''Dugin cai assim no mesmo racismo culturalista que pensa combater ao denunciar o substrato das três teorias políticas contemporâneas.''
1. Da responsabilidade do conflito e da necessária Multipolaridade
Perguntaram se ''mudei de opinião'' quanto ao conflito ucraniano. Não mudei coisa nenhuma, alguns dos meus críticos é que não tem muita capacidade de leitura, ou se abraçam a uma postura desonesta.
Afirmei inúmeras vezes que o principal responsável pelo conflito, cuja feição militar começou em 2014 no Donbass [e não em fevereiro deste ano], é a OTAN e o hegemonismo ianque, que visa cercar a Eurásia e se expandir, se possível, para dentro do próprio território russo. Evidente que, mais dia menos dia, a Rússia reagiria de alguma maneira para garantir sua segurança nacional e sua integridade territorial. Já havia feito isto na Geórgia, em 2008; e a Ucrânia era alvo de guerras híbridas antes mesmo disto e do EuroMaidan.
Muito simples. Não há qualquer neutralidade neste âmbito mais geral.
Daí NÃO SE TIRA, porém, que toda e qualquer reação russa, ou toda e qualquer medida de Putin em meio a esta reação, seja legítima ou deva ser apoiada. Afirmar que a ''identidade ucraniana é artificial e ridícula'', como fez Dugin há poucas semanas, não deve ser aplaudido. Desenhar as fronteiras da Ucrânia segundo os interesses russos, inviabilizando o país, tampouco deve ser apoiado.
Afinal, eu continuo defendendo a identidade e a liberdade de TODOS os povos do planeta. Se alguém se tornou claudicante neste objetivo não fui eu.
[Não é apropriado comparar a Ucrânia a Kosovo, são processos muito diferentes. Kosovo foi separado da Sérvia por meio de bombardeios da OTAN. Já uma Ucrânia própria, com identidade particular, era reconhecida desde o Czarismo. A União Soviética, inclusive, incentivou o nacionalismo ucraniano e sua diferenciação dos grão-russos. Quando da instituição da ONU, a URSS era um país com TRÊS assentos na Assembleia Geral da ONU: Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia. O argumento soviético é de que se tratavam de três nacionalidades distintas. E se é verdade que os EUA prometeram não expandir a OTAN quando do fim da Guerra Fria, é verdade também que a Rússia prometeu respeitar a soberania do novo Estado ucraniano, pré-condição inclusive para receber as armas nucleares estacionadas no país.]
Se é verdade que a multipolaridade é melhor que a unipolaridade, e que a derrota da OTAN é imprescindível para alcançá-la, daí não se conclui que qualquer arranjo multipolar é bom, ideal ou deva ser defendido. A multipolaridade que interessa a Rússia de Putin pode muito bem ser uma multipolaridade que não contemple os interesses brasileiros, que tem características e especificidades próprias.
Todas estas questões são banais, principalmente se compreendidas a partir das críticas pesadas que sempre foram feitas a Putin em meio à dissidência tradicionalista.
Mas por que, então, alguns não entendem o simples?
2. Duginismo e Russofilia: só existiriam ''dois campos", o russo e o anti-russo
Não entendem por causa da adesão irrestrita e russófila às posições de Alexandr Dugin. Há uma confusão na cabeça de duginistas sobre o papel do geopolítico e sociólogo. É fato que se trata de um dos maiores pensadores contemporâneos, e um autor tradicionalista de dimensão singular e que deve ser lido, compreendido e absorvido em todas as suas positividades teóricas.
Mas Dugin é também, como ele próprio confessa, um agente do Estado russo, um patriota e defensor da grande Rússia Imperial. Bastou eclodir a agressão militar para que ele concedesse entrevistas à imprensa estrangeira se apresentando como artífice da atual geoestratégia das Forças Armadas e das Agências de Inteligência russas -- de maneira francamente exagerada, diga-se de passagem, já que super-dimensionar a própria importância faz parte do jogo político.
