Talvez se dissesse que é ''através da essência'' que se diz que Deus possui todos esses poderes Nele mesmo de uma maneira única e unificada. Mas, em primeiro lugar, seria necessário chamar esta realidade "Deus'', pois este é o termo para tanto que recebemos da Igreja. Quando Deus conversou com Moisés, Ele não disse, "Eu sou a essência", mas "Eu Sou Aquele que É". Assim, não é Aquele que É que deriva da essência, mas a essência que deriva Dele, pois é Ele que contém todo o ser Nele mesmo. [....] A essência de Deus está além do não-ser em razão de sua transcendência, já que é também ''mais-que-Deus''.
São Gregório Palamas, Tríades
Deus, na Santa Tradição, ou seja, no cristianismo ortodoxo, não é Ato Puro. Uma maneira possível de explicar isso é através dos escritos de David Bradshaw.
Esse conceito aristotélico foi desenvolvido no âmbito da explicação sobre o Primeiro Motor, aquele que moveria ou estaria no cume da séria de causalidade, sem no entanto ser movido ou causado. Mas ele não pode ser separado daquilo que o próprio estagirita entendia por energeia, uma definição que foi esquecida ou subestimada na tradição agostiniana que levou à escolástica e dali às reformas, ainda que por diferentes caminhos.
Energeia seria não só uma capacidade [dynamis], mas uma capacidade ou operação em atividade. Seria não apenas possuir a faculdade ou potencial de ver, mas o ato de estar vendo. E é também atual em um sentido ainda mais específico. Existem atividades voltadas para fins outros que elas próprias [Aristóteles dá o exemplo da atividade de construir uma casa], mas a energeia é atividade cujo telos consiste nela mesma. Assim, o fim da atividade de ver é o próprio ato de ver, e nenhuma outra coisa. O fim da atividade de pensar é o próprio pensamento. Energeia é atividade que é atual ou atualizada.
Não sendo movido por coisa alguma, ou seja, não possuindo nenhuma capacidade não realizada, o Primeiro Motor é definido no livro 12 da Metafísica como aquele cuja 'ousia é idêntica à sua energeia'. Ele é atividade subsistente de pensar a si mesmo, incluindo nesse pensamento todo conteúdo inteligível possível. Ou seja, ele ao mesmo tempo é e contempla todo o inteligível de maneira plena e total. Atividade e atualização. Ato Puro.
[Convém lembrar que o Ato Puro move um universo/devir que, em Aristóteles, não é criado, mas 'perpétuo' ou 'perene'. O mundo não seria um ato volitivo de criação, como no cristianismo, o que torna a manifestação erguida, de certa maneira, sobre o nada, e contingente ao extremo. Essa diferença, que é subestimada em algumas metafísicas, é muito importante, e não só no âmbito ''religioso'', como queria Guénon].
Foi essa tradição sobre a Divindade que chegou à Santo Agostinho, que a ela misturou certo platonismo na figura dum mundo arquetípico das ideias, e na gnoseologia da iluminação; e foi perpetuada entre os ''latinos'', ainda que o conceito de energeia/dynamis nessa abordagem tenha sido mitigado até o quase esquecimento. Na escolástica, e particularmente no tomismo, a compreensão de Deus como Ato Puro foi entronizada.
Essa abordagem é incompleta sem que se trate do ensinamento esotérico da Academia Platônica, mais tarde recuperado e explicitado na metafísica plotiniana. O Bem da ''República'' é descrito ao mesmo tempo como fonte de todas as Ideias/Formas/Inteligíveis e como ''além do ser''; e é assimilado ao Uno do diálogo ''Parmênides'', que não tem qualquer forma e é inteiramente inominável. Em Plotino, a Hipóstase do Uno é o princípio último [ou primeiro], a fonte da Hipóstase do Intelecto/Ser [o Ato Puro aristotélico] da qual emanam todos todos os demais seres, que dela participam em sua natureza noética, em uma emanação que é um 'transbordamento' necessário. E que torna a mística neoplatônica exercida sob o signo de um 'despertar' parecida com o do Advaita Vedanta.
[Plotino, no entanto, não abandona a visão de que mesmo o Uno, fonte do Ato Puro, ou ousia, é também energeia, embora interna, enquanto o Intelecto que emana dele é o ato ou imagem externa da ousia -- uma teoria dos dois atos que torna a 'atividade interna' de todas as coisas a contemplação de seu superior na 'cadeia do ser'.]
É com esses ensinamentos que os Santos Padres vão trabalhar, corrigindo suas incompatibilidades com a Ortodoxia. Muitas das heresias surgidas ao longo dos séculos vem da falta de entendimento das correções ou adaptações que esses conceitos neoplatônicos sofrem na exposição dos Santos. Todo o subordinacionismo, a começar do origenismo, mas se estendendo pelo arianismo etc., mas também os problemas gerados pela Filioque, são modos de olhar o cristianismo por meio de Plotino e cia., em vez de ler Plotino e cia. por meio da Igreja.
Em primeiro lugar, os Santos Padres mantiveram, e até acentuaram apofaticamente, a distinção entre a fonte inominável de todo o Ser, que chamaram de Ousia divina, e a realidade que pode ser participada noeticamente, que chamaram de Energeia. Assim, Deus é incogniscível em sua natureza/essência/substância, que é absolutamente transcendente. No entanto, é participável em suas energeia.
Essas energeia não dependem das criaturas, nem são função de uma relação com elas. Mas são a irradiação 'natural' da ousia divina, os raios do sol divino, que está presente em cada um deles por inteiro, mas que não se reduz a nenhum deles. Elas existem eternamente. Se a criação nunca tivesse existido, elas seriam. E a criação que ocorreu jamais poderia conter a completude de sua 'manifestação'. A escolha desses termos rompe o emanacionismo plotiniano em mais de um sentido, o que é ressaltado pela segunda correção mais geral.
