"O Novo Império deve ser eurasiático, continental, e no futuro Mundial. A batalha dos russos pela dominação mundial não chegou ao fim."
A. Dugin
“Foundations of Geopolitics” é usado como objeto de propaganda por alguns discípulos e simpatizantes de Alexandr Dugin. Segundo se conta, a obra impactou profundamente o establishment militar e o aparato de inteligência russo, e foi lida sistematicamente entre os planejadores de política externa e no alto escalão das Forças Armadas. O próprio Dugin alimenta esta fama: depois do início da invasão à Ucrânia, em fevereiro deste ano, deu entrevistas descrevendo como suas ideias geopolíticas se tornaram influentes entre os oficiais superiores russos a partir do fim dos anos 1990.
Não vou adentrar a espinhosa questão sobre se Dugin é de fato o cérebro por trás das linhas
geopolíticas de Putin, ou se é, alternativa bem mais provável, um dos
integrantes da ala eurasianista que se impôs aos ocidentalistas [ou
“europeístas”] e pan-eslavistas [ou “eurasianos nacionalistas”]. Esta ala, que não
foi inventada recentemente, mas mergulha fundo na história intelectual do país, alega que a
Rússia é não só uma civilização à parte, formada por uma intersecção de
elementos bizantinos [Império Romano do Oriente], eslavos e turco-mongóis, como
deveria se expandir em aliança com outras potências da Eurásia com o objetivo
de furar o cerco norte-americano à Ilha-Mundo.
O ponto principal deste pequeno texto é expor algumas das linhas gerais do pensamento estratégico de Dugin, sem entrar em muitos detalhes, que podem e devem ser tratados em outras ocasiões. Antes, cabe esclarecer dois pontos.
Primeiro, alguns poderiam frisar que a obra em questão foi escrita em 1997
e reeditada até início dos anos 2000. Representaria, assim, a forma como Dugin enxergava estes assuntos há vinte anos. É uma observação importante, e eu não me
espantaria caso o sociólogo tenha mudado de posição quanto a vários aspectos da exposição. Mudar de ideia diante de novos ou velhos problemas, se adaptando à realidade,
ou superando insuficiências e limites das próprias teorias e abordagens, é
sinal de inteligência e boa forma intelectual e política, não uma traição à
própria causa.
Mas não há nenhum texto com a mesma abrangência, escopo e detalhamento negando os pontos principais da análise realizada por Dugin em “Foundations of Geopolitics”. É legítimo considerar que ele continua esposando os elementos mais substanciais da obra. Inclusive, muitos estudiosos do pensador russo vão reconhecer no livro, de imediato e de modo muito fácil, os temas mais constantes em seu discurso atual.
Outro possível
contra-argumento é de que se trata de escrito anterior à Quarta Teoria Política, que veio à tona em 2009, e da Noomaquia, publicada na
década passada. Mas nem um nem outro são propriamente obras de geopolítica.
Pelo contrário, elas buscam legitimar, sustentar e elaborar teoricamente um
mundo multipolar -- no sentido em que este último faz sentido para Dugin; ou seja, uma multiplicidade de civilizações com parâmetros axiológicos e perspectivas míticas e ontológicas diferentes. Elas Podem se lidas como esforços para substanciar a estratégia
geopolítica delineada em “Foundations”, sem necessidade de alterá-la
drasticamente. Como Dugin dizia há vinte e cinco anos, e continua repetindo em
entrevistas e textos recentes, o cerne da geopolítica russa repousa no
Eurasianismo, na oposição irredutível entre Terra-Mar, e em uma forma de
“destino manifesto” russo, um povo que só faria sentido quando percebido por meio
de uma ótica messiânica, escatológica e imperial.
Até que se prove o
contrário, “Foundations” permanece como a obra magna da geopolítica de Dugin e
do Neo-Eurasianismo, e a principal exposição desta estratégia para a formação de um novo sistema internacional. Conheçamos algumas de suas linhas gerais.
1. 1. A oposição Terra vs Mar
Boa parte do livro apresenta uma narrativa e exposição sobre a Geopolítica
Clássica. E é a partir dela que o pensador russo afirma a existência de uma oposição essencial na estrutura geopolítica, o confronto entre Terra e Mar, que já
estava dado em MacKinder e Carl Schmitt. Leitores menos atentos de Dugin
devem ter cuidado com este ponto: o russo radicaliza esta distinção, lhe conferindo uma dimensão
esotérica ligada a certo tipo de Tradicionalismo e algumas crenças ocultistas
do século passado.