Até aí, nada demais. Não existe problema em ser também um militante. Grandes teóricos e analistas são grandes artífices políticos e militam por alguma utopia.
A questão é que a Utopia de Dugin é prioritariamente russa.
Simpatizo com Dugin quando ele diz, de forma maniqueísta e erística, que a Rússia é a "civilização da luz", e que o conflito atual é entre a Rússia e a anti-Rússia. É um reducionismo dualista planejado para angariar apoio para o próprio país. "Quem não está comigo, está contra mim; quem comigo não ajunta, espalha", assim disse o Senhor. Mas assim também disse George Bush, distorcendo o sentido das palavras de Cristo para seus próprios propósitos políticos.
É compreensível que um russo defenda sua Pátria e os interesses do governo que apóia a partir desta retórica dualista que não deixa espaço para nenhuma alternativa. Agora, um brasileiro e latino-americano dizendo que os EUA são a ''cidade no alto do monte'' ou que a Rússia é a civilização a luz, é bastante complicado.
3. Resquícios racistas em Dugin: o Sul Geopolítico é sempre ''passivo''
Para Dugin, esta questão é menor. Como demonstrei em texto anterior, ele advoga que o Sul Global [ou Geopolítico] é estruturalmente submisso em relação ao Norte. Não se trata aqui do Sul Simbólico, mas do Sul Geopolítico mesmo. Ou seja, a América Latina, a África e a maior parte da Ásia jamais conseguiriam libertar-se do domínio Ocidental sem aceitarem a liderança e o domínio do Norte Geopolítico. Para o Sul, se trataria apenas de se conformar ao Ocidente anti-tradicional, ou ao Norte tradicional. Nunca se tornar realmente independente.
Esta abordagem faz parte de um olhar nórdico sobre a Tradição e a Civilização, e, mais do que isto, um resquício do racismo culturalista que o próprio Dugin critica na Quarta Teoria Política. Pois se os povos do Sul Global são por natureza sempre dependentes do Norte, se são sempre passivos e jamais podem propor ou executar uma geopolítica própria que altere de modo soberano as Relações Internacionais, então há uma inferioridade cabal destes povos em relação aos do Norte Global.
[Lembremos que para Dugin a Geopolítica é a disciplina moderna que mais reflete a Tradição, e portanto a inferioridade do Sul Global -- não apenas do Sul simbólico, diga-se de passagem -- é uma aplicação de sua interpretação do significado da Tradição].
Dugin cai assim no mesmo racismo culturalista que pensa combater ao denunciar o substrato das três teorias políticas contemporâneas.
Isto nos leva a uma conclusão inescapável: há não só um racismo progressista e iluminista que permeia todo o paradigma moderno; mas há também um racismo esotericista e pretensamente tradicionalista. Quando Dugin olha para o Sul Global e todos estes ''mulatos lendo Heidegger" [conforme ele disse alhures, demonstrando surpresa] e afirma que todos eles sempre serão passivos e sem iniciativa geopolítica própria, está se colocando a pergunta dos fariseus quando ouviram falar de Cristo: "Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?"
Já demonstrei alhures que o raciocínio de Dugin se revela falso quando o aplicamos à configuração atual das Relações Internacionais: a China não é integrante do Norte Geopolítico, e a Rússia se tornou dependente de Xi Jinping. Tão dependente que teve não só de firmar uma aliança rígida com o líder comunista como também esperar até o fim das Olimpíadas de Inverno, em Pequim, pra iniciar a invasão à Ucrânia. A China é o grande sujeito político oculto em todo este conflito, mais ativo e determinante do que a Rússia jamais poderia ser no atual momento histórico.
4. O dualismo de Dugin como reatualização parcial da Teoria dos Dois Campos
Ora, o dualismo retórico empregado por Dugin para angariar apoio para seu país tem precedentes históricos. Em resposta à postura confrontacionista norte-americana e ao ''Longo Telegrama", de G. Kennan, em meados dos anos 1940 e nos primórdios da Guerra Fria, Andrei Zhdanov elaborou a "Teoria dos Dois Campos".
