sexta-feira, 7 de março de 2014

O Neoplatonismo e o Deus dos Filósofos, ou: uma perspectiva sobre a questão do Filioque

Há uma forte tendência dentro das diferentes comunidades autodenominadas cristãs de empreenderem um diálogo que as aproximem em alguma medida, seja na ação política conjunta, na defesa dos mesmos valores morais ou no entendimento de suas distâncias teológicas. Não vou entrar cá na questão do movimento ecumenista, que, evidentemente, é uma das forças propulsoras deste tipo de diálogo, mas que tem tantos problemas eclesiológicos e acaba caindo em deturpações tão evidentes das doutrinas das religiões envolvidas que se torna, de uma perspectiva ortodoxa, uma das heresias mais perigosas dos últimos tempos. Apesar do problema do ecumenismo, porém, a busca por diálogo não é, per si, um demérito. Ela pode explicitar as diferenças religiosas entre os interlocutores, mostrando-lhes as razões teológicas para a existência das dita cujas e proporcionando aos não ortodoxos uma visão mais clara daquilo que os separa da Igreja. Para que a união tão desejada por muitos possa ser alcançada em qualquer grau apreciável, é necessário colocar na conversa justamente as distâncias, em vez de simplesmente mascará-las e empurrá-las para debaixo do tapete.

Uma das mais antigas e conhecidas 'discordâncias' entre cristãos ortodoxos e católico-romanos está na cláusula Filioque. Os dois primeiros Concílio Ecumênicos elaboraram um Credo, um conjunto sintético de pontos de fé que deve ser declarado por todo cristão, e que é inclusive proclamado por eles em toda Divina Liturgia antes que possam participar da Eucaristia, e cuja alteração foi terminantemente proibida pelos mesmos Santos Sínodos. Nestes princípios fundamentais de fé se encontra a afirmação Trinitária de que o Filho é gerado pelo Pai antes de todos os séculos. Quanto ao Espírito, é dito que Ele procede do Pai. [1]

No entanto, Santo Agostinho, em obras teológicas em que buscava explicar ou descrever a Trindade, acabava fazendo o Espírito proceder tanto do Pai quanto do Filho. A divisão linguística que existia no Império -- e que já afetava o próprio Bispo de Hipona, que desconhecia grego, o que o tornava ignorante em relação às principais obras teológicas e ascéticas dos demais Santos -- e que se acentuou nos séculos seguintes, fez com que o Ocidente repousasse cada vez mais na autoridade e nos escritos agostinianos. Já no século VI, o III Concílio de Toledo, realizado para marcar a conversão do povo visigodo do arianismo para a Ortodoxia, e sob liderança tanto do Rei Recaredo como também de São Leandro de Sevilha, introduzia no Credo o termo Filioque para se referir à processão do Espírito: ''Creio no Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho...'' [2] As invasões germânicas e o futuro Império Carolíngeo, que se pretendia uma nova Roma, ao instrumentalizaram a teologia agostiniana em sua busca por legitimidade, acabaram por tornar o problema ainda mais explícito e transformá-lo em uma das razões para a proclamação, ou antes o reconhecimento, da divisão entre os cristãos e do Cisma do Ocidente.

As tentativas de aproximação entre os cristãos, principalmente aquelas motivadas por agendas ecumenistas, tentaram minimizar essa diferença, quase que encarando-a como uma questiúncula que só se sustentaria por ressentimentos e outras aversões mútuas. A própria Igreja Católica-Romana, quando de seus esforços na criação do uniatismo -- uma forma arcaica de empresa ecumenista -- reconheceu que não havia problema algum com o Credo sem o Filioque, e que os orientais que entrasse em comunhão com o papado poderiam manter seus ofícios litúrgicos sem o acréscimo do termo. Concomitante  a isso, houve todo um esforço teológico para explicar essa adição e interpretá-la de modo condizente à proibição de alteração estabelecida nos Concílios Ecumênicos, bem como ajustá-la a uma visão que fosse palatável para os ortodoxos.

Uma das formas que este esforço católico-romano tomou foi elencar uma série de versículos neotestamentários que sustentariam a alegação de que o Espírito procederia tanto do Pai quanto do Filho. No entanto, o verbo usado no Credo para se referir à origem da Terceira Hipóstase da Santíssima Trindade ocorre uma só vez no Novo Testamento, em João 15:26: ἐκπορεύεται. [3]A palavra se refere à origem eterna da Terceira Pessoa Divina, enquanto as demais passagens, em geral, se referem ao envio do Espírito ao mundo. Há aqui uma distinção entre a dimensão teológica, em sentido estrito, retratada no Credo, e que diz respeito à Trindade em si mesma, e a dimensão econômica, que diz respeito às diferentes relações que Deus pode ter com as criaturas, terreno em que se situa não só a Criação Divina como também a ''história da redenção''.

