Em fóruns e comunidades de debates religiosos é muito comum que ateus e agnósticos utilizem as leis e comentários sobre a escravidão nas Sagradas Escrituras, bem como a história das diversas sociedades cristãs, para defenderem que a religião e a moral são inteiramente contingentes e relativas. Alguns costumam partir da ideia geral de que a escravidão é imoral per si; dado que as sociedades judaica e cristã a permitiam, não poderiam ser expressões de uma moral supra-humana, emanada de Deus, concluem. Outros usam esses exemplos apenas para defender que a moralidade é mutável, simples fruto de interações sociais condicionadas. Há aqueles também que, pensando mostrar que a moral pode ser explicada principalmente pelo contexto histórico, visam problematizar os posicionamentos cristãos sobre dilemas morais contemporâneos, como a questão do aborto ou dos direitos homossexuais. Geralmente citam versículos do Pentateuco que regulavam as relações escravistas entre os antigos hebreus, ou ainda a Epístola de São Paulo aos Efésios em que o Apóstolo dos Gentios pede aos cativos para que obedeçam ao senhor como quem obedece a Cristo.
Fora algumas imprecisões históricas e confusões óbvias sobre a doutrina cristã, está também implícito neste discurso uma percepção errônea sobre os propósitos da Igreja. Os equívocos começam quando se diz que São Paulo Apóstolo defendeu a escravidão tal como praticada no mundo romano. Na verdade, nos escritos neotestamentários é muito evidente que os cristãos não consideravam existir nenhuma diferença de status ontológico entre sujeitos livres e escravizados. Diferente do ponto de vista greco-romano, para o qual o escravo era um ser naturalmente inferior e passível muitas vezes de ser tratado como uma coisa, na mentalidade cristã a escravidão era anti-natural, uma degradação da condição de um homem que se encontrava preso por uma relação social que era fruto do pecado [1]. A maneira como os Santos Padres encaravam essa condição era marcada pelos seguintes pontos: a) Os homens eram todos feitos à imagem de Deus; b) a escravidão não fazia parte dos Planos de Deus, mas era consequência do pecado original; c) a libertação de escravos era um ato virtuoso. A essa lista poderia ser acrescentado um item a mais, que é justamente aquele que, no fundo, incomoda os críticos: a Igreja nunca foi exatamente abolicionista. Os santos entendiam perfeitamente que a escravidão estava associada às necessidades das civilizações mediterrâneas e sabiam que seu fim repentino representaria nada mais nada menos que o puro caos [2]. No entanto, é incorreto dizer que a maneira com os cristãos viam a questão em nada influenciou o curso do escravismo. Há historiadores que afirmam que o esvanecimento da escravatura durante o período medieval do Ocidente deveu muito à exigência da Igreja de que o escravo fosse encarado como plenamente humano [3].
Uma confusão comum é quanto à questão das leis hebraicas. A ''acusação'' de que estas leis são relativas não se distancia tanto assim do que afirma a Igreja. Elas foram dadas por Deus como uma preparação para a vinda de Cristo, mas, assim como os ritos do Templo, eram sinais cujo sentido se revelariam por inteiro na Igreja. Neste sentido, é verdade que o Antigo Testamento regula e civiliza costumes que são, em larga escala, frutos da natureza decaída do homem e de um contexto cultural específico. Não há nada ali que torne estas leis e ritos por si mesmos 'eternos', 'absolutos', 'imutáveis' nem tampouco obrigatórios para os demais povos nem muito menos para os cristãos. Ainda que não possam ser inteiramente dissociadas da religião, as normais sociais não são, elas mesmas, o que há de essencial na via espiritual. É claro que a ordenação da coletividade é importante, pois a sociedade deve servir como um espelho que reflita em alguma medida o sentido e os princípios de ordem espiritual, permitindo que os indivíduos que dela fazem parte deles participem em sua existência cotidiana. Mas o Novo Testamento não contém textos que lidem diretamente com esta questão, mas que se colocam em uma dimensão superior e mais interna, focada na relação pessoal entre homem e Deus [4].
E é neste ponto que se dá a maior imprecisão das críticas realizadas. Elas buscam 'medir' a religião e a Igreja por sua capacidade de promover uma vida confortável, próspera e 'humana', uma forma possível de utopia social. Mas este nunca foi o propósito fundamental da fé -- até por que é impossível, dada a própria transitoriedade mundana. O âmbito em que a
Igreja diz atuar é o espiritual. Isto fica muito claro em Jo 8:31 a 34.
Cristo dizia a alguns judeus para que permanecessem
em Sua palavra, acrescentando ''conhecereis a verdade e a verdade vos
libertará''. Eles retrucaram que nunca haviam sido escravos para que
precisassem ser colocados em liberdade. Cristo respondeu-lhes que ''todo aquele
que peca é escravo do pecado''.