A oposição entre Terra e Mar é, para Dugin, muito mais do que uma contraposição entre potências terrestres e marítimas, ou culturas arcaicas e cosmopolitas. Ela tem uma dimensão espiritual. É uma “Guerra nos Céus” que se manifesta em todos os campos da vida humana, incluindo o arcabouço cultural dos povos e as vias espirituais e religiosas [No fundo, este é o tema real da Noomaquia, conjunto de livros que parte da mobilização do conceito de Imaginário de Gilbert Durand].
Os poderes civilizacionais e geopolíticos que ele identifica com o Mar são a
“Eterna Catargo”, que se opõe à “Eterna Roma” -- epíteto destinado à Terra. Dugin usa também os mitos esotéricos de “Atlântida” e de
“Hiperborea”, temas importantes em Guénon, para se referir à mesma dicotomia fundamental. A primeira, símbolo da Tradição decaída [afundou no mar,
permitiu-se cercar pelas forças cósmicas simbolizadas na mulher, se liquefez,
perdendo sua forma e aderindo ao polo substancial da existência]. A segunda, é
símbolo do “eterno Norte”, a terra primordial, edênica, e dourada da raça
semi-divina, que, como a Eurásia, é inabalável e inalcançável pelos “poderes
marítimos” [percebam a leitura esotérica da expressão].
As civilizações do
Mar cultuam a Grande Mãe, a Natureza, os deuses ctônicos, os poderes cósmicos femininos, e
se expressam por tendências igualitárias, predominância do comércio e do
cosmopolitismo, e por certa concepção materialista do mundo e da História. [O Mar é encarado por Dugin sob o símbolo do domínio da Mulher.] Estas forças espirituais se tornaram hegemônicas no mundo contemporâneo, na
forma da sociedade de massas, do capitalismo, do individualismo e do homo
economicus. Geopoliticamente, são representadas por diversos países, tais como
a Inglaterra e a Holanda, que formaram impérios talassocráticos. Mas sua encarnação definitiva são os EUA e o domínio do Oceano. As Civilizações da Terra, por sua vez, são arcaístas, vinculadas à
própria terra e tradições [‘provincianas’], hierárquicas e patriarcais,
holistas e militaristas. São manifestações de forças espirituais que tem sua
encarnação em diversos povos, tais como o alemão e o iraniano. Sua região
sagrada por excelência é a Eurásia, e sua encarnação atual, desnecessário
dizer, é a Rússia. [Estas civilizações são vistas pela simbologia do Pai, do Herói, do Guerreiro.]
É impossível
compreender a Geopolítica de Dugin sem esta dualidade
irredutível como pano de fundo. Para ele, não há possibilidade de conciliação humana entre estes dois pólos,
nenhuma neutralidade. Ou é Terra ou é Mar, tertium non datur. A distinção entre
amigo e inimigo, desenhada por Schmitt, atinge aqui seu ponto culminante,
transferida para a própria dimensão espiritual, transformando-se em chave de
leitura política e geopolítica. Daí a tendência de Dugin de realizar
reducionismos dicotômicos em todas as suas análises, reunindo todos os
múltiplos fatores e elementos de determinada situação a dois campos opostos que
funcionam como antítese insuperável um do outro. Impossível negar que tal empreendimento
tem uma eficácia retórica enorme.
“A fórmula metodológica mais comum e compartilhada é a afirmação do
dualismo histórico fundamental entre Susha, Telurocracia, o “Nomos” da Terra,
Eurásia, Coração Continental, a “Terra do Meio”, a Civilização da Ideocracia, o
“Eixo Geográfico da História”, de um lado; e o poder do Mar, o “nomos” do Mar,
o Atlântico, o mundo anglo-saxão, a civilização comercial, uma “ilha do
crescente externo”, do outro lado. Esta pode ser considerada a lei principal da
Geopolítica. Fora do postulado deste dualismo, todas as demais conclusões
perdem o significado. [...] Em importância, ela é comparável à lei da Gravidade
na Física.” [Parte 1 - Capítulo 10]
2. 2. A dominação mundial russa vem através
de um novo Império
Como apontei, Terra
e Mar não são meras abstrações no discurso de Dugin, mas verdadeiras potências
metafísicas em um confronto espiritual que se manifesta de diferentes formas.
Na Geopolítica, foi MacKinder [com as correções ainda mais pró-russas de
Savitsky] quem desnudou de forma mais direta esse antagonismo primordial. Os
poderes atlânticos anglo-saxões são inimigos da área central da Ilha Mundo
[Eurásia], que ele considera o “pivô da História” e a “fortaleza do poder
terrestre [continental]”.
