domingo, 26 de junho de 2022

Alguns dos desvios na Noomaquia de Dugin

 "Ela é a causa de toda beleza e magnificência, e de tudo o que a humanidade honra em seus hinos. Todo louvor deve ser dedicado a ela. Na verdade, ela deve ser considerada como causa da existência mesma dos seres humanos. E não apenas deles, mas é também por causa da Bem-Aventurada Virgem que o céu e a terra, o sol e o universo inteiro foram trazidos à existência e estabelecidos''

São Nicolau Cabasilas


O tema mítico da Luta contra o Caos, presente em diversas civilizações, mas particularmente forte nas indo-europeias


Uma das características da Noologia de Dugin é a ênfase no símbolo cosmogônico e iniciático da “luta contra o Caos”. Esta linha de estudos do russo é apresentada como uma “Noomaquia”, ou seja, um confronto entre diferentes “matrizes mentais” [Diferentes Logoi] partilhadas pelos povos, e, consequentemente, pelas civilizações, Estados e religiões.  Segundo essa linha de raciocínio, o Nous poderia se apresentar por meio de três paradigmas, três Logoi, que disputam a preeminência no imaginário de uma população e, neste conflito “titânico”, geram uma multiplicidade de combinações, que estariam, por sua vez, por trás de todas as formações sócio-culturais.

 

1. A Metafísica da Noomaquia

 Existem ressonâncias metafísicas e esotéricas nesta terminologia. Nous é o Intelecto em seu sentido superior, intuitivo, “ativo”, e identificado com a própria Pessoa [Hipóstase] na Tradição cristã-ortodoxa. Tem natureza supra-individual [universal], na terminologia guenoniana, mas faz parte da manifestação. O Logos, por sua vez, se identifica com a representação simbólica que emerge do Nous, que projeta e ordena um mundo [sócio-cultural] [1]. Dugin liga estes conceitos ao Dasein, de Heidegger: ou melhor dizendo, ao Dasein tal como tratado por Henry Corbin, que o interpreta a partir da mística sufi e do ismailismo xiita. A Noologia também faz uma ponte com as estruturas de Imaginário, de Durand: o regime diurno é associado ao Logos de Apolo; o regime noturno místico corresponderia ao Logos de Cibele; e o noturno dramático ao Logos de Dioniso. Ou seja, Dugin mobiliza Durand para falar de um terceiro Logoi, o de Cibele, que segundo ele se caracteriza pela ausência completa de aspectos viris ou masculinos [ou ainda, solares]. Estes temas nos levariam muito longe, já que dão margem a uma série de desdobramentos, mas o meu propósito nesta postagem é bem mais simples e limitado. Abaixo, um trecho esclarecedor de conferência proferida pelo russo em Belgrado, em 2018:


"Aqui estamos lidando com uma imanência absolutamente materialista, diferente da imanência de Dioniso que, pelo contrário, é espiritualista, pois Dioniso é o centro entre espírito e matéria, não dado pela soma desses dois polos, mas preexistindo em relação a eles. 

O Logos de Cibele é a ideia de que a Grande Mãe cria e mata tudo. Não é a eternidade (Apolo) ou o círculo (Dioniso), mas algo que age à sua maneira, com poder cego e absoluto. Uma forma de progresso: crescimento do inferior para o superior. Na perspectiva apolínea, Cibele lidera a batalha titânica das forças ctônicas contra o Céu e o Reino do Logos masculino de Apolo. O Logos de Cibele é a criação de um novo mundo, que é titânico, ctônico e, em certo sentido, feminista, não porque haja igualdade entre homem e mulher -- uma ideia muito mais dionisíaca -- mas porque existe o domínio absoluto da Mãe sobre todos."

Cibele, o princípio feminino cego e voraz, sem qualquer traço de virilidade, que pare e engole sem parar a manifestação. Para Dugin, é na verdade um "não-Logos"


Embora insista que não há hierarquia de fato entre os Logoi, é evidente que o russo adota uma “perspectiva apolínea”, para usar seu próprio jargão. Sendo um platonista político, ele enxerga o regime diurno como transcendência, um mundo das ideias, de caráter universal, geométrico, arquetípico [em um sentido metafísico] e masculino. É o mundo do Pai e do Herói, da distinção, do isso OU aquilo, do imutável, da eternidade -- todos valores afirmados como positivos pelo russo. A perspectiva apolínea é a Tradição, vertical, hierárquica, luminosa, e ksatryia ["luta contra a morte"]. 


