Demétrio Magnoli, doutor em geografia e especialista em política internacional, um dos intelectuais a quem respeito por seu conhecimento sobre a História recente e sobre as dinâmicas internas da política estadunidense, publicou na Folha de São Paulo deste sábado, dia 15 de março, um artigo em que analisa a crise ucraniana [1]. Partindo da constatação da inextrincável ligação histórica entre Moscou e Kiev e usando como linha de raciocínio a reação de Angela Merkel, chanceler alemã, para quem Vladimir Putin vive ''em um outro mundo'', o geógrafo confunde descrição dos fatos com uma mera tomada de posição de sua parte.
Segundo Magnoli, Putin está fora da realidade, pois estaria propondo a continuidade do Império Russo e preso a uma perspectiva de História feita pelo alto, pela ação das elites politicas e dos governantes. É desse modo que ele visa explicar os acontecimentos em Kiev, que puseram fim ao governo de Viktor Yanukovich, uma grande rebelião popular, do ''povo'' e outras agências históricas, que fariam das tentativas de revertê-los algo como usar os dedos para conter a água que sai das rachaduras de uma represa prestes a desabar. Nesse sentido, continua o geógrafo, as alegação de que foi a intervenção do Ocidente o elemento determinante na crise ucraniana seriam pouco mais que uma teoria da conspiração, desenvolvida na Rússia após o fim da Guerra Fria e que não seria capaz de ler corretamente o ''mundo real'' [2]. O mundo real, fica claro no texto em seu último parágrafo, é aquele em que os países da Europa desaguam na União Europeia, a Rússia abandona sua identidade e papel imperial, assimila a democracia e instituições liberais, e se inclina de vez para a civilização ocidental, assim descobrindo seu papel no admirável mundo novo. O ''mundo de Putin'', uma nova tentativa de resgatar o antigo Império dos Czares, que teve uma continuidade com o bolchevismo, estaria se desfazendo a olhos vistos. Ainda que mantivesse a Crimeia, a Ucrânia estaria de vez nas mãos da Europa.
O artigo expressa não só a perspectiva de um intelectual próximo à esquerda democrata estadunidense, como também suas típicas expectativas após o fim da Guerra Fria. O desmoronamento da União Soviética abriu algumas possibilidades no futuro da Rússia, ou antes, tornou mais agudas possibilidades que já se colocavam, de maneiras diferentes, desde o início do século XVIII. A primeira delas, preconizada por Magnoli, é se aproximar de vez da Europa, associando-se à civilização ocidental como uma de suas partes constituintes. A ocidentalização russa teve início com o reinado de Pedro o Grande, que adotando modelos absolutistas e uma certa forma embrionária de ''despotismo esclarecido'', aproximou o Império das linhas gerais de desenvolvimento que ocorriam no Velho Mundo. Foi a partir deste período que a elite política do país adotou de forma mais contundente os costumes ocidentais, em um processo que, conforme já disseram alguns, os tornariam cada vez menos russos aos olhos da população do Império. Os partidários da ocidentalização vêem nos resquícios desse passado imperial o empecilho para o fim almejado. O país deveria abandonar este peso e se redefinir como Estado Nacional, o que nunca foi, e, quem sabe, vir a colaborar de modo mais próximo com a União Europeia, tomando o lado da civilização ocidental nos problemas a serem enfrentados neste século XXI [3].
Mas esse futuro não está ainda escrito nem determinado. Dentro do país também existem forças que advogam e agem em prol de outras possibilidades, também elas herdeiras do século XVIII. São aqueles que afirmam que a Rússia é uma civilização própria, irredutível ao Ocidente, embora tampouco possa ser tida como oriental. Herdeiros dos eslavófilos oitocentistas e dos intelectuais que, exilados por causa da revolução bolchevique, construíram um movimento denominado de eurasianismo nos anos 1920, elas vêem não só como reticência o avanço da OTAN pelo leste europeu como defendem abertamente a manutenção de seu espaço geopolítico, em continuidade com a noção de Grande Rússia que Magnoli gostaria que fosse abandonada. Vladimir Putin representa a vitória dessas forças na política interna [4]. Seus elogios à antiga União Soviética, cujo fim ele definiu como ''a maior catástrofe geopolítica do século XX", seu esforço para unir em torno da ideia russa as forças mais representativas da história do país -- incluindo aí os saudosos do passado comunista e os saudosos do passado czarista --, seu apoio ao aumento de influência da Igreja Ortodoxa na sociedade, os limites que impõe à atuação de ONGs e igrejas evangélicas no território, suas intervenções convictas na Geórgia durante a crise da Ossétia e da Abhkázia, e o seu projeto alfandegário de ''união eurasiana'', além do apoio a governos simpáticos à Rússia no entorno imediato do país, deixa evidente a escolha de linha de ação adotada pelo grupo que o presidente representa. Não é possível ler os conflitos internos da Rússia e sua contraposição às ações geopolíticas estadunidenses na Síria e agora na Ucrânia sem levar em conta esse cenário e essa decisão do grupo governante sobre qual deve ser o futuro do país.