Dugin não está
sendo apenas retórico quando escreve em postagens de redes sociais que “a
Rússia é a civilização da luz”, e tudo o que é “anti-russo” [ou russofóbico -- aliás, a estratégia de qualificar de russofóbica a oposição europeia às ações geopolíticas russas já está delineada neste livro]
não passa de trevas. No fim das contas, ele acredita realmente nisto. Como
coração da Eurásia, a Rússia é a encarnação do Norte Simbólico, e representa o
eixo vertical, o Pai, o Poder Masculino, e a Ideia [Platônica]. Seria a área de maior
dinamismo geopolítico, destinada a impulsionar os demais poderes continentais
na formação de um Império Telurocrático que rompesse o cerco do Mar.
Embora tenha tratado o assunto com maior acuidade em outras obras [vide “O Mistério da Eurásia”],
abundam em “Foundations” menções a este “Destino Manifesto” da Rússia, a
“Terceira Roma” do discurso escatológico ligado ao Patriarcado de Moscou. A
posição Neo-eurasiana, neste aspecto, segue boa parte do discurso de Gumilyov
[temperado por outras contribuições, e lidos a partir de uma interpretação
Tradicionalista], que firma a ideia de “eixo geográfico da História” não apenas na
realidade da Eurásia “oriental”, mas também na especificidade étnica
[Grão]-Russa.
“Em relação à Rússia-Heartland, todos os outros Estados e terras
eurasianas são costeiras, Rimland. A Rússia é o “Eixo da História”, porque a
“civilização” se revolve ao seu redor, criando suas formas mais acabadas,
expressivas e surpreendentes não na fonte vivificante continental, mas na “zona
costeira”, na faixa crítica, em que a terra do Sushi faz fronteira com o espaço
da Água, mar ou oceano. De um ponto de vista estratégico, a Rússia é uma
estrutura territorial independente, cuja segurança e soberania é idêntica à
soberania e segurança do continente inteiro. Isto não pode ser dito de nenhum
outro poder eurasiano, nem da China, nem da Alemanha, nem da França, nem da
Índia. Em relação aos seus vizinhos costeiros ou a outras “ilhas” ou
continentes, a China, a Alemanha, a França, a Índia etc. podem agir como forças
continentais; em relação à Rússia, sempre permanecerão como “faixas costeiras”,
como Rimland, com todas as suas consequências políticas, culturais e
estratégicas correspondentes. Só a Rússia pode falar pela Heartland com
completo fundamento geopolítico. Somente seus interesses estratégicos são não
apenas similares aos interesses continentais, mas estritamente idênticos a
eles.” [Parte 3 – Capítulo 1]
Fácil perceber que para Dugin a Rússia é, na História
atual, a expressão da Hiperbórea, do Espírito – que segundo a particular
interpretação platônica-tradicionalista-evoliana do russo, é a expressão do
Poder Espiritual Masculino, Solar e Apolíneo. Em relação à Rússia, até mesmo o
restante da Eurásia é “feminina”, “passiva”, “costeira”, ficando do lado do
polo ‘substancial’ da existência. Mais ainda, os interesses das forças
continentais, e portanto da Terra, são idênticos aos interesses russos. Nenhum
outro Estado tem este poder.
Ora, esta linha de raciocínio tem consequências óbvias. Para Dugin, a única forma de se contrapor ao Império Talassocrático mundial, liderado pelos Estados Unidos, é por meio da construção de um Império Telurocrático, dando concretude ao maior medo de MacKinder. A estratégia de resistir ao cerco atlantista à Eurásia, libertar o continente, e afirmar mais uma vez o Poder Terrestre, é uma estratégia comandada teórica, política e militarmente pela Rússia, único povo que pode falar integralmente a favor do coração da Ilha Mundo.
Além disso, dada a cultura e
posição específica russa, não existe qualquer outra possibilidade para o país
se não reunir um Império em torno de si, considerado como “Eixo da história”.
