipitado na terra, e com ele os seus anjos." [Apocalipse 12:7 a 9]


É possível que o autor do livro estivesse conciliando tradições diversas sobre a queda dos anjos, ou é possível também que estas tradições já estivessem conciliadas em seu tempo. Os historiadores consideram ambos os livros como do século II antes de Cristo. Esta datação é complicada, porque se baseia fundamentalmente na premissa de que as profecias presentes nessas obras só poderiam ser escritas depois que os próprios eventos tivessem ocorrido [afinal, não existiria predição do futuro]. É bem possível que as tradições por trás de ambos os livro tenham adquirido forma escrita um ou dois séculos antes. Mas isto é pouco relevante para nossa discussão. O fato é que as obras são contemporâneas, e que faziam parte das crenças e mitologias judaicas pós-exílicas, das quais saíram a redação final das Sagradas Escrituras, a literatura apocalíptica, as tradições sobre o Trono de Deus e o Filho do Homem, e toda a ambiência intelectual e espiritual em que surgiu a Igreja e com a qual os Santos Apóstolos e os Padres do primeiro século dialogavam.


Para dar um panorama completo dessas crenças faltou falar de uma terceira versão para a Queda dos Anjos, igualmente mais complementar do que excludente daquelas descritas acima. Ela está presente em uma série de textos [Vida de Adão e Eva, Apocalipse de Moisés etc.] cujas cópias e fragmentos mais antigos pertencem ao século III da era cristã, mas que remontam também a tradições contemporâneas à enoquiana. Nestas obras, Satã explica a Adão a razão de seu ódio pelos homens. Uma vez criado o homem, Deus e Miguel pediram aos anjos que se ajoelhassem e venerassem Sua imagem. Lúcifer e seus anjos se recusaram, alegando terem sido criados primeiro: era Adão quem devia adorá-los:


"Se Deus se ira contra mim, colocarei meu assento mais alto que as estrelas do céu e serei como o Altíssimo" [Vida de Adão e Eva 15:3]



O relato não é inteiramente consistente com os anteriores. A Queda de Lúcifer em II Enoque é anterior à Criação de Adão. Elas se coadunam, no entanto, com o próprio cerne da literatura enoquiana, que vai desembocar na deificação da humanidade na figura do Filho do Homem, o ''pequeno Iahweh'', o Metatron, já indicado em II Enoque, quando Deus decide revelar os segredos da cosmogonia ao Patriarca:

"Ouça, Enoque, e leve em conta minhas palavras, pois não contei meu segredo nem para os meus anjos, não lhes contei sobre o surgimento deles, nem sobre meu reino ilimitado, e eles tampouco entenderam meu ato criativo, que vou te contar hoje." [II Enoque 24:3].


O retrato completo é melhor conhecido em III Enoque, ou o Enoque hebraico, cuja doutrina é tão próxima à da Igreja que foi durante muito tempo considerado obra cristã, mas que é provavelmente composto por algum rabino ligado ao misticismo do trono [Merkabah] e certamente conhecedor da tradição enoquiana e dos livros anteriores atribuídos ao Patriarca.


A versão da queda de Lúcifer por sua recusa a se prostar diante de Adão é desenvolvida no Islamismo, adquirindo uma outra feição de acordo com o ramo desta religião [sufismo, ismailismo etc.]. Mas para os cristãos ela obviamente sugere o caráter cristocêntrico da Criação e da futura Encarnação do Verbo. O que acrescenta um sentido ao episódio da tentação de Cristo no deserto:

"O demônio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: "Eu te darei tudo isto se, prostrando-te diante de mim, me adorares". Respondeu-lhe Jesus: "Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor, e só a ele servirás (Dt. 6:13)". Em seguida, o demônio o deixou, e os anjos aproximaram dele para servi-lo." [Mt 4:8 a 11]


O que um cristão poderia retirar de bom de todos estes livros? Não sei e não pretendo dar uma solução definitiva, já que a Santa Tradição é aquele ensinada pelos Santos Padres, pelas Escrituras e pela Igreja, e estas abordagens servem apenas de ''moldura'' para estes temas. Mas esta ''moldura'' está longe de ser desimportante. Eu opinaria que é até mais do que apenas uma moldura, que dá tom ao próprio quadro, que fornece as cores da História Sagrada.


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