Resumindo, ela defendia que todos os aspectos da vida humana, dos ideológicos aos científicos, dos filosóficos aos artísticos, dos políticos aos econômicos, podiam ser reduzidos a dois campos inconciliáveis: o socialismo marxista e o liberal capitalista.
Esta forma de pensar tinha influência direta nas posições geopolíticas: Só existiam duas possibilidades para todos os demais agentes estatais. Ou se vinculam ao comunismo em uma luta global contra o imperialismo, o que significava se vincular a Moscou; ou se subordinam ao próprio imperialismo em uma luta contra a liberdade dos trabalhadores do mundo inteiro.
A Teoria dos Dois Campos foi a desculpa perfeita para que Stalin demolisse qualquer pretensão de independência do leste europeu e reconstruísse estes países segundo os princípios do socialismo real soviético. Evidente que foi usado também pelos ianques para fazerem o mesmo na Oeste, construírem a OTAN [com grande apoio britânico], e se projetarem geopoliticamente para fora da América do Norte -- elemento chave do mundo pós II Guerra Mundial.
Não é que Stalin estivesse ''equivocado'' em mobilizar esta teoria. A Rússia queria empregar o tipo de imperialismo com que os europeus estavam acostumados, ocupando militarmente e colocando governos títeres nos países de seu entorno geoestratégico. Nada muito diferente do que os próprios EUA faziam no Caribe ou o que os europeus faziam no Norte da África. Assim com hoje, as preocupações de segurança russas eram perfeitamente compreensíveis e legítimas. O país tinha sofrido diversas invasões vindas do Oeste da Europa, e as mais recentes tinham sido devastadoras [a napoleônica e as duas guerras mundiais].
Só que existem povos, mentalidades, perspectivas e agentes além destes grandes polos. E estes povos e agentes não são ''matéria prima'' passiva do Norte Geopolítico, como se imaginam alguns duginistas. Há um Sul Global ativo também.
Ao longo dos anos 1950 e 1960, estes agentes criaram aos poucos o Movimento dos Países Não-Alinhados, forma que encontraram de se contrapor à redução do planeta ao embate entre dois grandes polos de poder, sistema que só interessava de fato aos EUA e URSS. No início, as super-potências aceitaram os ''não-alinhados'' por questões pragmáticas. Mas com o congelamento geopolitico da Europa a partir da construção do Muro de Berlim, e na medida em que ficou nítido que o ''não-alinhamento'' era à vera, Washington e Moscou realizaram diversas intervenções no Sul Global [que se chamava de "Terceiro Mundo" naquelas décadas] a fim de reforçar a bipolarização que lhes interessava.
Evidente que a Rússia não tem hoje poder para estabelecer um sistema bipolar em confronto com os EUA. Quem poderia exercer esta papel é a China, e Putin vai tentar de tudo para não ser engolido por Xi Jinping e estabelecer, pelo menos, um tripolaridade global.
Mas isto pouco importa para nós do Sul, da América Latina e, principalmente, do Brasil. A unipolaridade é péssima, a bipolaridade é uma porcaria, mas a tripolaridade ou a multipolaridade não são necessariamente boas. A multipolaridade faz parte da nossa Utopia, mas a multipolaridade, por si só, não é nossa Utopia.
4. Possibilidades de Multipolaridade
Em 1941/42, o presidente dos EUA F. D. Roosevelt já tinha uma proposta de rearranjo do sistema internacional quando a guerra chegasse ao fim. Ele não tinha ainda na cabeça a formação de uma nova "Liga das Nações". A proposta era de quatro ''policiais do mundo'', quatro ''xerifes'' responsáveis, cada um deles, por uma área do planeta. A América pertenceria aos EUA, a África à Inglaterra [que mais tarde fez questão de colocar a França na jogada], partes do leste da Europa e do Cáucaso à Rússia, o Oriente seria policiado pela China [já que o Japão havia se tornado um inimigo].