Dugin tem de ser lido nesta clave quando declara que a Rússia está “lutando por sua sobrevivência” na
Ucrânia. Segundo ele, os russos não tem alternativa
senão construir o Império Eurasiático, porque a Rússia é a expressão acabada da Terra em
sua missão e expansão universal, em seu confronto arquetípico com o Mar. A
Rússia é o “Império do Fim”, a instanciação da “Ideia Absoluta” de Hegel:
“O povo russo está certamente entre os
povos messiânicos. E como todo povo messiânico, tem um sentido universal que
compete não só com outras ideias nacionais, mas com outros tipos de
universalismo civilizacional. K. Leontiev e os eurasianos russos desenvolveram
plenamente esta ideia. Apesar dos problemas, períodos de transição e
cataclismos políticos, o povo russo sempre manteve sua identidade messiânica e,
portanto, sempre permaneceu como sujeito político da História. [...] É absurdo
considerar que o pronunciado e sistemático “expansionismo” dos russos seja um
acidente histórico. Este “expansionismo” é uma parte integral da vida do povo
russo e está intimamente ligado à natureza de sua missão civilizatória. Esta
missão carrega um certo “denominador comum” que permite aos russos integrar uma
grande variedade de realidades culturais em seu Império. [...] O povo russo
procede em seu ser de uma perspectiva soteriológica ainda mais global, que, no
limite, tem significado universal. Isto não diz respeito à expansão ilimitada do
“espaço vital” dos russos, mas sobre o estabelecimento de um tipo especial de cosmovisão
“russa”, que é acentuadamente escatológica e reivindica a palavra final da
história mundial. Esta é a tarefa suprema da nação como “povo portador de Deus”. [Parte 4 – Capítulo 2]
Daí que, para
Dugin, a manutenção da identidade russa, e portanto sua sobrevivência como
povo, só é possível na construção do Império Eurasiático, que tem, no fundo,
propósito universal.
“Diferente de Roma (a primeira Roma), Moscou e a Rússia devem seu
impulso imperial a um profundo senso escatológico e teológico. Hegel
desenvolveu o interessante conceito de que a Idéia Absoluta se manifestaria, em
uma situação escatológica, em uma forma final “consciente” no Estado prussiano.
Entretanto, em uma escala planetária, a Prússia, e mesmo a Alemanha, são
geopoliticamente insuficientes para caberem seriamente neste conceito. A
Rússia, a Terceira Roma, corresponde perfeitamente, tanto religiosamente,
quanto culturalmente, espacialmente e estrategicamente, a uma visão teológica
similar da essência da história, e claramente busca cumprir esta missão [...] O
povo russo se move, passo a passo, precisamente rumo a este objetivo. A cada
estágio de expansão de seu Estado, os russos chegaram a um nível superior de
universalismo messiânico, primeiro reunindo os eslavos orientais, depois incluindo
o ramo turco das estepes e a Sibéria, então se movendo para o sul e para os
desertos e montanhas; e finalmente, formando um bloco político gigantesco no
período soviético, controlando literalmente meio mundo. Se percebermos que o
povo russo, em sua essência, é este processo de construção imperial, o poderoso
vetor geopolítico intencional de criar um “Estado da Ideia Absoluta”, se torna
completamente óbvio que a existência do povo russo depende diretamente da
continuação deste mesmo processo, de seu desenvolvimento, de sua
intensificação.” [Parte 4 – Capítulo 3]
“A existência do povo russo como uma
comunidade histórica orgânica é inimaginável sem a criação continental e
imperial. Os russos só permanecerão como uma nação no interior de um Novo
Império. Este Império, de acordo com a lógica geopolítica, desta vez tem de
superar tanto espacialmente quanto estrategicamente sua versão anterior [URSS].
Consequentemente, o Novo Império deve ser eurasiático, continental, e no futuro
Mundial. A batalha dos russos pela dominação mundial não chegou ao fim. [Parte 4 – Capítulo 3]
3. 3. A Organização do Novo Império
A estratégia de
Dugin para a formação do Novo Império parte de uma aliança contra-hegemônica
para furar o cerco estadunidense à Eurásia. Com este intuito, o
russo advoga a formação de três grandes eixos geopolíticos: o Moscou-Berlim, o Moscou-Teerã,
e o Moscou-Tóquio. Estes eixos, articulados de modo central pela Rússia, que
estaria no comando político e estratégico da aliança, realizaria o maior temor
dos geopolíticos do poder marítimo: a unificação da Eurásia.
Dugin mobiliza o conceito de Grande Espaço, de Carl Schmitt, para advogar a implementação de
grandes confederações de Estados, cada um deles baseado em seu próprio
princípio ideológico e civilizacional integrador. O que ele chama de Império
Eurasático seria, portanto, uma aliança entre quatro Impérios [ou
Grandes Espaços] menores. O primeiro deles, unificaria a Europa Ocidental sob
domínio da Alemanha. O segundo, unificaria parte do Oriente Médio e dos xiitas
sob égide do Irã. E, finalmente, o extremo-oriente seria integrado pelo Japão.
Na área pivô, gozando de centralidade territorial em todo o Novo Império Eurasiático, teríamos o Império Russo.