"Para nós, a Tradição é completamente apolínea. Platão faz parte dessa cultura. Praticamente toda a cultura grega, antes de Platão e depois de Platão, a cultura romana, iraniana, indiana e eslava, todas essas tradições são apolíneas e para nós é absolutamente claro que o mundo é assim, que nenhum outro mundo é possível, porque nós vivemos no mundo apolíneo, nossas tradições são baseadas na visão apolíneas."

 

No duginismo, a Tradição é "Apolínea", o que significa para ele ser Patriarcal, masculina, guerreira, maniqueísta e arquetípica


Dioniso, por sua vez, é o “sol na imanência”, o mundo do andrógino, que já lida com a forma substancial [a mulher, o corpo], que tem aqui o papel de amante. Dioniso atravessa a noite [também associada à mulher] em busca de uma nova aurora. Cibele, por sua vez, é o mundo sem virilidade, da castração, hegemonizado pelo símbolo da Mãe. É a imanência sem transcendência, das forças cegas da natureza que engolem e destroem todas as individualidades para logo depois parir novamente, uma dimensão dominada inteiramente pelo feminino. A ressonância com o tema Tradicionalista dos três mundos é clara nesta exposição. Apolo é o foco noético no plano dos Universais, Dioniso é a ênfase no Mundo Intermediário [ou Mundus Imaginalis] e Cibele é a manifestação individual encarada como prisão das paixões ou exílio cósmico.

O tema da “luta contra o Caos” está no cerne da própria ideia de “Noomaquia”, uma guerra entre os Logoi. Para o russo, “Já existe uma forma de contradição entre Apolo e Dioniso. Mas entre Cibele e Apolo, as contradições atingem o ponto mais alto, pois existe uma grave titanomaquia ou gigantomaquia entre duas visões contrárias. Dois logotipos lutando. O sentido titânico e ctônico de Cibele tenta sitiar o céu enquanto os deuses apolíneos tentam defendê-lo.” Desnecessário dizer que o “assalto aos céus” feito pela Grande Mãe Terra repercute o tema das forças do Caos buscando engolir a ordem estabelecida pelo Deus criador ou demiurgo. Esta criação, ou ordem, foi imposta a partir da própria morte do Monstro aquático, o Dragão Primordial, feito realizado pelo Herói Solar, um tema cosmogônico que no plano iniciático se liga ao fim da fase alquímica do Nigredo, ou, nas palavras de Corbin, à saída da cripta cósmica.

 

 2. A Tradição nega a perspectiva dualista

 O grande problema é que a absolutização do tema do chaoskampft, em uma polarização entre o masculino como eternidade e o feminino como como “Caos”, distorce a Tradição e faz com que se caia em um tipo de Platonismo distorcido e “misoginia” espiritual incompatíveis com o esoterismo. Ora, o SER [o Ishwara na Índia], princípio de toda manifestação e transcendente à Existência, não é só masculino ou feminino, não é só 'espiritual' ou 'substancial', mas contém tanto as energias ativas quanto as passivas cuja interação gera todos os modos da Existência por meio dos pólos Purusha e Prakriti. O SER é avyakhta, ou seja, imanifesto, assim como também o são os dois princípios cosmogônicos citados.

 


O Andrógino Hermético: Transcendência e Totalidade

Se nos ativermos ao simbolismo egípcio para expressar a mesma ordem de ideias, vemos que não há diferença essencial entre o Sol e seus raios, estes últimos encarados como Poder de Ra, e vistos sob representação feminina. Já o monstro-serpente Apófis, chamado “senhor do Caos”, e que ataca a barca solar quando de sua travessia pelo Am Duat, nasce do cordão umbilical de Ra, não tendo qualquer precedência sobre ele. Não há, nesse sentido, um "caos" metafísico em oposição ao Ser, forma de dualismo que se constitui num Platonismo distorcido, ou seja, no gnosticismo propriamente dito, e que está associado ao regime diurno por Durand, que chama atenção para a posição maniqueísta sustentada nesta estrutura do Imaginário.

 

Voltando aos princípios cosmogônicos e cosmológicos do 'Espírito' e 'Substância', ou Purusha e Prakriti: da relação de ambos surge toda a manifestação, tanto nas tendências de expansão em um mesmo "grau de ser" ou mundo, quanto na tendência ascendente e descendente pela Existência Universal. A representação erótica ou unitiva salta aos olhos [2]. Na Índia, é comum simbolizar esta relação por meio da Trimurti e suas consortes [shaktis], ou ainda por meio dos vetores que Purusha gera em Prakriti. Bhrama está associado à guna Rajas, expansiva; Vishnu a sattva, ascendente; Shiva à tamas, descendente.