Não se trata de trazer para o homem uma liberdade jurídica apenas,
na forma da lei. Afinal, o sujeito pode ser livre assim [e é melhor que seja,
afinal é mais condizente com aquilo que contemporaneamente se costumou chamar de ''dignidade humana'' [5], como ensinaram os Santos
Padres desde o início], mas ao mesmo tempo pode continuar estulto, obscurecido
por suas paixões, atado a seus desejos e ignorância, escravo da corrupção e da
morte. Este é o tema que ocupa o Novo Testamento inteiro, e não a política,
economia, ou assuntos afins nos quais a modernidade fragmenta a dimensão moral e social. Quando São Paulo diz que os escravos e senhores
devem se relacionar assim e assado, não está dando ''aval'' ou ''aprovação'' a
esta relação social específica, e sim ensinando como os homens, ainda que mergulhados neste contexto, poderiam usá-lo como forma de ascese e busca da
verdadeira libertação. Neste sentido, que de um ponto de vista espiritual é o
que realmente importa, um escravo podia ser verdadeiramente uma pessoa livre,
enquanto os senhores podiam continuar verdadeiramente escravos. A própria Epístola aos Efésios, trazida pelos críticos à discussão, deixa isso pra lá de claro, ao continuar ''Senhores, procedei também
assim com os servos. Deixai as ameaças. E tende em conta que o Senhor está no
céu, Senhor tanto deles como vosso, que não faz distinção de pessoas.[...]Pois
não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os
principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as
forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares.''
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[1] É necessário esclarecer que o modelo greco-romano de escravidão não era o único existente no Mundo Mediterrâneo nem muito menos na História. Existiam formas de trabalho compulsório bastante diferenciadas, a maior parte, inclusive, apartada da esfera da produção. Na verdade, a escravidão em Roma também foi principalmente doméstica no início, o cativo participando, assim como outros dependentes sociais, de uma forma de família ampliada cujo centro era o Pater. A diferença e poder deste último bem como a falta de liberdade implicada nas relações familiares era tão grande que o Pai da família podia vender a mulher e os filhos como escravos.
[2] Existiram exceções, no entanto, entre monges, ascetas e em pelo menos um Santo Padre, São Gregório de Nyssa, encarado por alguns historiadores como um exemplo de discurso abolicionista em plena Antiguidade.
[3] Régine Pernoud, historiadora francesa
especialista em Idade Média, que foi curadora do Museu de Reims, do museus de
História de França, fundadora do Centro Jeanne D'Arc e curadora dos Arquivos
Nacionais de seu país, além de premiada pela Academia francesa pelo conjunto de
sua obra, e também especialista em estudos sobre a condição da mulher na Idade
Média : ''Seria ainda necessário assinalar a influência exercida pela doutrina
eclesiástica no regime de trabalho: o direito romano apenas conhecia, nos
contratos de arrendamento ou de venda, a lei da oferta e da procura, enquanto o
direito canônico e depois dele o direito consuetudinário submetem a vontade dos
contratantes às exigências da moral e à consideração da dignidade humana. Isto
devia ter uma profunda influência nos regulamentos dos mestres, que proibiam à
mulher os trabalhos demasiado fatigantes para ela, a tapeçaria de tear alto,
por exemplo; o resultado foram todas aquelas precauções de que se rodeavam os
contratos de aprendizagem e o direito de visita concedito aos jurados, tendo
por fim controlar as condições de trabalho de artesão e a aplicação dos
estatutos. Sobretudo, é preciso apontar como muito revelador o facto de ter alargado ao
sábado de tarde o repouso de domingo, no momento em que a atividade econômica
se amplifica com o renascimento do grande comércio e o desenvolvimento da
indústria. Uma revolução mais profunda tinha de ser introduzida pelas mesmas doutrinas no
concernente à escravatura. Notemos que a Igreja não se ergueu contra a
instituição propriamente dita de escravatura, necessidade econômica das
civilizações antigas. Mas lutou para que o escravo, tratado até então como uma
coisa, fosse daí em diante considerado como um homem e possuísse direitos
próprios da dignidade humana: uma vez obtido este resultado, a escravatura
encontrava-se praticamente abolida; a evolução foi facilitada pelos costumes
germânicos que conheciam um modo de servidão muito suavizado; o conjunto deu
lugar à servidão medieval, que respeitava os direitos do ser humano e apenas
introduzia como restrição à sua lliberdade, a ligação à gleba. É curioso
constatar que o facto paradoxal do reaparecimento da escravatura no século XVI,
em plena civilização cristã, coincide com o retorno geral ao direito romano nos
costumes. Numerosas concepções próprias das leis canônicas passam assim para o direito
consuetudinário. O modo como a Idade Média encara a Justiça é, deste ponto de
vista, muito revelador, porque a noção de igualdade espiritual dos seres
humanos, estranha às leis antigas, aí se manifesta geralmente. É neste sentido
que foram introduzidas, na continuaçaõ dos tempos, diversas reformas, por
exemplo no que respeita à legislação dos bastardos, tratados mais
favoravelmente pelo direito eclesiástico do que pelo direito civil, porque eles
não são considerados responsáveis pela culpa à qual devem a vida. Em direito
canônico, uma pena infligida tem como fim, não à vingança da injúria ou a
reparação para com a sociedade, mas a emenda do culpado, este conceito, também
ele inteiramente novo, não deixou de modificar o direito consuetudinário.'' Mudanças econômicas, políticas e sociais também permitiram a emergência da servidão e a proliferação em muitos lugares de colonos e camponeses livres.
[4] O que é diferente de dizer que esta dimensão social e jurídica estava ausente em princípio e prática das primeiras comunidades cristãs.
[5] Uma ideia que se diferencia da visão tradicional de homem por se fundamentar em aspectos genéricos do indivíduo, ligados à razão instrumental e à esfera sentimental e passional. Os Santos Padres colocavam a unidade do homem no fato de ser um microtheos, feito à imagem de Deus. Já o mundo clássico, de índole fortemente aristocrática, diferenciava o herói e seus descendentes e similares do homem tido por ordinário.
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