Cada um destes
Grandes Espaços garante a autonomia dos “países”, “etnias” e “nações” em seu
interior em assuntos culturais, linguísticos etc. Mas estes países perdem a
soberania e a independência políticas. Já a integração desses 4 Grandes
Espaços, ou Impérios, em uma unidade eurasiática se dá por meio da unificação
militar e estratégica. Esta é a garantia maior da unidade de ação e da
integração dos quatro grandes espaços em uma grande confederação liderada pela
Rússia.
“O Novo Império deve ser construído com um
claro entendimento de sua inevitabilidade geopolítica. Neste Império, são os
russos que terão naturalmente a função chave, já que controlam as terras que
são axiais na massa continental eurasiática. O Novo Império não pode ser senão
um Império russo, já que tanto territorialmente, civilizacional e culturalmente,
sócio-economicamente, e estrategicamente, os russos naturalmente correspondem
organicamente a esta missão planetária e buscaram sua realização durante toda a
sua história estatal e nacional.[...] A
Eurásia está predeterminada para a unificação geográfica e estratégica. Este é
um fato geopolítico estritamente científico. A Rússia deve estar,
inevitavelmente, no centro desta associação. A força dirigente da unificação
deve ser o povo russo. [...] O novo Império Eurasiático está inscrito na
predeterminação histórica e geográfica da história e da geopolítica mundial.”
[Parte 4 – Capítulo 4]
A construção de
cada um destes Grandes Espaços, e dos eixos que garantem sua ligação com
Moscou, envolve muitos detalhes que não importam tanto assim para este pequeno
texto. Cito apenas uma possível “curiosidade”. Dugin se sente em dúvida em
relação ao papel da China, mas ao longo do livro tende a considera-la um campo
de ação “atlantista”. Na verdade, o sociólogo considera a China
um dos maiores perigos para a Rússia.
Ainda que a China se associe algum dia com o continentalismo, naquele que Dugin considera o melhor dos cenários, e venha a fazer parte, no futuro, do Império Eurasiático, o autor prefere que ela caminhe geopoliticamente para o sul, rumo a Taiwan, deixando a Manchúria e o Cazaquistão como áreas de influência russa. Isto se deve à existência óbvia de áreas de fricção geoeconômicas e geopolíticas entre ambos os Estados, que dificilmente vão sumir mesmo diante da atual aliança.
O
importante, no entanto, é frisar que, para Dugin, a lógica geopolítica
estrita leva a uma aliança entre Rússia e Japão, unificando o Norte
Geopolítico Eurasiático [a China, afinal, é um país do Sul Global, desprovioa daquilo que Dugin chama de “dinamismo geopolítico”], principal temor
de MacKinder e Spykman. Caso a China se tornasse, como
Dugin desconfiava, um inimigo da Eurásia, o caminho seria torná-la bode
expiatório da aproximação da Rússia com o Japão e a Índia. E, inclusive, agir para
que ela perdesse as províncias de Xinjiang [velho sonho da CIA, diga-se de
passagem] e a Mongólia.
“É o Japão, como
símbolo do espaço Pacífico inteiro, que é de importância primordial nestes
projetos anti-atlantistas, já que a posição estratégica do país, a dinâmica de
seu desenvolvimento, e as especificidades de seu sistema de valores o tornam um
parceiro ideal em uma luta planetária contra a civilização Ocidental. A China,
por sua vez, não tem um papel especial neste cenário geopolítico, tendo sido
privada, em primeiro lugar, de independência política (colonização inglesa), e
então de dinamismo geopolítico. [...] Além disto, de um ponto de vista
puramente pragmático, uma aliança estratégica da Rússia com a China para criar
um bloco único imediatamente afastaria o Japão do russos e, dessa maneira,
hostilizaria de novo esta região chave do Pacífico e de cuja participação
depende o sucesso geopolítico final na confrontação contra o Mar. No Novo
Império, o eixo oriental deve ser Moscou-Tóquio. Este é um imperativo
categórico do Leste, o componente asiático do eurasianismo. É em torno deste
eixo que os princípios básicos da política da Eurásia para a Ásia devem tomar
forma. O Japão, sendo o ponto mais setentrional entre as ilhas do Pacífico,
está localizado em um ponto geográfico excepcionalmente vantajoso para a
implementação de uma expansão política, estratégica e econômica rumo ao sul. A
Federação do Pacífico ao redor do Japão foi a ideia principal do assim chamado
“projeto pan-Asiático”, que começou a ser implementado nos anos 1930 e 1940, e
foi interrompido apenas por causa da derrota dos países do Eixo na Guerra.
[...] O projeto Pan-Asiático é o centro da orientação oriental do Novo Império.