Ontem à noite li a notícia de que Vladimir Putin assinou um decreto reconhecendo a Crimeia como um Estado soberano [5]. Ele mostrou assim seu total desassombro em relação às ameaças de sanções dos Estados Unidos e da União Europeia, bem como à propaganda negativa que a mídia ocidental realiza contra ele. O presidente está dizendo que a Crimeia será anexada, independente do que pensam estas potências. Enquanto isso, novas mobilizações populares fazem grandes manifestações em outras regiões do leste e sul da Ucrânia, exigindo o direito de realizar referendos semelhantes e assim também optar pela secessão, e, quem sabe, pela adesão à Federação Russa [6]. Magnoli diz que esses movimentos são ''minoritários'', embora o referendo da Crimeia tenha sido vencido pelas forças pró-russas com mais de noventa e seis por cento de votos. Ele diz também que a ação na Crimeia representa nada mais do que o fim do ''mundo de Putin'', o mundo em que uma Rússia como poder geopolítico diferenciado do ocidental era possível. Mas eu vejo diferente: a ação de Putin reafirma a identidade imperial não apenas no interior do país mas também nas populações russas que vivem hoje fora de seu território. Fortalece definitivamente o projeto eurasiano, do qual o presidente agora não pode mais se afastar já que associado irreversivelmente ao seu governo. E coloca os Estados Unidos e União Europeia em um beco sem saída: suas ameaças econômicas não tiram o sono do velho urso. Só lhes resta a intervenção militar, quem sabe usando como instrumento o governo títere que construíram em Kiev, ou então a humilhação da completa desmoralização em âmbito internacional.
Diferente do que diz Magnoli, não é a primeira vez que Kiev estaria sob domínio ocidental, se voltando para a Europa. Ela já viveu assim durante o domínio católico-romano da Polônia e Lituânia, e também no apoio dado aos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. A novidade é a nova expansão do Império Russo e a incapacidade ocidental de pará-la, a inutilidade de seus esforços para que seus pedidos sejam, até mesmo, levados a sério -- o artigo do geógrafo brasileiro reclama que o governo russo está ''explodindo as pontes de diálogo''. A verdade é que, quando Vladimir Putin assinou na noite de ontem seu decreto reconhecendo os resultados do referendo da Crimeia, ele atravessou o Rubicão. Não há mais volta possível. Seja qual for a ação adotada pelos Estados Unidos a partir de agora, a decisão soberana da Rússia representa o alvorecer de uma nova ordem internacional, ainda que a ferro e fogo [7]. As expectativas e desejos da esquerda democrata, fundas na mentalidade e nas esperanças de Demétrio Magnoli, não permitiram que ele percebesse o momento. Ele preferiu fechar os olhos para as possibilidades do mundo real.
[2] Magnoli não poderia estar desinformado sobre as extensas provas de intervenção ocidental nos acontecimentos em Kiev. Leiam algumas delas aqui: 40 anos jogados fora . A participação ocidental, inclusive com ajuda a partidos neonazistas ucranianos, partidários de uma russofobia desmedida, também podem ser vistos em Violência patrocinada pelos Estados Unidos e Os neonazistas e o governo de Kiev .
[3] Por outro lado, ainda que a ocidentalização da Rússia ocorra plenamente, dificilmente ela seria admitida na União Europeia. Mesmo que seu território fosse diminuído pela nova conformação do país como um Estado Nacional, seu gigantismo impediria sua adesão ao bloco continental, cuja viabilidade é mantida por um equilíbrio muito delicado entre Alemanha e França.
[4] O movimento eurasiano tem em Aleksandr Dugin, filósofo e geopolítico, um de seus maiores representantes na Rússia. Ele se tornou, nos últimos anos, um dos conselheiros de Vladimir Putin, e suas análises tem praticamente antecipado as ações do presidente russo diante da crise ucraniana. Sobre o eurasianismo: A ideia eurasiana
[7] É bom ficar atento para o veredicto chinês em relação ao referendo da Crimeia. Muitos ocidentais apostam que a China teme abrir precedente secessionistas que poderiam vir a afetá-la no futuro. No entanto, o caso de reanexação da Crimeia pela Rússia também favorece o projeto geopolítico chinês, igualmente ''imperial'', de recuperar todos os territórios que perdeu com as intervenções ocidentais que ocorreram no país a partir do século XIX.
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