''E Maria passou a ficar no Templo como uma pequena pomba, recebendo seu sustento das mãos de um anjo.''
Proto-Evangelho de Tiago
As ideias da Margaret Barker reproduzem um ''clima intelectual'' muito em voga nos estudos sobre o antigo Judaísmo.
Os historiadores finalmente conseguiram confirmar o pano de fundo da Reforma do Rei Josias e da produção dos textos do que se convencionou chamar de "História Deuteronômica". A Arqueologia demonstrou, sem sombra de dúvida, que entre os séculos IX e VII a.C., os Reinos de Israel e de Judá eram sociedades politeístas no sentido mais comum do termo.
As Sagradas Escrituras se referem a esta situação e a remontam ao fim do Reinado do próprio Salomão, que teria se rendido aos cultos de suas mulheres e concubinas.
A questão é: segundo a ''História Deuteronômica'' registrada pela Reforma de Josias, o politeísmo era uma degradação da Revelação recebida por meio do Santo Profeta Moisés, o Vidente de Deus. A Reforma seria uma maneira de retornar à religião primitiva dos hebreus.
Mas muitos na Academia veem a Reforma de Josias como uma "evolução" de Israel rumo à monolatria, não como retorno a uma situação original. [Algumas teses vão além, e julgam a Reforma como uma reação intolerante e masculinista contra a religiosidade até então vigente.]
Margaret Barker tem de ser entendida a partir daí. Quando ela diz que consegue recuperar os principais elementos presentes no Culto do Primeiro Templo, e que o Cristianismo é um retorno a este Culto Original, ela parte do princípio de que não houve nada antes da religião henoteísta [segundo ela] dos séculos IX ao VII a.C. Não houve Páscoa, Êxodo, Monte Sinai etc.
Não seria necessário entrar em detalhes sobre a possível reconstrução que ela faz do culto do Primeiro Templo para entender que essa hipótese é inaceitável diante do ponto de vista cristão, incluindo aí o ponto de vista de alguns dos autores em cima dos quais ela vai enxergar elementos que confirmariam suas teses.
O culto do Primeiro Templo, segundo uma ótica cristã, estava degenerado desde o fim do Reinado de Salomão. Ele não prestava. Logo, a Igreja não podia ser uma recuperação daquela teologia. Tinha de ser uma superação completa e em consonância com o Sinai.
[Não digo com isso que a Reforma do Rei Josias foi uma maravilha. A interpretação é de que ela apenas adiou a Ira Divina, que teria vindo com a conquista de Israel pelos babilônios. Aliás, o topos da Reforma de Josias deixou um legado interessante do imaginário moderno, e um dia pretendo explorar este tema.]
Só que a reconstrução que Barker se dispõe a fazer do culto do Primeiro Templo tampouco pode ser levada a sério no âmbito histórico em que ela se coloca.
Os problemas metodológicos são muito evidentes. Ela pretende entender o culto do Primeiro Templo a partir de uma releitura dos próprios textos hebraicos a partir da premissa de que foram alterados [ou por vocalizações diferentes dos massoretas e/ou pelo trabalho de escribas da história deuteronômica etc.] com o propósito de esconder o tipo específico de henoteísmo que ela enxerga.
Para além das pressuposições que esta hipótese carrega, as mudanças textuais que Barker faz pra forçar sua tese são arbitrárias, subjetivas, e em alguns casos francamente errôneas.
Por tudo o que se sabe no terreno histórico, não dá pra cravar com segurança nem que a "Rainha do Céu'' fosse Asherá e não alguma outra deusa, como Astarte. Não dá pra cravar tampouco que no período entre IX e VII a.C. os hebreus ainda não identificavam Iahweh com El. Que dirá imaginar uma tríade divina subordinacionista cultuada oficialmente e em segredo pelo Alto Sacerdócio, em que El era Deus supremo e Iahweh uma divindade nacional que tinha Asherá como consorte.
Se as bases não fossem frágeis o suficiente, Barker piora a situação ao apelar para uma "tradição secreta'' que teria sido mantida depois das Reformas 'monoteístas' de Josias, e perdurado até a Era Cristã.