Uma aliança com o Japão é vital. O eixo Moscou-Tóquio, ao contrário do eixo
Moscou-Pequim, é uma prioridade e uma promessa que abre o horizonte para a
construção imperial que finalmente torna a Eurasia geopoliticamente completa, e
que vai enfraquecer, e possivelmente destruir por completo, o Império do Ocidente.
[...] Falando de modo geral, a China tem a chance de se tornar o “bode
expiatório” geopolítico do projeto Pan-Asiático. Isto pode ser alcançado tanto
com a provocação de separatismo interno na China (tibetanos, mongóis, a
população muçulmana de Xinjiang), jogando com as contradições regionais, como
também com o apoio ativo a forças anti-atlantistas e puramente continentais do
potencial lobby budista (e taoísta) dentro da própria China, que no futuro podem levar ao estabelecimento de um regime politicamente leal ao Império
Eurasiático. Em acréscimo, a China deveria oferecer um vetor de geopolítica
regional dirigido estritamente para o sul, rumo a Taiwan e Hong Kong. A
expansão meridional parcialmente compensa a perda de influência política da
China no Norte e no Leste.” [Parte 4 –
Capítulo 4]
Evidente que, dada esta retórica, voltada para a expansão geopolítica Norte-Sul -- típica da geopolítica de Haushoffer mas também de Spykman --, e para a necessidade de cerco estratégico aos EUA, os acordos atuais entre Moscou e Pequim talvez sejam vistos como insatisfatórios por Dugin, pelo menos a médio e longo prazo, não só pelo perigo representado pela próprio Estado chinês, como também pelo afastamento da Rússia em relação ao Japão.
De todo
modo, e retornando à linha de raciocínio principal, a aliança atual entre Moscou
e Pequim parece se assentar, fundamentalmente, no princípio do inimigo comum,
que Dugin elege como cimento unificador do Novo Império Eurasiático. A grande
aliança continental só se manteria integrada diante da missão,
ou da necessidade, de se opor aos EUA, segundo as linhas
da oposição geopolítica fundamental que tracei logo no princípio deste texto. A
estratégia da Terra espelha à do Mar, ao precisar de um adversário fundamental que
legitime, justifique, e dê sentido à sua ação global. “Cartago deve ser
destruída” é o motto do Novo Império.
“O Novo Império, cuja construção atenderia à missão civilizatória global
e planetária do povo russo, é um superprojeto com muitos subníveis. Este Novo
Império, o Império Eurasiático, terá uma estrutura complexa e diferenciada,
dentro da qual haverá vários graus de interdependência e integração das partes
individuais. É óbvio que o Novo Império não será o Império Russo nem o Império
Soviético. O principal elemento integrador deste Novo Império será a luta
contra o Atlantismo e a dura repulsa a essa civilização de mercado liberal,
"marinha", cartaginesa, que os EUA e as estruturas políticas,
econômicas e militares planetárias que servem ao Atlantismo encarnam hoje. A
criação de um bloco geopolítico continental gigante, estrategicamente unido. É
a unidade das fronteiras continentais estratégicas que será o fator integrador
principal do Novo Império. Este Império terá unidade e organicidade em um
sentido estratégico-militar, e isto vai impor restrições políticas a todas as
formações internas sub-imperiais. Segurança Continental. Neste e somente neste
nível o Novo Império será uma entidade geopolítica integral. No nível seguinte,
e inferior, o Novo Império será uma ''Confederação de Grande Espaços" ou
Impérios secundários. Destes, deve ser destacados os quatro principais: no
Ocidente (em torno da Alemanha e Europa Central), o Império do Pacífico no
Oriente (em torno do Japão), o Império da Ásia Central no Sul (em torno do Irã)
e o Império Russo no centro (em torno da Rússia). É completamente lógico que a
posição central seja a principal em tal projeto, já que a coerência e
homogeneidade territorial de todos os componentes deste gigantesco bloco
continental dependem dela. Além disso, vão existir Grandes Espaços
independentes, além dos indicados: a Índia, o mundo pan-árabe, a União
Pan-Africana, e também, possivelmente, uma região especial da China, cujo
status é difícil de determinar mesmo de forma aproximada. Cada um destes Impérios
secundários vai se basear em um elemento racial, cultural, religioso ou
político particular, que em cada caso pode ser diferente. [...]
