sábado, 28 de maio de 2022

História da Dissidência Tradicionalista no Brasil: Parte II, o Tradicionalismo

 "A civilização ocidental moderna aparece na história como uma anomalia: dentre todas aquelas das quais temos conhecimento ora mais completo, ora menos, essa civilização é a única que se desenvolveu num sentido puramente material [...]; daí seu desdém não somente pelas civilizações orientais, mas até pela Idade Média europeia, cujo espírito lhes escapa de modo não menos completo."

René Guénon, "Oriente e Ocidente"


René Guénon, provavelmente o maior metafísico do século passado e uma das grandes esfinges intelectuais dos nossos tempos



O conceito de Dissidência Tradicionalista é melhor compreendido com a exposição, ainda que em linhas bem gerais, de alguns elementos do Tradicionalismo. Vou apresentar aquelas características que esclarecem a ação dos que decidiram militar dialogando com esta escola. É também oportunidade de desfazer pelo menos uma ou duas confusões causadas por Benjamin Teitelbaum em sua obra “Guerra pela Eternidade”. 

Nela, o Tradicionalismo é chamado de “bizarro”. Mas ele não parece assim tão esquisito para quem está minimamente familiarizado com os temas e discussões das correntes esotéricas ocidentais dos últimos dois séculos, ou com metafísicos como Plotino e Shankaracharya.

E para desfazer a possível estranheza, vou apresentar, de forma bem rápida e simples, alguns problemas tratados por três dos mais importantes representantes da corrente. O assunto é complexo, cada um desses esoteristas tem dezenas de obras publicadas ao longo de décadas de atividade intelectual, espiritual e, pelo menos no caso de um deles, política. Mas é imprescindível falar de Guénon, Schuon e Evola para que se compreenda corretamente a História da Dissidência.

 René Guénon, que pode ser considerado o primeiro autor da escola tradicionalista, era francês nascido em Blois em 1886, e se movia por círculos maçônicos e para-maçônicos, grupos ocultistas, rosacrucianos, de magia, hermetismo, cabala, teosofia e martinismo que eram então comuns e que, com algumas modificações, continuam parte indissociável da vida intelectual europeia e americana. Por certo, estas correntes de pensamento, práticas e crenças não tem aceitação no debate público mainstream nem muito menos nas instituições acadêmicas, o que não implica que sejam menos disseminadas de alto a baixo do tecido social.

Na verdade, sua presença é quase tão constante quanto os templos das mais diferentes religiões. Por todo lugar que olhemos, flagramos astrólogos fazendo dinheiro; celebridades propagandeando a Cabala, a Yoga e a Meditação; executivos consultando médiuns; políticos usando serviços de oráculos, sacerdotes e supostos magos; uma profusão de pessoas acreditando em manipulação de energias sutis; e um mercado popular imenso para todos os itens clássicos das práticas ocultas. Enquanto o discurso público se abraça ao racionalismo, empirismo, materialismo metodológico e ciência contemporânea, aqueles que o proferem mergulham, mais das vezes, em ideias que bebem das “bizarrices” que Teitelbaum parece estranhar.  

O Professor Jason A. Joseph Storm, do Williams College, demonstra em “The Myth of Disenchantment” que os cientistas, ideólogos e filósofos que, desde o século XVIII até os dias atuais, denunciaram e combateram as “superstições” em nome da Modernidade, estavam eles próprios imbuídos de crenças espirituais e mágicas, que consideravam superiores àquelas que criticavam. Isto é, o discurso de “desmitologização” e “desencantamento do mundo” que fundamenta a Modernidade é ele próprio um Mito. De modo similar, Christopher Hugh Partridge, Professor da Universidade de Lancaster, criou o termo “occulture” para se referir à imensa influência que práticas ocultistas tem nas sociedades ocidentalizadas.

O que parece chocar no Tradicionalismo e lhe conferir um caráter dissonante não é exatamente seu caráter esotérico, suas supostas credenciais iniciáticas e sua defesa de uma sabedoria superior e ao mesmo tempo ancestral. Uma jornalista do site El Coyote participou em 2020 de um podcast sobre ocultismo, Magia do Caos e assuntos similares com o objetivo de denunciar “infiltração” de direitistas em “grupos esotéricos”, que todos no programa avaliavam como absurda e contraditória. O esoterismo e o ocultismo estariam inevitavelmente vinculados à esquerda política, que aquelas pessoas identificavam com as atuais ideologias social-liberais do establishment político dos EUA e da Europa “desenvolvida”. O escândalo destes progressistas com a descoberta do Tradicionalismo é uma chave interessante para analisar o impacto de René Guénon.