Ela diz perceber as reminiscências dessa tradição em uma literatura que foi produzida meio milênio depois [em alguns casos, mais de um milênio depois] da Reforma de Josias, como o Livro de Enoch, escritos dos Santos Padres da Antiguidade, e apócrifos cristãos.
Como História acadêmica, o valor do empreendimento está irremediavelmente comprometido. Fica bem melhor no terreno da teologia e das narrativas esotericistas, um tipo de literatura que tem alternativas com credenciais que considero muito mais legítimas do que a imaginação de Margaret Barker.
A busca por ler o cristianismo pelas lentes do judaísmo do Segundo Templo é bastante válida. Ou pelo menos o que deveria ser o culto de acordo com os movimentos religiosos da Palestina daqueles tempos, já que não dá pra apelar para representantes desta ou daquela corrente de modo totalmente impune. [E eu admito considerar muito mais fundamentado ler os primórdios do cristianismo sob a lente de correntes que aceitavam o culto do Templo do que daquelas que o consideravam maculado.]
De modo que Barker se encontra em terreno muito mais sólido. Outros pesquisadoresd já apontaram os vínculos entre a Teologia de São João e os sacrifícios pascais no Templo, das associações da eucaristia com as tradições sobre o maná do deserto e dos sacrifícios incruentos [pães da proposição], e ainda da Liturgia cristã com os banquetes celestes dos anciãos que subiram ao Sinai e com o sacerdócio levítico, com noções de escatologia realizada presentes no primeiro século, ou ainda com o misticismo da Merkabah, ou as visões proféticas de Daniel.
Mas como se comprometeu a apontar a continuidade da ''tradição secreta'' que ela própria reconstruiu, Barker acaba fazendo extrapolações enviesadas e também arbitrárias em cima de textos como o apócrifo Evangelho de Tiago, hiper-interpretaçõs de prováveis rasuras de Manuscritos do Mar Morto, e distorções [problemáticas para uma historiadora que se pretende séria] de escritos de Fílon de Alexandria, sem conseguir manter consistência nem mesmo com suas próprias alegações sobre o culto do Primeiro Templo.
Aliás, a alegação de Barker de que Fílon conheceria os ensinamentos secretos dos Altos Sacerdotes porque ele próprio seria de descendência sacerdotal me faz pensar se ela refletiu sobre as implicações pra suas ideias caso o sumo-sacerdócio e o Sinédrio fossem mesmo dominados pelos saduceus -- que é a hipótese mais sólida diante das evidências que temos.
Desnecessário apontar a polêmica presente em alguns dos escritos cristãos mais antigos [cartas de São Paulo, Evangelhos canônicos, Atos dos Apóstolos] com os saduceus, principalmente sobre a questão da Ressurreição dos Mortos e da existência de poderes angélicos.
Mesmo que Barker apele e tente ver a Ressurreição de Cristo como uma ''ascensão mística'' em que o Iniciado se identifica com ''Poderes Angélicos" -- algo que não se pode extrair dos escritos canônicos, e daí que ela busque fundamentação em escritos gnósticos do século III, como o ''Evangelho de Filipe" --, isso não resolveria o problema dela com os Saduceus, a não ser que se deseje super-interpretar as crenças deles, que mal conhecemos exceto justamente pelo que se costuma dizer nos escritos canônicos, em Josefo etc.
Enfim, se já seria complicado demonstrar o que ela diz ver em apócrifos ou, por exemplo, na Epístola aos Hebreus, que dirá extrapolar isso para uma abordagem da Igreja dos primeiros séculos, daí para uma ''tradição secreta'' mantida pelo Alto Sacerdócio, até chegar no suposto culto triádico subordinacionista do Primeiro Templo, que ainda por cima seria a Tradição hebraica original.
História? Não. Tour de force para construir uma mitologia esotericista um pouco mais competente que a ''média'', certamente mais bem informada, e sem dúvida com intuições interessantes. Mas não passa disso.
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