I. Introdução
Esta
é a primeira de uma série de postagens que pretende desenhar uma História da
Dissidência Tradicionalista no Brasil. A narrativa visa explicar as principais
linhas de confluência que levaram aos atuais movimentos e organizações
políticas com lideranças, doutrinas e discursos que dialogam explicitamente com
a escola chamada de Tradicionalista ou Perenialista.
Talvez
seja pretensioso chamar este conjunto de textos de “História”. São produzidos
de maneira informal, sem grandes revisões, propondo um rascunho do que pode se
tonar, em futuro próximo, e com mais tempo, uma obra mais rigorosa e detalhada.
Mas tampouco é exercício de simples memória. Ainda que envolvido ativamente na
formação e no crescimento da Dissidência Tradicionalista, procurei testemunhos
orais e escritos de outros atores importantes neste processo, e vou apresentar
fontes primárias que nunca vieram a público.
A
necessidade de apresentar a construção da Dissidência Tradicionalista se
fortaleceu por muitas razões. O movimento saiu das sombras e ganhou destaque no
debate público, tanto por um singular desenvolvimento recente no âmbito da
política internacional quanto por sua influência cada vez maior no Brasil. A
visibilidade desta corrente em um terreno tão conflituoso quanto a política suscitou
especulações, tentativas de classificá-lo segundo as terminologias correntes, e
uma busca desenfreada por traçar sua trajetória.
Nem sempre a agitação em torno do tema contribui para esclarecê-lo. Quando confrontados com a existência da Dissidência Tradicionalista, a tendência mais comum entre seus adversários é denunciá-la em tons que raramente fazem jus à verdade, ou a simplificá-la de um modo que a torna irreconhecível para aqueles que a integram. Um exemplo desta apologética negativa é a tentativa do site El Coyote de contar a história dos Congressos Evolianos e da organização duginiana Nova Resistência. Os responsáveis pelo site construíram uma imagem enviesada do grupo, com textos parciais e focados apenas nos aspectos que se adequavam melhor ao objetivo de “expor uma infiltração fascista na esquerda”, além de repletas de erros básicos e lacunas imperdoáveis. Também surgiu recentemente um mercado para pretensos “pesquisadores da Nova Direita”, que se apresentam como especialistas de uma área sobre a qual nem sempre tem informações confiáveis e conhecimento suficiente. É comum que se imite, à exaustão, cacoetes e equívocos vindos de fora do país, como os presentes em “Guerra pela Eternidade”, livro de Teitelbaum que se tornou moda e referência para muitos supostos analistas, ainda que contenha erros grosseiros na exposição do Tradicionalismo e pouco conheça desta corrente no Brasil para além das ideias de Olavo de Carvalho.
Por
outro lado, há dissidentes que criam versões das origens e evolução de seus
grupos com o objetivo de agigantar o próprio papel, investir em uma mitologia
que atraia militantes, e disputar a hegemonia neste campo político. No mês
passado, uma liderança da Nova Resistência declarou no Twitter que todos os
dissidentes eram “seus filhos”, e um dos seguidores da organização afirmou, na
mesma rede social, que seu líder “construiu a dissidência sozinho”. Trata-se de
óbvia propaganda a fim de projetar uma aura de relevância que, como veremos ao
longo destas postagens, está distante de corresponder à realidade.
E
no entanto, o objetivo destes textos não é o de diminuir ou disputar a
importância desta ou daquela figura que contribuiu para a emergência de campo
político, e sim contribuir para o conhecimento do cenário algo caótico e
diversificado por meio do qual ele foi consolidado. Não há uma linhagem única em
suas origens, e sim ambientes compartilhados por grupos de pessoas com perspectivas
intelectuais e políticas que misturavam, de forma igualmente importante,
divergências e consensos internos. Se qualquer outra unidade pode ser
vislumbrada é o objetivo de construir um pensamento dissidente a partir do
diálogo crítico com um ou mais autores da escola Tradicionalista, que tem, eles
próprios, discordâncias enormes uns com os outros.
Diferente
da imagem compartilhada por alguns grupos de esquerda, a Dissidência Tradicionalista
não nasce da união de gangues e conciliábulos fascistas até então ocultos em
fóruns obscuros. Não se pretende negar a presença destes últimos, pelo
contrário, vou tratar do tema de maneira direta, fornecendo informações que até
então poucos conheciam; mas há de se colocar esta presença em seu devido lugar
e averiguar com honestidade qual seu peso real. Muitos se surpreenderão ao
saber que o movimento também foi modelado decisivamente por liberais,
anarquistas, conservadores, socialistas [incluindo marxistas], trabalhistas, e
uma imensa gama de pessoas que chegaram a ele a partir de alguma religião ou
corrente esotérica, sem qualquer militância anterior ou qualquer vínculo com
grupos fascistas.