Esta confusão entre economia e teologia propriamente ditas está expressa também na busca por enfatizar os Padres que, ao longo da História cristã, afirmaram que o Espírito foi enviado ao mundo pelo Pai através do Filho, formulação encontrada por exemplo em São Máximo o Confessor, São Gregório Taumaturgo, São Basílio o Grande e outros. No entanto, em todas estas citações os Padres falavam do envio temporal do Espírito ao mundo, e não de sua origem eterna. Esta reinterpretação católica-romana da cláusula Filioque, cada vez mais em voga -- embora tenha origens já na Idade Média Central -- não altera essa mistura dos domínios econômico e teológico, antes a estabelece definitivamente no Credo. [4]

Os ortodoxos, por sua vez, possuem uma série de objeções ao Filioque. Não só criticam a mudança do Credo, infringindo uma proibição estabelecida em Concílio Ecumênico, como descrevem as dificuldades e mudanças de entendimento de Deus que esta aparentemente pequena alteração promove. Não só há a confusão entre as esferas da Economia e da Teologia, como também um possível rebaixamento do status do Espírito Santo, que se torna assim a única Hipóstase que não seria causa eterna de nenhuma outra. Mas a principal crítica diz respeito às consequências para a correta compreensão da unidade da Trindade. Os Santos Padres sempre afirmaram que esta última era sustentada pela Monarquia do Pai. A Hipóstase do Pai seria a origem eterna das demais, e nela a Trindade teria a Sua recapitulação. Os católico-romanos, ao afirmarem que o Espírito tem Sua origem no Pai e no Filho, tenderam a deslocar a fonte da unidade da Trindade para aquilo que há de comum nas Hipóstases, o que na teologia deles quer dizer a Ousia Divina. Assim, a Hipóstase do Pai deixa de possuir seu caráter distintivo como fonte e origem da Divindade e das demais Hipóstases, e a Natureza comum passa a ser ressaltada sobre as distinções hipostáticas, que, a partir de então, tenderiam a ser descritas a partir de relações no interior desta mesma natureza.

Os católico-romanos tem buscado minimizar esta questão, reafirmando que o Pai é Causa Única no interior da Trindade, mas não conseguem escapar das conclusões óbvias de sua teologia trinitária nem mesmo no catecismo [5]. Mais ainda, esta concepção católica-romana, que tem raiz em Santo Agostinho e foi reforçada pela leitura de Tomás de Aquino, se associa, coerentemente, com uma série de outras assunções ligadas à visão deles de Deus, e que a distanciam consideravelmente da exposição Ortodoxa. Como pretendo tratar em posts futuros, a visão trinitária agostiniana-tomista também está ligada à perda da distinção entre Natureza e Energia divinas, à ênfase em Deus como uma essência absolutamente simples e inteligível, ao mau entendimento da teologia dos Nomes Divinos apresentada por São Dionísio Areopagita, e tem consequências na compreensão agostiniana-tomista da participação em Deus e da visão beatífica, bastante distanciada da noção ortodoxa de theosis, bem como gera problemas para a apreciação da sinergia entre homem e Deus, o que esteve na base da noção agostiniana de Predestinação, uma distorção que mais tarde seria maximizada em movimentos reformados surgidos no ambiente ocidental.

Por outro lado, os ortodoxos muitas vezes interpretaram estas distâncias teológicas como resultado de uma excessiva influência neoplatônica em Santo Agostinho e ao abandono de uma visão patrística fundamentada antes nas Sagradas Escrituras. Sem pretender negar que a teologia dos Padres é fundamentalmente experimental, fruto da participação nas energias incriadas, e fortemente ancorada nos textos sagrados, penso que não se pode negar o uso que fizeram de vários conceitos e perspectivas discutidas pelos neoplatônicos e outras correntes filosóficas do entorno helenista. Isto posto, a história do próprio neoplatonismo bem como a síntese tomista a partir de Aristóteles parecem indicar que, neste campo específico, a diferença se deve principalmente ao recorte que o Santo Bispo de Hipona realiza em certas alegações metafísicas presentes nos principais autores neoplatônicos. Esta ruptura dos elementos principais e fundamentais do ponto de vista neoplatônico acabou afetando a teologia agostiniana, aproximando-a de uma leitura restrita de Platão e preparando sua associação com a ontologia ainda mais restrita de Aristóteles.

Por paradoxal que possa parecer, a cegueira para certa dimensão da metafísica neoplatônica fez com que a teologia agostiniana-tomista afirmasse cada vez mais o Deus dos filósofos e cada vez menos o Deus de Abraão, Isaque e Jacó.