  

2. 1 René Guénon

 

Diferente da maior parte dos esoteristas de seu tempo, que buscavam ler as teorias, símbolos e ritos antigos e medievais, tanto europeus quanto do Oriente, a partir de ideologias contemporâneas -- como um certo evolucionismo, cientificismo e individualismo --, Guénon tomou a via contrária: leu a sociedade em que vivia e os próprios grupos esotéricos ocidentais a partir das fontes de ensinamento orientais com as quais entrou em contato, tais como o Taoísmo, os escritos indianos e os mestres sufis. Esta “inversão de olhar” deu à obra do francês uma qualidade bastante diferenciada em relação aos seus pares e lhe permitiu, de certo modo, avaliar o mundo contemporâneo a partir da perspectiva de povos pré-modernos.

O quanto ele foi bem-sucedido no esforço é matéria polêmica, é como se perguntar o quanto um homem moderno pode ser não moderno. Não que esta questão se colocasse para o francês, que se considerava um iniciado, alguém que domina um conhecimento para além das possibilidades verbais e racionais comuns. Mais de uma vez, Guénon insistiu que suas obras não tinham qualquer teor subjetivo, que eram expressão pura da própria Tradição. Por mais que estas alegações de transparência e dissociação das próprias conjunturas pessoais possam ser problemáticas, permanece a singularidade da proposta. Em um tempo e em meios que não cansavam de proclamar a superioridade moral e intelectual da civilização europeia [e de suas neo-Europas], Guénon tomou o lado, digamos assim, dos povos ditos tradicionais [no sentido de não ocidentalizados].

Em certo sentido, obras como “A Crise do Mundo Moderno”, publicado originalmente em 1927, são quase um manifesto anti-colonial, criticando as pretensões da civilização europeia e americana [o mundo moderno] de se verem como a única civilização de fato, e alertando contra a invasão não só material mas da mentalidade ocidental nas demais regiões do planeta, cujo caráter pré-moderno permitia que fossem todas agrupadas sob o epíteto de Oriente [mundo tradicional] [1]:

 

“O que não se pode contestar é que o Ocidente invadiu tudo; sua ação se exerceu de início sobre o domínio material, que estava imediatamente ao seu alcance seja pela conquista violenta, seja pelo comércio e pela apropriação dos recursos de todos os povos; hoje, no entanto, as coisas vão ainda mais longe. Os ocidentais, sempre animados pela necessidade de proselitismo que lhes é tão particular, chegaram a fazer penetrar nos outros povos, numa certa medida, seu espírito antitradicional e materialista; enquanto a primeira forma de invasão atingia somente os corpos, a invasão atual envenena as inteligências e mata a espiritualidade. Na verdade, a primeira preparou o caminho para a segunda e a tornou possível, e isso não poderia ser diferente, pois é nisso que reside a única superioridade real da civilização ocidental, tão inferior sob todos os outros pontos de vista.”

 

Guénon diz ainda que a suposta influência de conceitos e religiões orientais na Europa da virada do século XIX para o XX não passava de uma ilusão. O ocultismo distorcia o sentido das fontes indianas, chinesas e outras sob as luzes das ideias contemporâneas. O francês denuncia a incapacidade dos “Orientalistas” em produzir um conhecimento real sobre a cultura das demais civilizações. Em “Oriente e Ocidente”, de 1924, ele faz uma defesa ferrenha da sabedoria das demais culturas frente aos preconceitos europeus:

 

 “Sabemos muito bem que esse modo de ver choca a grande maioria dos ocidentais, pois é contrário a todos os seus preconceitos; porém, deixando de lado toda a questão da superioridade, deveriam ao menos admitir que as coisas às quais atribuem a maior importância não necessariamente interessam a todos os homens no mesmo grau, que alguns podem considerá-las perfeitamente insignificantes e que não é somente pela construção de máquinas que se pode dar prova de inteligência. Seria já alguma coisa se os europeus chegassem a compreender isso e a se comportar de acordo com essa compreensão; suas relações com os outros povos se modificariam de modo mais vantajoso para todos. No entanto, esse é apenas o lado mais exterior da questão. Se os ocidentais reconhecessem que o simples fato de outras civilizações serem diferentes da sua não as torna totalmente desprezíveis, nada os impediria de estudar essas civilizações como devem ser estudadas, sem um viés de menosprezo e sem hostilidade preconceituosa.”

