domingo, 22 de maio de 2022

Dugin e a Nação, ou: a Geopolítica de Dugin -- parte III

Os partícipes da "Grande Aliança Revolucionária" projetada por Dugin, ou os defensores e propagandistas incondicionais de suas ideias gostam de diferenciar, retoricamente, entre “Grande” e “Pequeno” nacionalismo. É uma estratégia para evitar chocar pessoas mais sensíveis com a oposição de Dugin à existência do nacionalismo, das nações e do conceito moderno de Estado-Nacional. No livro “Rise of the Fourth Political Theory”, publicado em 2017, o russo afirma em meio a uma entrevista sobre Martin Heidegger:

 

“O Nacionalismo é um conceito moderno, tal como o Internacionalismo, que é seu correlato. Sou contra o nacionalismo e contra todas as criações da Modernidade. Estou profundamente convencido que a Modernidade está absolutamente errada em todos os sentidos.''

 

Em artigo publicado no site Katehon, em março de 2022 ["Nationalism: Criminal Fiction and Ideological Impasse"] , Dugin afirma:


"Provavelmente, apenas algumas pessoas prestam atenção seriamente ao fato de que a Quarta Teoria Política, à qual dou minha adesão, dá a maior das atenções à crítica do nacionalismo. Ainda mais impressionante é a crítica do Liberalismo e a rejeição do dogma marxista. Mas igualmente necessária e fundamental é a rejeição radical não só do nacionalismo, mas até mesmo da nação." [1]


A distinção entre Grande e Pequeno Nacionalismo se refere, na verdade, à diferença entre Grandes Espaços/Civilizações/Impérios, defendida no modelo de Multipolaridade do russo, e Estados-Nacionais, que deveriam perder sua soberania legal e/ou real. O assunto é abordado em “Teoria do Mundo Multipolar”, de 2012:


“Uma vez que o sistema westfaliano recusa formalmente o reconhecimento de qualquer realidade legal e legítima que transcenda a soberania nacional, a normatização espacial da esfera das relações internacionais não consegue obter uma expressão conceptual formal. Contudo, o equilíbrio de poder por vezes é consistente e óbvio ao ponto de pela sua própria natureza se equiparar à lei e, deste modo, assenta na lei de solidificação. Tal sucedeu com a “Doutrina Monroe”, a lei do mar inglesa, a “Doutrina Wilson” ou os termos do Tratado de Versalhes: as potências dominantes do mundo identificaram os seus interesses nacionais (assegurados pelo uso da força) como norma do estado das coisas, embora os processos decorressem fora do âmbito das suas fronteiras e a uma ampla distância destas. [...] O multipolarismo, tal como o bipolarismo e o unipolarismo, não é um conceito legal e pode bem não o ser no futuro mais próximo, ou até mesmo nunca. Trata-se da descrição do real equilíbrio de poder entre os principais actores a nível mundial. Consequentemente, tanto a “civilização” quanto a “ordem multipolar” possuem o estatuto legal de conceitos prévios: existem e podem ser impostos pela força do poder e dos recursos, podem ser declarados, podem ser funcionais e reais. Em determinadas circunstâncias podem até substituir o modelo westfaliano,  seria então lógico colocar-se a questão da rejeição formal da soberania nacional, transferindo tal conceito para uma instância diferente – a própria civilização ou pólo do mundo multipolar.”

 

A construção dos “Espaços Civilizacionais” [como eu disse em texto anterior, Dugin não ‘naturaliza’ as Civilizações/Grandes Espaços, mas diz que devem ser construídos] pode ser realizada pela força, segundo os interesses dos Estados vigentes. É óbvio que estes Estados seriam os mais poderosos. Dugin está aplicando o Realismo a este ponto de sua Teoria do Mundo Multipolar.

O papel dos Estados Nacionais nesta estratégia geopolítica é exposta no livro seguinte, “Geopolítica do Mundo Multipolar”, publicado também em 2012. Mais uma vez, os neo-eurasianistas espelham o que seu inimigo declarado, o Ocidente Unipolar centrado nos EUA, realizam ao redor do planeta com o objetivo de manter seu “Império Mundial”: o “construtor da civilização” redesenha as fronteiras, destrói e constrói nações conforme seu interesse. Os EUA o fazem em prol do globalismo. Os eurasianos devem defender o mesmo, mas em prol da Multipolaridade.

Ou seja, na Geopolítica de Dugin, um Estado Nacional deve ou não sobreviver na medida em que impulsione ou impeça o projeto de Multipolaridade Eurasiano. O Estado Nacional pode ser forte o suficiente para ser o pólo de construção de um Grande Espaço/Civilização/Império, como a Rússia estaria fazendo atualmente na Ucrânia. Ou pode se fraco, um “pequeno nacionalismo”, que contribui para a manutenção do Sistema Westphaliano, uma elaboração moderna que, para Dugin, serve apenas de plataforma de atomização da vida pessoal e de alavanca para a futura globalização.