 

É importante observar que não tem sentido tampouco fazer do vetor sattva sinônimo absolutizado de masculino e de tamas sinônimo absolutizado de feminino. As gunas são “vetores” em Prakriti gerados pelo Purusha no plano cosmogônico, sob a forma de Brahma, Vishnu, Shiva.[3] Todas as gunas estão associadas, de certa maneira, aos seus pares masculinos na Trimurti. Todas as três gunas podem levar a apegos e distanciamentos da liberação final [não apenas tamas, mas sattva e rajas também]. E de modo similar, todas as três são essenciais no processo de iniciação.

 

Lalita Tripura Sundari, "Bela na forma das Três Citadelas", fonte última do desejo puro, forma de Parvati ligada ao Eros


 3. Porei ódio entre ti e a mulher...” [Gênesis 3:15ª]

 Mas o simbolismo aplicado por Dugin aos modos de Imaginário de Durant obscurece este ponto, criando uma dualidade valorativa em que o feminino é percebido como "mal", principalmente sob seu signo materno ['Logos de Cibele']; e o masculino como "exemplo", principalmente sob o signo heróico-guerreiro ['Logos de Apolo']. Esta representação [chaoskampft, a luta contra o Caos, de raiz indo-europeia] é apenas uma das possíveis na cosmogonia/iniciação e não sintetiza o processo. Há de se lembrar que “nas cinzas que ficam no fundo do sepulcro encontra-se o diadema de nosso Rei”. [Livro de Artéfio].

 

E há outros pontos: em diversas fases do processo, é o princípio feminino que toma a liderança. E é por meio dele que se libera os poderes vitais essenciais a uma ascensão que depois será cristalizada em nova forma. E toda a dinâmica pode ser melhor expressa por um simbolismo de conjunção sexual, casamento alquímico e androginia. Como se trata da integração de energias masculinas e femininas, homens e mulheres tem de buscar desenvolver as qualidades correspondentes do sexo oposto. [4] A ênfase descabida na ‘luta contra o Caos’ sob a particular interpretação duginiana dos regimes do Imaginário, transpostos para uma dimensão "noética" e civilizacional, traz um conjunto imenso de problemas que começa com a desvalorização das qualidades tipicamente femininas [como a própria maternidade, inclusive, mas não só]. Daí fenômenos bizarros em certo campo político, como o culto a corpos de homens musculosos, tendências sado-masoquistas como forma de compensação psicológica, e masculinismo estéril, com dificuldades imensas de se relacionar de modo saudável com o sexo oposto.

 

Diferente do que imagina o Platonismo distorcido, o homem tem de se tornar 'esotericamente' um tanto "feminino" também se quiser ascender pelos graus do ser. [5] E como cristão, Dugin tem de saber disso: A Panagia, que é filha de Deus, é também Esposa do Espírito Santo e Theotokos; além de Pessoa Humana mais elevada, Mãe dos Santos, e humanidade deificada do próprio Cristo, acima dos próprios Anjos, Rainha do Universo, como disse o Bem Aventurado Santo André de Creta:

 

“Hoje, Ele transporta de sua morada terrena, como Rainha da raça humana, Sua Mãe Sempre Virgem, de cujo ventre, Ele, o Deus vivo, assumiu a forma humana.”


A Panagia, Theotokos [epíteto que enfatiza a Maternidade], Rainha de Todos





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[1] O Logos não se confunde aqui com o Verbo Divino. Dugin se refere a uma dimensão no interior da Existência, e não no plano super-essencial da Santíssima Trindade.


[2] Casamento como via de união, ou: o caráter icônico do casamento cristão


[3] Brahma, Vishnu e Shiva são aspectos do Purusha em seu abraço amoroso com Prakriti. A Tríade supra-essencial no Vedanta é chamada de Sat-Cit-Ananda.


[4] "A Igreja ensina que devemos gerar Cristo dentro de nós de um modo místico, assim como a Santíssima Virgem Maria a gerou em seu corpo de modo físico.  A Santíssima Virgem Maria adequa sua vontade à Vontade de Deus, se torna esposa do Espírito Santo, e recebe em si mesma o Verbo Encarnado. Nesse sentido espiritual, todo homem tem de se fazer mulher, tem de investir em qualidades do sexo feminino, tornando-se receptivo a Deus e formando, a partir da Graça Divina que o fecunda, Cristo em seu coração, e manifestando-o no mundo por meio dos atos de sua vida. " Veja: O sacerdócio que é também feminino. [clique no link.]


[5] No Cristianismo, a Encarnação do Verbo se dá sem participação masculina, e depende do assentimento da Panagia à mensagem divina trazida por Gabriel. O 'sim' de Theotokos é comemorado na Festa da Anunciação


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