______________________________________

[1] Πιστεύομεν εἰς ἕνα Θεόν, Πατέρα, Παντοκράτορα, ποιητὴν οὐρανοῦ καὶ γῆς, ὁρατῶν τε πάντων καὶ ἀοράτων. Καὶ εἰς ἕνα Κύριον Ἰησοῦν Χριστόν, τὸν Υἱὸν τοῦ Θεοῦ τὸν μονογενῆ, τὸν ἐκ τοῦ Πατρὸς γεννηθέντα πρὸ πάντων τῶν αἰώνων· φῶς ἐκ φωτός, Θεὸν ἀληθινὸν ἐκ Θεοῦ ἀληθινοῦ, γεννηθέντα οὐ ποιηθέντα, ὁμοούσιον τῷ Πατρί, δι οὗ τὰ πάντα ἐγένετο. Τὸν δι ἡμᾶς τοὺς ἀνθρώπους καὶ διὰ τὴν ἡμετέραν σωτηρίαν κατελθόντα ἐκ τῶν οὐρανῶν καὶ σαρκωθέντα ἐκ Πνεύματος Ἁγίου καὶ Μαρίας τῆς Παρθένου καὶ ἐνανθρωπήσαντα. Σταυρωθέντα τε ὑπὲρ ἡμῶν ἐπὶ Ποντίου Πιλάτου, καὶ παθόντα καὶ ταφέντα. Καὶ ἀναστάντα τῇ τρίτῃ ἡμέρα κατὰ τὰς Γραφάς. Καὶ ἀνελθόντα εἰς τοὺς οὐρανοὺς καὶ καθεζόμενον ἐκ δεξιῶν τοῦ Πατρός. Καὶ πάλιν ἐρχόμενον μετὰ δόξης κρῖναι ζῶντας καὶ νεκρούς, οὗ τῆς βασιλείας οὐκ ἔσται τέλος. Καὶ εἰς τὸ Πνεῦμα τὸ Ἅγιον, τὸ κύριον, τὸ ζωοποιόν, τὸ ἐκ τοῦ Πατρὸς ἐκπορευόμενον, τὸ σὺν Πατρὶ καὶ Υἱῷ συμπροσκυνούμενον καὶ συνδοξαζόμενον, τὸ λαλῆσαν διὰ τῶν προφητῶν. Εἰς μίαν, Ἁγίαν, Καθολικὴν καὶ Ἀποστολικὴν Ἐκκλησίαν. Ὁμολογῶ ἓν βάπτισμα εἰς ἄφεσιν ἁμαρτιῶν. Προσδοκῶ ἀνάστασιν νεκρῶν. Καὶ ζωὴν τοῦ μέλλοντος αἰῶνος. Ἀμήν.


[2] Et in Spiritum Sanctum: Dóminum et vivificántem: Qui ex Patre Filióque procédit.

[3] Οταν ἔλθῃ ὁ παράκλητος ὃν ἐγὼ πέμψω ὑμῖν παρὰ τοῦ πατρός, τὸ πνεῦμα τῆς ἀληθείας ὃ παρὰ τοῦ πατρὸς ἐκπορεύεται, ἐκεῖνος μαρτυρήσει περὶ ἐμοῦ

[4] Muito diferente é o tratamento dado à origem do Espírito em outros escritos teológicos dos Santos Padres, em que se mantém a relação entre a Segunda e a Terceira Hipóstase Divinas com a imagem do raio e da radiação divina. O Espírito, como radiação divina, está sempre acompanhado do raio divino, o Filho, e, inclusive, repousa nele [outra imagem usada é a do óleo, o Espírito, ungindo a Pessoa do Rei, o Filho], interação que manifesta a uma só vez tanto o Filho quanto o Espírito. No entanto, estas formulações estão muito distantes do Filioque. Elas são encontradas tanto entre os Capadócios, quanto em São João Damasceno e São Gregório de Chipre, que mantém firmemente, no entanto, que a origem e existência eterna tanto da radiação [Espírito] quanto do raio [Filho] divinos na imagem usada se devem, unicamente, ao Pai.

[5] Podemos ler no site do Vaticano: ''248 - A tradição oriental exprime, antes de mais, o carácter de origem primeira do Pai em relação ao Espírito. Ao confessar o Espírito como «saído do Pai» (Jo 15, 26), afirma que Ele procede do Pai pelo Filho (58). A tradição ocidental exprime, sobretudo, a comunhão consubstancial entre o Pai e o Filho, ao dizer que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (Filioque). E di-lo «de maneira legítima e razoável» (59), «porque a ordem eterna das pessoas divinas na sua comunhão consubstancial implica que o Pai seja a origem primeira do Espírito, enquanto «princípio sem princípio» (60), mas também que, enquanto Pai do Filho Único, seja com Ele «o princípio único de que procede o Espírito Santo» (61). Esta legítima complementaridade, se não for exagerada, não afecta a identidade da fé na realidade do mesmo mistério confessado.''
http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p1s2c1_198-421_po.html


Nenhum comentário:

Postar um comentário