 

Para Guénon, o Ocidente não passaria de uma anomalia que se considerava o suprassumo da realização humana tão somente por causa de conquistas no campo material, e ainda a fonte de uma frágil teleologia do progresso capaz de justificar a intervenção em todos os demais povos. O Ocidente era, na verdade, a real superstição. 

É a partir desta “inversão de perspectiva”, que os Tradicionalistas certamente chamariam de um “olhar a partir dos princípios”, que o francês critica todos os fundamentos da cultura ocidental, desde o cientificismo e a “matematização do mundo”, até o individualismo, o racionalismo e a massificação.

Tentando ser sucinto, os pontos principais da obra de Guénon que nos importam pra essa História são:

 

2.1.1        Metafísica:

 

Estátua de Adi Shankara, o principal expositor do Advaita



Para tratar dos temas comuns ao esoterismo europeu contemporâneo, Guénon escolheu determinada estrutura de pensamento filosófico [embora ele não concordasse com a aplicação do termo]. Apesar de mobilizar uma terminologia mais ocidentalizada [Possibilidade Universal, Infinito Metafísico, Estados do Ser, Realização Metafísica etc.], ele se orientava por uma das mais antigas linhas de interpretação metafísica dos Upanishads, o Advaita Vedanta. Como o próprio nome diz, trata-se de uma metafísica “não-dualista”: todos os possíveis pares de oposição da realidade são negados em prol de uma unidade que se dá em um âmbito superior e de maior universalidade, e assim sucessivamente, até a Realidade Primeira, capaz de conter em si todas as qualidades universais e “possibilidades de manifestação”. E então esta também é ‘negada’ pela superação do próprio par “transcendência/imanência” ou “Uno/Múltiplo”. O Absoluto é a Infinitude Metafísica, e ela não se diferencia essencialmente do verdadeiro “eu” de cada ser humano empírico.

Esta ascensão pelos diferentes níveis do Ser não seria, segundo ele, apenas fruto de abstração, mas uma identificação realizada pela mente humana com cada degrau de realidade: uma contemplação, ou gnose, capaz de superar a dualidade entre sujeito e objeto. Por fim, o homem alcança a Identidade Suprema ou, no jargão de Guénon, a Realização Metafísica, se libertando de todas as condições limitadas, e, principalmente, da ignorância [avidya] que impede esta consecução. No caminho inverso, todos os ‘níveis de realidade’ são reflexos da Realidade Primeira, que se reveste cada vez mais do véu de Maya, que encobre a verdadeira natureza do ser.

Não tenho espaço para uma apresentação menos simplista do Advaita, mas cabe notar que não se trata da única metafísica indiana, nem tampouco pré-moderna. Se Guénon realmente a considerava a melhor e mais verdadeira, ou a escolheu por outras razões, é tema de debate, principalmente porque ele se ‘reverteu’ ao Islã e se tornou um sheik sufi. De todo modo, as linhas de interpretação do Vedanta, de modo geral, e o Advaita em particular, tem uma grande vantagem: seus expositores estão acostumados a conviver com uma multiplicidade incrível de espiritualidades e práticas. O que chamamos de “Hinduísmo” não passa de um termo guarda-chuva para doutrinas, ritos e vias espirituais muito díspares.

Para além da questão da verdade, as linhas de interpretação do Vedanta construíram discursos doutrinários tão profundos quanto abrangentes, capazes de incluir os mais diversos “pontos de vista”. Os defensores destas diferentes abordagens metafísicas se reconhecem como legítimos, desde que se apoiem nos escritos tidos por sagrados e nos métodos comumente aceitos. O “debate” [Guénon também discordaria do uso deste termo] se voltava para estabelecer qual deles teria a visão ou abordagem mais elevada ou esotérica. Isto é, qual dos caminhos permitiria a maior realização espiritual. Neste sentido, o Advaita proporcionava a Guénon uma forma de fazer o mesmo com todas as demais religiões pré-modernas fora da Índia; lhe deu uma linguagem ampla o suficiente para enquadrá-las em um discurso comum, mesmo se discordassem em pontos importantes.