Ao mesmo tempo, em um nível global, a construção deste Novo Império planetário
terá como principal bode expiatório os EUA, cujo poder (até a completa
destruição desta estrutura geopolítica) será conquistado sistemática e
intransigentemente por todos os participantes no Novo Império. Neste sentido, o
projeto envolve a expansão eurasiana nas Américas Central e do Sul, com o
objetivo de removê-las do controle da América do Norte (o elemento espanhol
pode ser usado como alternativa tradicional ao anglo-saxão), como também
provocando todos os tipos de instabilidade e separatismo no interior dos EUA (é
possível contar com as forças políticas dos racistas afro-americanos). A antiga
fórmula romana "Cartago deve ser destruída" se tornará o slogan absoluto
do Império Eurasiático, já que vai incorporar a essência da estratégia
geopolítica planetária do despertar continental para sua missão. '' [Parte 4 – Capítulo 4]
É notável que no trecho acima já esteja colocada a necessidade da "Quarta Teoria Política", embora ela ainda não tenha nome nem seja uma preocupação direta do texto.
O cimento do Novo Império [a busca pela destruição dos EUA] é tão fundamental
e imprescindível que Dugin considera sua consecução um perigo para a sobrevivência
do Novo Império Eurasiático. O grande perigo, por paradoxal que pareça, é a
possibilidade de um Mundo Multipolar. Isto nos leva ao próximo ponto.
4. 4. Apóstolo da BIPOLARIDADE
Para Dugin, a multipolaridade só é alcançada de fato quando existem
diversos polos de poder no sistema internacional atuando segundo suas próprias
cosmovisões. Se existem diversos polos em disputa, mas todos são liberais, por
exemplo, não temos um mundo verdadeiramente multipolar. Daí, inclusive, a defesa da necessidade da
elaboração de uma Quarta Teoria Política a fim de chegar ao objetivo final
vislumbrado pelo pensador.
O grande paradoxo no discurso duginiano, no entanto, é que o Novo
Império Eurasiático depende, para a sua unidade e exercício de poder, da
presença constante do inimigo atlantista, ou seja, dos EUA. Daí que Dugin
defenda em “Foundations of Geopolitics” que os passos para a multipolaridade só
devem ser dados em um incerto momento futuro, quando o Atlantismo estiver
destruído como “ideia universal” concorrente à Terra.
“A unipolaridade
(o domínio do Atlantismo em qualquer forma, seja ela pura ou através do ‘mundialismo’)
condena a Eurásia como Heartland a uma não-existência histórica. O
Neo-Eurasianismo insiste que devemos resistir à unipolaridade. E isto só pode
ser feito por meio da bipolaridade. É necessário algum esclarecimento. Há um
ponto de vista que diz que depois do confronto entre EUA E URSS, o mundo se
ajustaria a um modelo multipolar: a China ascenderia, os processos demográficos
levariam os países muçulmanos a uma categoria de centralidade geopolítica, a
região do Pacífico afirmaria sua competitividade diante da Europa e da América
etc. Tudo isto é possível, mas há de se levar em conta que esta multipolaridade
se daria sob o signo do “sistema atlantista de valores”, isto é, seria apenas um
conjunto de variações territoriais do sistema talassocrático, e de nenhuma
maneira uma real alternativa geopolítica[...] O Neo-Eurasianismo, baseado nos
interesses do “eixo geográfico da História”, afirma o exato oposto do Ocidente.
A única maneira de escapar desta situação é através de uma nova bipolaridade[...]
Esta teoria da nova bipolaridade é suficientemente desenvolvida nos projetos
neo-Eurasianos, sendo uma justificação teórica para todas as teorias geopolíticas
não conformistas da Europa e do Terceiro Mundo. Assim como a heartland é
objetivamente o único ponto que pode servir de trampolim para uma alternativa
planetária para a talassocracia, o Novo-eurasianismo é a única plataforma a
partir da qual um conjunto de estratégias planetárias podem ser desenvolvidas
ao negar a dominação do Atlantismo e seu sistema de valores civilizacionais: o
mercado, a democracia liberal, a cultura secular, a filosofia do individualismo
etc.” (Parte 2 – Capítulo 6)
Não é qualquer multipolaridade que interessa a Dugin,
portanto. Mas uma que se dê sob o guarda chuva do sistema de valores do qual
ele entende que a Rússia é a principal porta-voz. Mas esta asserção tampouco reflete com acuidade o pensamento expresso em “Foundations of Geopolitics”. A
multipolaridade é um sonho distante, que não deve ser afirmado nunca enquanto o
Atlantismo permanecer como “ideia”. Até lá, impera o modelo bipolar, e portanto a
liderança estratégica e militar do Norte Geopolítico, da Eurásia e da Rússia:
“Deve-se enfatizar que a derrota geopolítica dos EUA vai colocar muitos problemas para o próprio
