O professor Francisco Thiago Rocha Vasconcelos, Doutor em Sociologia pela USP, publicou no fim do ano passado um artigo sobre a Dissidência Tradicionalista -- conceito cunhado por mim para se referir aos movimentos políticos nascidos nos últimos quinze anos a partir do paradigma Tradicionalista. Mais especificamente, ele se propõe a analisar o caráter político dos grupos Sol da Pátria e Nova Resistência.
"Dissidência tradicionalista: a reinvenção da extrema direita brasileira como aliança ―vermelho-marrom" usa como fonte textos e análises que publiquei no meu blog sobre a História da Dissidência e sobre o duginismo, bem como livros publicados pelo Sol da Pátria. Ao longo dos próximos dias, vou fazer algumas pequenas postagens comentando aspectos do trabalho e dialogando com algumas posições defendidas pelo pesquisador.
O artigo, que pode ser lido na edição de dezembro de 2023 do Almanaque de Ciência Política da Universidade Federal do Espírito Santo, afirma que Sol da Pátria e Nova Resistência são dois contrapontos no interior da Dissidência Tradicionalista, enfatizando as críticas que fazemos ao duginismo e à russofilia. Faz, no entanto, uma ressalva, a de que não é possível distanciar completamente os dois movimentos por ambos usarem como referencial o Tradicionalismo e René Guénon.
Ora, esta avaliação pode ser uma banalidade ou uma tremenda petição de princípio. É petição de princípio, já que não demonstrado em ponto algum do artigo, se imaginar que o Tradicionalismo é, por si mesmo, uma posição política. Mas como o próprio autor admite que "O Tradicionalismo, de fato, pode conduzir a inúmeros caminhos - especialmente nos meios de contracultura, que buscam formas alternativas de vida, e em diversas modalidades de militância política ou mesmo apolítica", só resta concluir que não passa de uma banalidade, algo como dizer que o socialismo e o liberalismo não podem ser inteiramente desconectados, pois ambos são herdeiros do paradigma Iluminista. Ou que o fascismo e o socialismo são ambos políticas de massas. Rocha Vasconcelos está tão somente contornando o fato de que a partir do paradigma Tradicionalista é possível defender agendas políticas contrastantes.
Para defender o argumento, o sociólogo afirma que, apesar de não ser racista, Guénon parecia considerar a falta de unidade racial uma fraqueza da Europa, o que serviria de ponte, segundo ele, para associação com vertentes anti-imigracionistas que temem pelo desaparecimento da raça branca. Mais ainda, ele atribui a Guénon a defesa de uma suposta "autonomia de civilizações étnicas" como um caminho para a restauração da Europa Tradicional. O problema é que estas alegações do pesquisador estão em desacordo com as obras do metafísico francês, incluindo aí a que ele dá como referência [Oriente e Ocidente].
Ora, Guénon não via na ausência de unidade étnica ou racial o grande problema da Europa. Afinal, ele também atribuía esta mesma ausência de unidade racial a algumas das civilizações orientais que ele considerava superiores ao Ocidente, dentre elas a muçulmana [não custa lembrar que Guénon se converte ao Islã] e a indiana [também não custa lembra que a exposição metafísica do francês se fundamenta, principalmente, em doutrinas hindus, como o Advaita Vedanta].
A unidade destas civilizações, segundo ele, se encontrava em dada forma tradicional, e a Tradição seria perene e sobre-humana. Já a unidade europeia seria impossível se baseada na etnia e na raça, já que ele considerava o continente um grande mosaico de misturas étnico-raciais. Para Guénon, a 'retificação' do Ocidente viria ou de um retorno à forma religiosa cristã [processo em que ordens maçônicas e hermetistas desempenhariam um papel fundamental] ou em sua conversão a uma outra forma tradicional.
Não deixa de ser curioso que Rocha Vasconcelos veja em Guénon a possibilidade de defesa de ''políticas anti-imigracionistas'' típicas da direita europeia quando muitos dos opositores do autor francês o veem como um ''agente de islamização'' do continente -- acusação brandida por Olavo de Carvalho a partir de 2006, por exemplo. Afinal, o próprio Guénon, católico-romano durante os anos 1920, em que descreveu as supostas alternativas diante das quais o Ocidente se encontrava, se 'reverteu' ao Islã quando se mudou para o Egito.
Isto revela o quanto Guénon pode ser um personagem complexo, difícil, uma verdadeira esfinge. Se alguém quiser defender algum etnicismo a partir de Guénon, o fará por sua própria conta e risco, porque não há nada que implique isto nas obras e na vida do autor, um francês que escreveu obras baseadas em doutrinas hindus, foi morar no Norte da África, se tornou um Sheykh muçulmano e casou com uma egípcia com quem teve quatro filhos. Enfim, a divergência que o preocupava entre Oriente e Ocidente era de ordem Intelectual, e Intelecto tem um significado em Guénon que parece escapar ao trabalho de Rocha Vasconcelos.
Existem outros pontos do artigo a que voltarei. Para fechar este texto, cumpre rebater uma das alegações da análise do sociólogo, a de que haveria uma aliança entre Sol da Pátria e MBL [Movimento Brasil Livre]. Esta informação é jogada no artigo como se fosse algo dado e a referência é uma participação de Ricardo Almeida em uma live do canal do Youtube do SdP. Ora, nesse mesmo canal temos lives com Nildo Ouriques, do PSOL; Rogério Anitablian, nacionalista que tem se posicionado de modo favorável ao Governo Lula; com o Professor André Martin, que dá aulas na mesma Universidade em que Rocha Vasconcelos fez seu doutorado e que sempre foi simpático aos governos do PT; com Josias Teófilo, cineasta que admira a obra de Olavo de Carvalho; com Fausto Oliveira, autor desenvolvimentista e nacionalista; Aldo Rebelo, político marxista que dispensa apresentações; e muitos outros. Se lives no Youtube significam ''aliança política'' para o pesquisador, qual nome ele daria para chapas como Dilma-Temer ou Lula-Alckmin? Casamento? A alegação não tem qualquer fundamento acadêmico ou analítico sério. Enfim, não há aliança política entre o Sol da Pátria e o MBL, ainda que membros dos dois grupos possam convergir em pautas específicas ou dialogar sobre assuntos de interesse comum.
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