 

2.2.2        Tradição e formas tradicionais:

 

Guénon tem uma visão “vertical” da Tradição. Não se trata de uma transmissão de ensinamentos realizada no tempo, pelo menos não somente, e sim o ‘influxo’ espiritual que, vindo de estratos superiores da Realidade, que transcendem o âmbito do particular e da Existência propriamente dita, vinculam aqueles que o recebem com os Princípios Universais, as dimensões superiores do Ser. A Tradição é apurusheia, isto é, de origem supra-humana. A transmissão de cima para baixo se adequa, no entanto, às contingências do mundo, marcadas por movimento e particularidades. A Tradição toma diversas formas, cada uma delas adaptada aos homens, personalidades, tempo e espaço que a recebem. Um símbolo que explica esta ideia é a da Árvore cujas raízes estão nos Céus e cujos ramos se espalham pela Terra.

A multiplicidade imensa de espiritualidades seria perfeitamente compatível com uma unidade superior, que estaria no nível metafísico, de conhecimento dos Universais. A diversidades das formas tradicionais é desejável, já que a humanidade é necessariamente múltipla. As formas tradicionais, por sua vez, estão na base das mais diversas culturas e civilizações, ligando todos os aspectos da vida humana à Ordem Transcendente.

Guénon divide as formas tradicionais em um âmbito exotérico e um âmbito esotérico. O primeiro se destina aos aspectos individuais do ser humano [que incluem a moralidade, a racionalidade, e as instituições sociais e comunitárias]. Já o segundo diz respeito ao terreno da realização gnóstica de “estados superiores do ser”. Ou seja, à gnose que leva o homem a superar sua condição limitada e se identificar gradualmente com Princípios Superiores ou Universais. O esoterismo, por sua vez, se divide em pequenos e grandes mistérios. 

Toda forma tradicional “completa” seria portadora destas duas dimensões, a exotérica e a esotérica, e ambas são justificáveis e legítimas em suas respectivas ordens de atuação.

 

2.2.3        Os Ciclos Cósmicos e as “Castas”

 

Do mesmo modo que a Realidade gera, em ordem descendente, “níveis” e degraus cada vez menos espiritualizados, assim também a humanidade vai caindo na matéria e na ignorância em ciclos sucessivos que a afastam do Princípio Divino [2]. Guénon expressa esta ideia por meio das Yugas védicas [Satya Yuga, Treta Yuga, Dvapara Yuga e Kali Yuga], fazendo uma analogia com as Eras de Hesíodo [Idade de Ouro, de Prata, de Bronze e de Ferro]. Este é um dos aspectos do Tradicionalismo mais incompreendidos e distorcidos por Teitelbaum.

Em “Guerra Pela Eternidade”, a perspectiva de Guénon, que nada mais é do que a repetição de uma ordem de ideias védica, é chamada de “fatalista”, repetindo um preconceito típico dos Orientalistas oitocentistas. Pior ainda, o escritor percebe a  sucessão de ciclos como uma inversão da ideologia do progresso. Assim como o Ocidente acreditou no mito do crescimento temporal inexorável dos níveis de civilização, tecnologia e conhecimento, representados em uma linha reta direcionada para um futuro brilhante e visto com otimismo; os Tradicionalistas acreditariam, parece imaginar o escritor, em uma decadência também em linha reta, contra a qual nada poderia ser feito, e que terminaria tão somente quando uma nova Idade de Ouro fosse instaurada de cima para baixo. Partindo dessa abordagem errônea sobre um aspecto fundamental desta corrente, Teitelbaum retira conclusões insustentáveis, como a de que os Tradicionalistas seriam necessariamente aceleracionistas, defensores do “quanto pior, melhor”. Afinal, pensa ele, se a Idade Sombria for intensificada, se seus aspectos negativos se disseminarem em velocidade cada vez maior, mais rápido também retornaremos à Idade de Ouro almejada. Assim, quando refletido na política, o Tradicionalismo se manifestaria como uma força destrutiva, sem qualquer intenção de incrementar, melhorar ou oferecer soluções para os problemas das sociedades:

 

“O desejo de lutar pela eternidade em vez de imaginar um futuro melhor e mais promissor. É assim que você distingue um Tradicionalista real de alguém que é meramente conservador – ou um tradicionalista, com ‘t’ minúsculo. É a diferença entre alguém meramente pessimista e quem acredita que vivemos em um tempo de destruição, que sustenta que o desmoronamento de monumentos é algo a ser celebrado e que a vontade de construir algo grandioso não passa de uma tolice perversa.”