A
Dissidência Tradicionalista sempre foi conflituosa e caracterizada por
múltiplas orientações ideológicas. Uma das mais comuns, por exemplo, é a do
“lobo solitário”, que decide manter sua independência de todos as organizações
do campo, embora continuem exercendo influência em redes e grupos de discussão
e sirvam de referência para a difusão de ideias. Como escolhi fazer dos atuais
grupos organizados o fio de Ariadne capaz de reconstituir historicamente o
movimento, vou deixar este tipo importante de personagem nas margens da
narrativa. É lacuna a ser recuperada em outros trabalhos.
Toda
História é parcial. O autor destas linhas teve participação contínua em uma ou
mais linhas de construção deste campo político, mas nem de longe pode ser
considerado autoridade final de todas as vertentes que confluíram para ele. É
uma das razões porque entrei em contato com mais de uma dezena de figuras
capitais neste processo. É hora dos mais jovens tomarem conhecimento de
personagens centrais como Dídimo Matos, Alfredo de Souza, Uriel Araujo, Rafael
Daher, Maurício Oltramari, Valdemar Abrantes, Ricardo
Almeida, Alex Sugamosto, Jean Augusto, Flávia Virgínia e outros. Nem todos
foram ouvidos, o que é outra lacuna a ser superada mais tarde. Mas os textos
preservaram saudável multiplicidade de visões e fontes sobre a Dissidência, seus
momentos importantes e principais agentes.
Para
evitar uma abordagem muito subjetiva, preferi acrescentar ao fim de cada
postagem uma seção chamada “meu olhar”, expondo o que eu fazia e como enxergava
os caminhos da dissidência em cada etapa específica, ressaltando desde já que
tampouco tenho pretensão de me colocar na posição de um “observador neutro” ou
juiz último das demais versões, apenas contribuir com um relato pessoal sobre
as tramas de que eu participava e/ou tomava conhecimento. Nestas seções, vou
apresentar também fontes importantes para substanciar o que tenho a dizer.
Antes
de continuar, devo definir o que entendo por Dissidência Tradicionalista. O
dissidente político pode ser definido como aquele que tem uma cosmovisão não só
dissonante como flagrante e conscientemente incompatível com o establishment intelectual e político
vigente. Ele não se sente representado nas instituições e no regime, e é
portador de críticas aos fundamentos da organização social, bem como às
ideologias que compõem o discurso hegemônico e mainstream. O significado e o conteúdo da dissidência muda segundo
a sociedade e a época. Eram dissidentes os guerrilheiros do Araguaia, que a
partir de uma leitura marxista dos problemas de seu tempo decidiram pela luta
armada. Eram também dissidentes os grupos que buscavam a independência grega no
princípio do século XIX e se mobilizavam através de organizações
para-maçônicas. Igualmente eram dissidentes os liberais que se reuniram na
Praça da Paz Celestial, na China, em fins dos anos 1980. Os dissidentes algumas
vezes chegam ao poder, como ocorreu com o Partido Bolchevique de Lênin ou o
Ayatollah Khomeini na Revolução Iraniana.
A
dissidência política no Brasil dos anos 1990 era bastante diversificada: grupos
socialistas revolucionários, cuja presença já estava naturalizada dentro do
sistema dada sua antiguidade e por esposarem uma das ideologias dos vitoriosos da
Segunda Guerra Mundial; minúsculos conventículos nazistas e fascistas, parte
deles criminalizados por advogarem separatismo e racismo; direitistas
reacionários mergulhados ainda na ideologia da “linha dura” do regime
civil-militar, moldada pela Guerra Fria e pela defesa da “civilização cristã
ocidental” contra o perigo comunista; e até mesmo liberais que enxergavam o
Estado brasileiro como uma construção fundamentalmente patrimonialista e
estamental. Toda esta divergência pode ser colocada, inicialmente, em um mesmo
conjunto a partir de um elemento comum de negação: Eram inconformistas em
relação ao pacto e ao consenso social-liberal que se consolidou durante a Nova
República, tanto no âmbito político-partidário, quanto em esferas de mediação
do sistema dominante [Universidades, grande, mídia, sociedade organizada em
geral].
Este
saco de gatos, a maior parte dos quais convivia em suas pequenas ilhas
ideológicas e organizacionais, provavelmente permaneceria marginal e desagregado
não fosse o fenômeno crescente da Internet e das redes sociais, que acelerou de
maneira exponencial a circulação de ideias. O papel da Internet na mobilização
política foi reconhecido pela mídia e pela Academia durante as “Revoluções
Coloridas”, quando era então apresentada como positivo e sinal de um “avanço
democrático”. Mas logo se tornou claro que as redes podiam não só servir de
títeres em prol dos interesses das Democracias Liberais. Proporcionando o
surgimento de círculos anárquicos, isto é, fora do controle estrito do discurso
hegemônico, se prestavam igualmente ao crescimento de outras tendências.