Nos anos seguintes, Roosevelt concluiu pela necessidade da ONU, com adesão do maior número possível de Estados-Nacionais, e foi convencido de que esta divisão regional das potências não era viável. Ainda assim, sua proposta foi parcialmente instituída por meio do Conselho de Segurança da ONU. Percebam que era uma proposta multipolar. E uma multipolaridade que em nada interessava ao Brasil e à América Latina.
Se o mundo é multipolar desde a agressão russa à Ucrânia, como diz Dugin, então é hora de o Brasil se dedicar à construção de um sistema de relações internacionais que o favoreça. Para isto, ele deve sim apostar em alianças contra-hegemônicas contra seu inimigo geopolítico, os Estados Unidos, que exercem o domínio do continente americano. Mas aquilo que é bom para a Rússia ou para a China, pode ser ruim para os EUA sem ser bom para o Brasil. Temos de criar uma voz autônoma, não nos imaginarmos como um tipo novo de Cuba, sem qualquer alternativa senão se reduzir a pau de toda obra de algum polo de poder.
Não se trata de ficar ansioso para lutar nas próximas guerras russas no leste europeu ou na Ásia, seja na Ucrânia ou na Síria. E sim se preparar para defender, se necessário for, o Brasil e a América Latina, o Sul Geopolítico e todos os povos subordinados pelo capitalismo imperialista.
5. Conclusão
Quais os vínculos entre a leitura de mundo de Putin e Dugin? O pensador defendeu que Putin está aplicando à Quarta Teoria Política em sua confrontação com a OTAN. Mas está mesmo? Em que medida Stalin faria diferente, ou qualquer patriota russo, ainda que partidário de uma ideologia contemporânea, faria de fato diferente? Construir um espaço de segurança nacional para a Rússia não é necessariamente sinônimo de Quarta Teoria Política ou de guinada rumo à Tradição.
Xi Jinping vai reivindicar Taiwan daqui a poucos anos em nome do Partido Comunista Chinês. A Geopolítica reflete embates tradicionais, mas cair no erro de confundir certos campos de atuação não passa de ilusão. Putin não é um Czar, assim como Stalin também não era, ainda que estivessem corretos na defesa da segurança de seu país -- embora tenham errado em algumas das decisões que tomaram visando este fim. Mais uma vez, não se deve confundir os meios com os fins.
Quanto ao Brasil, o primeiro passo para que tenhamos iniciativa geopolítica real está em usar referências próprias para pensar o país, e também para se posicionar no sistema internacional. Defender todo e qualquer posicionamento emanado da caneta de Dugin não passa de uma russofilia patética, tão patético quanto seguir lições da NSA ou da CIA. Os russos podem ser aliados, amigos, mas não ditar nossa leitura de mundo ou nosso posicionamento nos conflitos mundiais.
Não basta ser "brasilófilo" [declaração que soa engraçada quando vinda de um brasileiro, diga-se de passagem]. É necessário, antes de tudo, ser um patriota brasileiro, assumir nosso caráter latino-americano, e jogar na lata do lixo a crença absurda de que o Sul Global e Geopolítico é sempre "passivo em relação ao Norte".
Dugin está errado se defende este resquício de racismo culturalista nordicista, fruto de uma interpretação equivocada da Tradição. E seus posicionamentos no mundo concreto da política e da geopolítica não tem de ser necessariamente os nossos, já que ele é também um defensor da Rússia Imperial, e não um patriota brasileiro [ainda que possa ser ''brasilófilo" de modo algo retórico].
A multipolaridade começou ou não em fevereiro de 2022, como disse Dugin? Ou ele estava errado sobre isto também?
Seja como for, os brasileiros não podemos ficar a reboque dos equívocos alheios. É até melhor que cometamos nossos próprios erros do que simplesmente repetirmos os alheios por ''passividade'' teórica, política e geopolítica.
Afinal, somos patriotas brasileiros, tradicionalistas dissidentes do Sul e dos povos da Rainha do Meio-Dia, devotos da Onça Castanha.
PÃO, TERRA, TRADIÇÃO!
André Luiz V.B.T. dos Reis
10 de abril de 2022
Brilhante! Texto canônico.
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