 

Em entrevista ao jornal El País, em 2020, Teitelbaum declara que “O Tradicionalismo acredita que é preciso haver um cataclismo para restaurar o que acreditam ser a verdade.” [3] Mas Guénon dizia o contrário. Primeiro, a decadência não é uma linha reta do melhor para o pior, e sim um movimento de oscilação, similar à batida do coração, em que existe uma perpétua tensão entre fatores ascendentes e descendentes. Períodos de crise e queda podem ser revertidos temporariamente, ou, no jargão guenoniano, “retificados”. O próprio cristianismo e a civilização medieval são vistos por Guénon nessa chave: o período helenístico seria de brutal degeneração, “consertada” pelo cristianismo durante cerca de mil anos. Ou seja, diferente do que diz o escritor, é possível sim “melhorar a História”. Nos primeiros parágrafos de “Crise do Mundo Moderno”, Guénon declara que “quando se diz que o mundo moderno está passando por uma crise, o que habitualmente se entende por isto é que ele chegou a um ponto crítico, ou, em outras palavras, que se encontra na iminência de uma transformação mais ou menos profunda, que uma mudança de orientação deverá se produzir em breve, por bem ou por mal, de modo mais brusco ou menos brusco, acompanhada ou não de uma catástrofe”. Em outro ponto, ele esclarece ainda mais o que entende pelo caráter descendente dos ciclos:

 

“O que acabamos de dizer sobre o desenvolvimento da manifestação representa uma concepção que, conquanto exata no conjunto, é por demais simplificada e esquemática e pode dar a entender que este desenvolvimento se efetua em linha reta, num sentido único e sem nenhum tipo de oscilação. A realidade, no entanto, é bem mais complexa. Com efeito, como já indicamos, em tudo é possível identificar duas tendências opostas, uma descendente e outra ascendente, ou, caso queiramos fazer uso de outro modo de representação, uma centrífuga e outra centrípeta. Da predominância de uma ou de outra procedem duas fases complementares da manifestação: uma que se afasta do Princípio e outra que a ele retorna, às quais são muitas vezes comparadas simbolicamente aos dois movimentos do coração ou às duas fases da respiração. Embora estas duas fases sejam, de ordinário, descritas como sucessivas, deve-se conceber que as duas tendências às quais elas correspondem agem sempre de modo simultâneo, ainda que em proporções diversas. Em certos momentos críticos nos quais a tendência descendente parece a ponto de prevalecer no avanço geral do mundo, pode acontecer de uma ação especial intervir para reforçar a tendência contrária de modo a restabelecer pelo menos um equilíbrio relativo, segundo o permitam as condições do momento, e operar assim uma retificação parcial em razão da qual o movimento de queda parece temporariamente detido ou neutralizado.”

 

Não faz sentido, portanto, imaginar que o Tradicionalismo leve apenas a posturas destrutivas quando aplicado à política [uma aplicação, é bom ressaltar, que não é feita nem incentivada por Guénon, embora ele tampouco negasse esta possibilidade], mesmo que esta corrente de pensamento possa ser vista sob um signo efetivamente revolucionário, já que pretende instaurar uma ordem diferente da Moderna -- o que ademais também é o caso de múltiplos socialismos e também do liberalismo antes de sua vitória na Europa do século XIX. Além disso, ainda que se conclua que a Idade Sombria tenha alcançado um estado irreversível, possibilidade constantemente colocada nas obras do francês, a solução defendida por ele é a da constituição de uma elite intelectual que seja capaz de preservar as verdades tradicionais para a possível formação de um novo ciclo. Em nenhum momento se  advoga a destruição pela destruição ou o abraço às correntes descendentes.