Mas
não se deve ver na Dissidência Tradicionalista um sinônimo de populismo de
direita, ou do nacionalismo populista europeu e americano. As brechas na circulação
de ideias “legitimadas socialmente” levou à emergência de inconformismos que
são diferentes, embora se tangenciem e interajam. No caso do Brasil, é um
equívoco imaginar que o movimento de que trato possa ser reduzido à história do
bolsonarismo, por exemplo, nem mesmo quando levamos em conta a associação com Olavo
de Carvalho. O “Olavismo” não é o bolsonarismo, e tem marcas, viés, história e
agenda própria. Na mesma linha, a Dissidência Tradicionalista não se reduz ao
“Olavismo”. Pelo contrário, boa parte do desenvolvimento deste movimento foi impulsionada
por discordâncias e críticas ao “filósofo da Virgínia”.
Isto não quer dizer que Olavo de Carvalho esteja fora desta corrente. Para muitos, ele é a principal referência tradicionalista no país, ainda que ele próprio tenha preferido, ao longo do tempo, se afastar da imagem de Guénon e Schuon. O importante, por enquanto, é apontar a pluralidade no interior não só da Dissidência, como também do próprio Tradicionalismo.
O Centro de Estudos Multipolares [CEM], think tank que herdou o posto dos Congressos Evolianos como principal centro aglutinador da Dissidência Tradicionalista no Brasil até 2018 |
A
Dissidência Tradicionalista é um recorte do conjunto maior de divergentes. É
constituída por diversos grupos que passaram a perceber o establishment a partir do diálogo com as ideias de um ou mais
autores “perenialistas”. Muito se mantiveram com atuação liberal, ou
conservadora, ou socialista, ou nacionalista, ou fascista; outros mudaram de
campo de atuação. Mas o fizeram em consonância com interpretações, aproximações
e afastamentos, adesões ou críticas aos temas e fundamentos das obras dos
autores da escola.
Aqueles
que ouviram falar do Tradicionalismo através das análises mais recentes na grande
mídia e dos “especialistas” em Nova Direita podem se sentir incomodados com o
parágrafo anterior. Eles aprenderam que o Tradicionalismo é um tipo de
“neofascismo” que nega o progresso, a tecnologia, os direitos individuais,
saudosista de tempos passados, que lutam para reeditar. Alguns sustentam essa
caricatura não só com base na desinformação de meios jornalísticos e daqueles
que se aproveitam do mercado editorial para posar de autoridades sobre o
assunto, mas também de uma má interpretação do já citado Teitelbaum, que nunca
caiu explicitamente neste absurdo. No entanto, os erros do pesquisador também contribuíram
para esta distorção; vou tratar disto na próxima postagem e proporcionar,
talvez, a primeira refutação embasada de um dos principais argumentos apresentados
em “Guerra pela Eternidade”.
O
Tradicionalismo não é nem ideologia, nem movimento político, nem tampouco uma
religião. É um paradigma metafísico, filosófico e de simbologia que tem de ser
tratado na história das ideias do esoterismo ocidental, tanto quanto o
ocultismo dos últimos dois séculos, o hermetismo, o rosacrucianismo, os
cabalistas, e as organizações maçônicas e para-maçônicas. Não há novidade,
inclusive, na interação da política com ideias esotéricas. A modernidade
inteira foi construída em meio a esta persistente dinâmica, um capítulo da
história intelectual que é comumente subestimado pelo senso comum e pelo
discurso mainstream. Mas há
especificidades no prestígio crescente do Tradicionalismo em círculos
dissidentes e que devem ser explicitadas.
Esta
não é uma História sobre o Tradicionalismo. Nem tampouco uma exposição
pormenorizada das bases teóricas desta escola. Mas há necessidade de retificar
alguns erros divulgados na imprensa para fazer entender os rumos da Dissidência
Tradicionalista no Brasil e dar ao termo um contorno mais delimitado. No
próximo post, tratarei de alguns pontos do paradigma Tradicionalista, já que ele
tem características cuja compreensão é imprescindível para a correta abordagem
dos fenômenos políticos que nasceram a partir se seus principais autores. E
então poderei tratar da importância de Olavo de Carvalho e, principalmente, da
origem de boa parte dos movimentos atuais nas discordâncias com as ideias e
abordagens do já falecido “Filósofo da Virgínia”.
Aguardando os próximos capítulos
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