Existe um terceiro caso, o do Estado Nacional forte que obstaculize a Multipolaridade e que não possa ser engolido por nenhum outro em seu entorno geoestratégico. Neste caso, há duginistas que defendem que tal Estado deveria ser fragmentado e dividido, “balcanizado”, como meio de facilitar o processo de integração civilizacional posterior. Esta linha de raciocínio, inclusive, está na origem da criação de alguns movimentos dissidentes separatistas ligados à QTP, como a “Frente Popular Austral”, e a atual “Resistência Sulista”. Tratarei deste tema mais detidamente no âmbito da História da Dissidência Tradicionalista no Brasil. [abra o link.]

Seja forte ou fraco, o Estado Nacional deve dar lugar a um Império que coloque a soberania em âmbito superior ao da identidade nacional. Os passos estão descritos em “Geopolítica do Mundo Multipolar”, continuação de "Teoria do Mundo Multipolar":

 

“A Teoria do Multipolarismo demonstra que os Estados nacionais são um fenômeno eurocêntrico, mecânico, e, para uma maior dimensão, “globalista”, no seu estágio inicial (a ideia de identidade individual normativa na forma do civismo prepara o chão para a “sociedade civil” e, correspondentemente, para a “sociedade global”). Que todo o espaço mundial é separado hoje em territórios de Estados nacionais é uma consequência direta da colonização, do imperialismo e da projeção do modelo ocidental em toda a humanidade. Assim, um Estado nacional não carrega em si mesmo qualquer valor autossuficiente para a Teoria do Multipolarismo. A tese da preservação dos Estados nacionais na perspectiva da construção da ordem do mundo multipolar é somente importante no caso, se isso impede pragmaticamente a globalização (não contribui com ela) e oculta sob si mesmo uma realidade social mais complicada e proeminente – afinal, muitas unidades políticas (especialmente no Terceiro Mundo) são Estados nacionais simplesmente nominalmente e elas representam virtualmente várias formas de sociedades tradicionais com sistemas de identidade mais complexos. Aqui, a posição dos proponentes do mundo multipolar é completamente oposta aos globalistas: se um Estado nacional efetua a unificação da sociedade e auxilia a atomização dos cidadãos, ou seja, implementa uma profunda e real modernização e ocidentalização, tal Estado nacional não tem qualquer importância, sendo apenas uma sorte de instrumento da globalização. Tal Estado nacional que não está se preservando dignamente não possui sentido algum na perspectiva multipolar. Mas se um Estado nacional serve como uma face frontal para outro sistema social – uma cultura, civilização, religião, etc., original e especial - deveria ser apoiado e preservado enquanto atualiza sua evolução vindoura em uma estrutura mais harmoniosa, dentro dos limites do pluralismo sociológico no espírito da Teoria Multipolar.” [Capítulo 3]

 

O trecho acima traz informações boas para se pensar. Dugin critica em outro ponto a sociedade norte-americana por ela não se fundamentar em identificações étnicas, e na citação considera o "civismo" como um passo rumo à sociedade global. Cabe lembrar que, assim como nos EUA, a maioria esmagadora da população brasileira tampouco tem identificações étnicas. Temos diferentes regiões culturais [o mundo caipira, o mundo gaúcho etc.] que trespassam fronteiras estaduais e raciais, e que não se vinculam a qualquer etnia particular. Ser caipira ou gaúcho não é pertencer a uma etnia, mas a uma cultura macro-regional. O Brasil não se formou como um "Império Multi-Nacional", como a Rússia. O princípio gerador da "Brasilidade" foi o da "aculturação" dos povos que aqui chegavam, como se lê em Darcy Ribeiro. Um processo de "etnicização" e criação de "nacionalidades" distintas no território brasileiro seria uma novidade imensa em nosso processo histórico, e com consequências imprevisíveis, quando não destinado a um fracasso retumbante. 

Devemos lembrar também que os Grandes Espaços/Civilizações fazem parte de uma estrutura hierárquica. Nem todos são polos geopolíticos mundiais, apenas os que se localizam no Norte Geopolítico, segundo o modelo de “Mundo Quadripolar” defendido por Dugin, e que descrevi na postagem: A Geopolítica de Dugin -- Parte II . [abrir o link.] No modelo "Quadripolar", a civilização latino-americana estaria subordinada ao pólo geoestratégico e geopolítico dos EUA, em uma reprodução da Doutrina Monroe.