Império Eurasiático. Neste momento, o principal fator que subjaz ao projeto de
unificação das nações e povos em um Novo Império vai desaparecer. O princípio
do “inimigo comum” vai desaparecer. A energia de consolidação vai perder seu
significado, e até mesmo o sentido da existência continuada do Império Eurasiático
será colocado em questão. Nesta situação, a transição de uma ordem bipolar
mundial da Eurasia contra o Atlântico para um modelo multipolar pode se
iniciar. Neste caso, é necessário enfatizar o fato que um modelo multipolar só
se tornará possível após a vitória sobre o Atlantismo, não antes. Enquanto o Atlantismo existir como uma forma que se declara universal, não pode haver conversa sobre
uma estrutura multipolar. Apenas dentro da estrutura do Novo Império, dentro da
estrutura do projeto eurasiano global e durante o confronto estratégico contra
o Atlantismo, os pré-requisitos para a existência objetiva da multipolaridade
podem surgir, não antes disto.” [Parte 4
– Capítulo 5]
5.5. Conclusão
Este texto se estendeu demais, apesar da minha tentativa de ser sucinto. Resumindo muito o que tenho a dizer: Dugin é um dos pensadores mais poderosos
do século XXI. Muitos de seus conceitos e formulações ecoam verdades em
diversos terrenos, sem que, no entanto, possam ser considerados a única
elaboração possível sobre cada um destes
temas. Mas o que cabe perguntar é se o conjunto integral de ideias acima serve
a um brasileiro. Se serve a um latino-americano. Se serve a um país do Sul
Global. Se serve, no fim das contas, a qualquer um que não seja russo.
Não considero tão estranho que um russo entenda a própria
civilização como a “realização estatal da Ideia Absoluta”, como um povo
messiânico cujo destino é lutar até o fim pela “dominação mundial”. Ou que, de modo menos delirante, busque furar o cerco estratégico à Eurásia, sustentar
seu entorno geoestratégico, se defender de seus inimigos geopolíticos. A
questão é entender o que leva um brasileiro a repetir, de cabo a rabo [se me
permitem a vulgaridade], a mesma linha de raciocínio, como se russo fosse. Algumas
possíveis respostas:
) A) Ignorância: O brasileiro em
questão ignora o cerne da maior parte das ideias desse livro, ou conhece apenas
recortes e memes. Ou ainda, as interpreta segundo certos filtros
disponibilizados por terceiros.
B) Vira-latismo: O
brasileiro se vê como Dugin vê o Sul Global. Membro de uma civilização sem “dinamismo
geopolítico”, passiva, como uma matéria inerte a ser modelada por forças
masculinas do Norte. [todas as civilizações são meio femininas diante da russa,
segundo esta linha de pensamento, o que não teria nada demais não fosse a
subordinação insuperável do feminino ao masculino com que Dugin parece ler a polaridade sexual, pelo menos para todos os propósitos políticos relevantes].
C) Falta de identificação com o Brasil: Por alguma razão desconhecida, o brasileiro conhece as
ideias duginianas, não sofre pessoalmente de vira-latismo, mas se considera uma
exceção portentosa em meio a uma civilização passiva e cujo destino é a
submissão. Nesse caso, por algum poder espiritual, étnico, racial, cósmico, ele
se identifica com os russos e seu destino, e não com o destino dos brasileiros
comuns.
Claro que há alternativas. Uma delas seria alegar que Dugin mudou de ideia em relação a
alguns pontos de “Foundations of Geopolitics”. Mas, como eu disse no início,
não há nenhuma obra abrangente de sua autoria que retifique substancialmente estas ideias. A Quarta Teoria Política apenas tangencia estes
assuntos, e em larga escala reafirma os pontos da metafísica que subjaz a interpretação
geopolítica de Dugin ou sequer adentra detalhes e especificidades
estratégicas. Já a Noomaquia traz outra ordem de elementos e será tema de postagens
futuras.
Nada do que foi exposto aqui implica uma minoração da importância de Dugin, de sua geopolítica, de suas ideias metafísicas, nem muito menos de seu valor como interlocutor e possível aliado. O Brasil pode ter na Rússia uma aliada, mesmo que a Rússia um dia se torne duginiana, o que não parece ser ainda o caso.
O que se contesta é a validade da maior parte destas diretrizes para o Brasil. Diferente do que diz Dugin, o Neo-Eurasianismo não fornece as bases para uma Geopolítica brasileira. Os brasileiros não estamos interessados em um "Novo Império Eurasiático" que unifique o Norte Geopolítico em torno da Rússia. Particularmente, eu gosto muito do país, de sua cultura, de sua história, de seu significado politico. Mas não sou russófilo ao ponto de advogar a submissão ''natural'' do meu próprio país a outro qualquer.
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