A distinção entre Ousia [''Uno'' plotiniano] e Energeia [que Plotino entendia como o ''Intelecto/Primeiro Motor''] é separada da emanação de Hipóstases do neoplatonismo. Não se trata de sucessão hipostática, mas de ''transbordamento'' e ''irradiação'' natural.
As três Hipóstases divinas possuem tanto a Ousia quanto as Energias em comum. A Ousia, que é 'una' e singular -- só há uma ousia divina, por assim dizer -- é compartilhada pelas Três Hipóstases. Cada uma delas a possui por inteiro, como se fossem três sóis concêntricos. E as energias -- que são 'múltiplas', 'inumeráveis', porque nenhum nome ou operação pode conter a totalidade da irradiação divina -- também são comuns a todas as Três Hipóstases. As energias do Pai são também as do Filho e as do Espírito Santo. Mesmo quando falamos da atividade de uma das Hipóstases, essa atividade é comum também ao Pai e ao Espírito. A diferença é o MODO HIPOSTÁTICO com que a atividade é exercida. O que nos leva para o ponto final.
Não estando a 'distinção' entre as Hipóstases nem na natureza una nem nas energias inumeráveis, a unidade na Trindade se dá em uma delas, na Hipóstase do Pai. O Pai é origem das demais Hipóstases -- o Filho se distingue por ser gerado pelo Pai, o Espírito Santo por proceder do Pai --, da natureza una e das energias inumeráveis -- que são partilhadas pelo Pai com o Filho e o Espírito Santo na Pericorese. E também é capitulação de todas elas [das hipóstases, e da natureza e energias -- que são recebidas pelo Pai na mesma Pericorese]. É a chamada Monarquia do Pai, que não rompe a igualdade essencial e energética da Trindade.
A criação nada tem de necessária, mas é quase que um nada. De fato, ela é retirada do nada por Vontade Divina. Ela poderia não ocorrer. Ocorrendo, poderia ser diferente na medida em que a Vontade divina distribuísse de modo diferente os dons espirituais. A relação com a Criação é terreno da Economia Divina. Esse ensinamento, que decorre da revelação cristã, também lea a diferenças na abordagem entre o tomismo e a Ortodoxia.
Na Ortodoxia, as energias incriadas e divinas 'descem' à criação, e a preenchem. Por trás e como fundamento desse quase nada há Deus, operando na sustentação de tudo o que existe. Nunca é demais ressaltar, é a própria energia incriada que sustenta tudo o que existe, e não, como no tomismo, atos ou efeitos criados por Deus. Não há essa dicotomia na relação. Deus energiza a criação com seu ser incriado e inclusive a deifica. A deificação é uma transformação ontológica no ser humano. A imagem é a de um ferro que recebe o fogo até se tornar incandescente e ele mesmo fogo, sem no entanto deixar de ser ferro.
Vladimir Lossky explica isso de maneira clara, ao dizer que a Hipóstase de Cristo uniu a natureza divina com a humana, deificando esta última. Ao assumir a Natureza Humana não deixou de ser Deus, pois sua Hipóstase é Divina. Os homens são chamados a unir a natureza humana à divina por meio da deificação proporcionada pelas energia incriadas. Mas ao tornarem-se deuses pela graça não se tornam Deus, pois suas hipóstases são criadas.
Há uma antinomia aí, mas também uma transformação ontológica, já que as operações/energeia humanas são deificadas.
Na tradição tomista não é assim. Nela, o homem só acessa efeitos criados.
[Ainda que seja difícil explicar como o Ato Puro possa agir de modo particular, ou como poderia agir diferente do que agiu, ou como poderia responder aos homens, já que o conceito implica que tudo que Ele é ou faz se dá de maneira realizada e completa, plena, imediata e de uma só vez. É uma questão que traz implícitos problemas muito graves, a começar pelo ato de criação ou à operação no mundo, questão que Aristóteles parece resolver melhor que Tomás, e que também tem consequências nos debates das Reformas Religiosas. Mas não entro nesse ponto, que tenta ser elucidado por tomistas de diversas maneiras, bastante insuficientes].
A graça transmitida ao coração humano seria criada. Junto dela se transmite também o Espírito Santo, de maneira mistérica, mas o homem não conhece a habitação dele a não ser em momentos específicos de êxtase místico, como explica Lossky. De todo modo, mesmo a luz da glória, por meio da qual se poderá contemplar Deus no mundo futuro, seria criada também.
Enfim, de tudo isso se conclui que, para a Ortodoxia, Deus não é o Ato Puro do tomismo.
É quase uma unanimidade entre os ortodoxos que os católicos romanos, em especial os tomistas, entendem que a graça é "criada" para que se preserve a simplicidade divina. Mas a coisa não é bem assim. Para os tomistas, o ser dos entes é "participado", não criado. É o "actus essendi". Esta participação dos seres no Ser é a grande descoberta metafísica de Tomás de Aquino e que evita os exageros de Aristóteles e Platão. E essa participação não implica em "criação" como que em oposição ao "Incriado", mas é ato (ou seja, não é "coisa" ou "ente"), que não é essencial aos entes. Que tal doutrina guarda semelhança com a distinção ortodoxa entre essência e energias divinas me parece evidente.
ResponderExcluirTomás de Aquino nunca dá o passo de afirmar que essa participação é uma atividade/cooperação/sinergia, pois dada a doutrina da simplicidade divina absoluta e essencial, ele teria de concluir que os seres participam na própria essência divina. A participação em Tomás de Aquino é bem mais restrita, é a de mera similitude, o que dá a dimensão do golfo que separa a concepção católica-romana da cristã-ortodoxa.
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