Voltando ao ponto principal, a  citação ajuda a entender o apoio efusivo de Dugin à ação da Rússia na Ucrânia. A Rússia é o Estado forte que, a partir do uso da força em seu entorno geoestratégico, pode destruir os Estados Nacionais que o circundam [considerados como instrumentos da globalização pelo fato mesmo de serem nacionalismos e reproduzirem o modelo Westphaliano], a fim de “construir” a Civilização Eurasiática [Grande Espaço/Império Regional]. Que esta construção possa ser realizada manu militari, em imitação às práticas colonialistas e neocolonialistas, é dito explicitamente pelo geopolítico russo em “Rise of Fourth Political Theory”:

 

"Claro que, ao falar da expansão da influência russa no espaço pós-soviético, não estamos insistindo na colonização direta no sentido antigo. Os Impérios de hoje raramente recorrem a métodos semelhantes (embora, como vimos no caso de Iraque e Kosovo, eles ainda sejam empregados; consequentemente não podemos desconsiderá-los inteiramente)." [Capítulo 5]

 

 Nesta mesma obra, Dugin oferece um quadro para explicar as diferenças entre as Primeira, Segunda, Terceira e Quarta Teorias Políticas em relação aos mais diversos tópicos. Quando o assunto é nação e nacionalismo, a QTP duginiana os considera como aberrações burguesas que devem ser dissolvidas.




No quadro, destacado em vermelho, Dugin defende a dissolução da ideia de nação na Quarta Teoria Política

É interessante imaginar como esta linha de raciocínio se aplicaria no Sul Global, ou mesmo fora da Rússia. Dugin parece ler a realidade mundial a partir de parâmetros culturais próprios. O Estado Russo nunca foi um Estado-Nacional, é herança dos antigos Impérios Multi-Nacionais europeus, que abrigavam diversas nacionalidades [históricas, linguísticas, ou étnicas], como no exemplo do Império Austríaco oitocentista. A Rússia atual se sustenta em um modelo de Federalismo “Matriosca” [bonecas russas em que as menores ficam dentro da maior]: o Estado abriga Repúblicas e Oblast autônomos, com direitos, línguas e identidades específicas. É uma espécie de construção que faz sentido na História russa e de outros países da Europa. Quando se tenta enquadrar outras realidades nacionais a este parâmetro particular, temos o que acontece hoje na Ucrânia. É ilusão imaginar que todos os ucranianos contrários à absorção de seu país pelo vizinho sejam “neonazistas russofóbicos”: eles se veem com uma nação distinta e reivindicam o direito a um Estado próprio. Ocorreria o mesmo caso a Rússia decidisse invadir a Polônia -- como já fez outras vezes na História, diga-se de passagem.

A solução que Dugin oferece para impasses como este é a aplicação pura e simples de um tipo de realismo: o mais forte impõe seus interesses pela força, caso necessário. Se este modelo é complicado para a Rússia, significando uma expansão militar visando absorver os países em seu entorno e ajustá-los à sua estrutura de Império Multi-Nacional [e inviabilizando as regiões que não se adequam a esta construção, como o Oeste ucraniano], que dirá para outros contextos, como o latino-americano. As identidades nacionais brasileira, uruguaia, paraguaia, venezuelana, argentina etc. teriam de ser dissolvidas em nome de quê, exatamente? A construção de uma Pátria Grande tem de seguir outras linhas, e que deixem espaço para a realidade desprezada pela Multipolaridade eurasiana, os Estados e identificações Nacionais, preservados sem recurso ao "direito do mais forte". Guerra do Paraguai, nunca mais, conflito em que todos os lados acabaram perdendo muito, incluindo o Império do Brasil, cujo regime foi condenado a médio prazo. 

Desde então, a Diplomacia brasileira busca evitar conflitos militares nas fronteiras sul-americanas, para que não fossem engolidos pelos grandes conflitos entre as potências do Norte Geopolítico, criando entre nós trincheiras estritamente militares em prol de interesses alienígenas. Cabe pensar seriamente se uma mudança nesta orientação contribuiria ou não para a integridade territorial brasileira, de nossos vizinhos e para a independência e soberania dos povos latino-americanos.

Também seria interessante imaginar o papel e função dos EUA. O que os neo-eurasianos diriam se os ianques decidissem agir no seu entorno geoestratégico a partir da força militar, redesenhando as fronteiras arbitrariamente para defender sua "fortaleza americana" e seu "Império Regional"? Esta é a lógica estrita da Geopolítica de Dugin, e inclusive consequência implícita em seu "Modelo Quadripolar". Os latino-americanos teriam "independência civilizacional" para viver segundo seus costumes, culturas, organização político-social. Mas não soberania completa, já que o polo integrador ficaria nos EUA. 

A Multipolaridade duginiana não serve aos interesses brasileiros, obviamente. Quando muito, somos instrumentos da guerra que o geopolítico russo pretende mover contra os EUA. Mas não sujeitos ativos na proposta de um mundo multipolar que contemple a independência completa do Sul Global.


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[1] https://katehon.com/en/article/nationalism-criminal-fiction-and-ideological-impasse


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