The sort of man who injures others by magic knots, or enchantments, or
incantations, or any of the like practices, if he be a prophet or diviner, let
him die.
— Plato, Laws 9.933d.
Uma das críticas comuns feitas por muitos ateus e agnósticos militantes quando se reúnem em fóruns e redes sociais que versam sobre apologética religiosa é sobre a Inquisição. As alegações costumam ser acompanhadas das mais esdrúxulas superstições históricas, como a ideia de que milhões de mulheres foram mortas pela sanha misógina e crédula de sacerdotes sádicos. Não é raro que se compare a Inquisição ou a prática de queimar bruxas ao Holocausto ou outro genocídio contemporâneo [1]. A imagem acima, por exemplo, faz uma confusão entre coisas diferentes quando associada com a pergunta. A fogueira era um forma de aplicar a pena de
morte comumente usada nas regiões abrangidas pelo Império
Romano, principalmente em justiçamentos populares, e seu uso cresceu quando a
cristianização pôs fim à crucificação. Era utilizada não só pelas
populações camponesas quanto pelas autoridades seculares. Já o versículo citado se dava em
outro contexto de aplicação da pena capital: os israelitas apedrejavam os
condenados à morte [2].
O cerne de toda esta questão é, por um lado, a pena de
morte; e, por outro, o de saber que crimes seriam repugnantes o suficiente para aplicá-la, e também
sobre os meios de levá-la adiante. Eu penso que existem crimes que tornam
aquele que os cometeu passível de morte. Já que a sanção deve acompanhar a gravidade do delito não há porque afirmar que a pena de morte seja incorreta em princípio [3]. Para quem parte desta noção, somente
os mais bárbaros crimes justificariam tamanha sanção -- geralmente aqueles que colocam a vida de indivíduos ou da comunidade em risco. No Brasil, por exemplo, há pena de
morte quando do estado de guerra: o desertor é passível de fuzilamento. Outros países estendem o leque de
atos típicos cuja sanção é a pena capital, aplicando-a em tempos de paz a crimes de lesa-pátria, a homicídios, estupros [uma discussão atual na
Índia] etc.
A discussão sobre que crimes seriam passíveis dessa sanção é algo, definitivamente, em aberto. E aqui entra um ponto chave dessa conversa, inclusive para aqueles que concordam com a aplicabilidade da pena capital, o de saber se a prática da feitiçaria poderia ser legitimamente considerada passível dela.
Na maior parte da História foi
comum a punição de morte para feiticeiras. O primeiro ''código'' [embora ele
seja chamado assim de forma equivocada] conhecido, o de Hamurábi, já tratava
assim os ''bruxos''. O justiçamento camponês para ''feiticeiros'' -- se
entendidos como pessoas que abusavam de artes mágicas com o fito de prejudicar
terceiros e a comunidade -- quase sempre foi impiedoso [4]. O próprio Platão, como exemplificado pela passagem d'As Leis, também pensava, seguindo um entendimento também comum em seu tempo, que crimes graves podiam ser cometidos contra a comunidade através de encantamentos [5].
Na Cristandade Ocidental -- a
''Europa cristã'' -- não era comum que as autoridades mandassem ''feiticeiras''
para a morte. Carlos Magno -- se não me engano -- chegou a proibir sentenças
para os praticantes de mágica, por entender que os bons cristãos não estavam
tão sujeitos assim a ela e por considerar a maior parte das acusações fruto de
superstição popular. Diferente do que muitos pensam, foi com o alvorecer da
Modernidade, isto é, entre os séculos XIII e XV, que se tornou generalizada a
condenação destes atos, dando início à grande ''caça às bruxas'' da era
moderna, particularmente feroz nos séculos XVI e XVII tanto em países católico-romanos quanto em protestantes [6].
A feitiçaria, punida com rigor durante a modernidade, só deixou de ser crime no mundo contemporâneo quando as
autoridades europeias, e mais tarde a própria população ocidental, foi
gradualmente deixando de acreditar seriamente na magia e no ''sobrenatural'' [7].
Estas seriam ''crenças subjetivas'' que não mereceriam maiores considerações do
poder público. Óbvio que se a sociedade acredita
ou sabe que a magia funciona, e se acredita ou sabe que há gente que a usa com
fins malévolos, abre-se com coerência a questão de que punição seria adequada a
atos desta ordem. Há aí a aplicação dum raciocínio preciso: se facas existem e
podem ser usadas para cortar alguém, e se há gente que efetivamente assim as
utiliza, então podem ser punidos pela lei.
A argumentação contra a punição a feitiçaria, se feita com seriedade, deveria se concentrar antes na possível fragilidade dos métodos investigativos cujo fim seria a apuração da eficiência dos atos mágicos. Mas tudo isso é muito perigoso para a ideia do Estado laico, embora, por debaixo das aparências, ele acabe aceitando em alguns casos argumentação de cunho sobrenatural até em julgamentos de crimes contra a vida [8]. É mais confortável taxar de simples superstição a ideia de que atos mágicos podem funcionar, seja em que âmbito for, e falsear de modo pouco honesto os dados históricos sobre as sociedades -- maioria esmagadoras no passado -- que pensavam saber o contrário.
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[1] A verdade é que o ano do Terror da Revolução Francesa matou mais gente do que séculos de Inquisição católica-romana, e com um agravante. Enquanto esta última aplicava um processo minimamente legal e que dava ao acusado boas chances de absolvição e maiores ainda de sanções bem mais brandas que a fogueira, o tribunal jacobino não passava de um açougue voltado contra adversários de toda ordem, especialmente políticos. Porque o tribunal inquisitorial deveria ser, neste contexto, considerado um ''genocídio'' enquanto o mundo ocidental comemora os aniversários da Revolução Francesa é uma das consequências das crenças entranhadas na mentalidade do homem de nosso tempo.
[2] Desnecessário dizer que nenhuma das duas legislações é obrigatória para um cristão. O cristianismo não tem uma shari'a, um sistema civil e penal revelado e aplicado à generalidade dos homens ou a um povo especifico, como ocorre no caso do Islã ou dos hebreus. Ao longo do tempo, a Igreja adaptou a legislação existente entre diversos povos, principalmente o Direito Romano e a Lei Mosaica, aos princípios cristãos com o fito de organizar as sociedades, sem no entanto pretender que fossem esquemas absolutos caídos do céu.
[3] É possível a existência de um caminhão de debates sobre o tema da pena de morte, mas a alegação de que ela só vale para sociedades incivilizadas é, quando muito, uma afirmação retórica, mas desprovida de uma análise objetiva dos fatos e dos argumentos. Pode-se discordar da necessidade da pena de morte, de sua viabilidade etc., mas não da existência de bons argumentos a seu favor.
[4] A criminalização da feitiçaria não é uma invenção de algumas sociedades, mas antes a ordenação em marcos civilizados da prática generalizada de puni-la existente entre as populações dos quatro cantos do globo.
[5] Platão também se mostra favorável na obra à punição daqueles que negassem e ensinassem publicamente contra a existência da Inteligência Divina. Segundo Platão, um Dawkins atual teria de ser visitado pelo ''Concílio Noturno'', conselho de guardiões contra o perigo daqueles que não conseguiam compreender a realidade do Logos. Os tribunais inquisitoriais também só puniam aqueles que publicamente ensinassem a heresia -- deixando de lado os que apenas a abraçavam em âmbito privado ou afirmassem que assim faziam por não entender a doutrina oficial da Igreja. Ou seja, não era por 'credulidade' que a Igreja católica-romana punia o ensino da heresia, mas porque suas autoridades estudavam e concordavam com argumentos com certo background filosófico e platônico sobre o conhecimento, a ética e a política.
[6] Diferente também do que muitos pensam, o nascimento da Modernidade esteve associado com a disseminação tremenda de práticas ocultistas e mágicas, inclusive entre a elite intelectual e política.
[7] Não que o mundo do século XVIII tenha deixado de possuir suas crenças. Voltaire, que usou o tema da Inquisição e da ''caça às bruxas'' como meio de atacar a Igreja e o cristianismo acreditava piamente, por outro lado, na existência de vampiros. Para não falar das mitologias científicas de seu tempo.
[8] Exemplo recente e tipicamente brasileiro: Psicografias aceitas como provas em tribunal
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