O Neoplatonismo é uma das grandes influências do Tradicionalismo, particularmente explícita em Schuon, que também incorporaria tradições indígenas norte-americanas

No que diz respeito às varnas, elas não devem ser confundidas com o “sistema de castas” indiano. Este é específico à Índia, enquanto as varnas são disposições inerentes aos seres humanos segundo as quais é possível classificá-los em quatro grupo principais de “vocações”. Estas disposições nascem de articulações e tensões que ocorrem em cada indivíduo entre os três principais ‘vetores’ da Matéria Primordial [que forma todos os seres do mundo], ou, em terminologia hindu, entre as três gunas de Prakriti. Aqueles em que predomina o ‘vetor’ Sattva [a varna brâmane], ou luminoso, tem uma direção ascendente, e maior facilidade para a compreensão dos Universais e sua transmissão para os demais. Estão vocacionados às funções intelectuais [no sentido não apenas racional, mas de gnose, ou seja, de contemplação espiritual]: são professores, mestres, sacerdotes etc. Para Guénon, eles não exercem o governo, mas são a mais elevada autoridade de uma civilização ‘normal’ ou tradicional. 

Depois temos aqueles em que predomina o vetor Rajas, de expansão horizontal nos diferentes aspectos do mundo. São os Ksatryias, vocacionados para o governo, a manutenção da ordem social e a defesa. É daqui que sai a aristocracia e a Realeza, e também os juízes e militares, além de outras funções de ordem administrativa e política. Este grupo exerce o poder temporal propriamente dito. Abaixo, temos os homens em que predomina uma mescla de Rajas e Tamas, os Vayshas. Estão vocacionados para a produção material e o domínio da ordem econômica: comerciantes, agricultores, artesãos, e todos os que apresentam tendência ao exercício da técnica aplicada à geração de riqueza. Por fim, aqueles em que predomina Tamas, e de direção descendente, os Sudras. São aprisionados pelas paixões mais baixas e pela gratificação dos próprios sentidos. Em uma civilização ‘normal’ teriam de se ocupar dos serviços mais baixos.

As varnas seriam expressões substanciais do ser humano, e as sociedades mais complexas tendem a seguir suas divisões mesmo que não a instituam em um sistema jurídico [o sistema de castas propriamente dito]. Mas, de acordo com as condições cíclicas que imperem em uma civilização ou no mundo em geral, as funções sociais podem ser ocupadas por pessoas sem disposição ou vocação real para exercê-las. Teríamos assim militares ou governantes que não são ksatryias, professores e intelectuais que não são brâmanes. Além disso, a sociedade é orientada por um dos tipos ideais que correspondem às diferentes varnas. Ela pode estar organizada segundo os ‘valores’ e ‘objetivos’ dos brâmanes, dos ksatryias, dos vayshas ou dos sudras. A sucessão de Yugas e a decadência a ela associada pode ser entendida também como um "Retrocesso das Castas", cuja origem está em uma quebra do princípio hierárquico descrito acima. Para Guénon, essa ruptura se dá, originalmente, por uma rebelião dos ksatryias contra a autoridade espiritual dos brâmanes.

As três primeiras varnas portariam “qualificações iniciáticas”, ou seja, podem efetivamente ser introduzidos ao esoterismo. Por estarem presos nas paixões corporais mais grosseiras, os sudras se limitariam à ordem exotérica. Cada varna teria uma via espiritual mais condizente com suas disposições. Para simplificar a questão, Guénon associava os Ksatryias aos Pequenos Mistérios, mais vinculados a práticas espirituais bakthi, de teor devocional, ou seja, que partem de aspecto passionais da pessoa. Já os Brâmanes estariam associados aos Grandes Mistérios e a práticas jñani, ou de pura contemplação [gnose]. [4]

Como veremos, o tema das Varnas é muito importante não só para o Tradicionalismo como também para a Dissidência Tradicionalista, já que influencia diretamente na interpretação da história e dos problemas contemporâneos, bem como nas propostas de superação da crise, ou de “melhora da sociedade”. Este assunto é, inclusive, terreno de uma das mais famosas discordâncias entre René Guénon e Julius Evola.

 

 

2.3      Frithjof Schuon

 

Muitos autores seguiram os passos de Guénon, tendo-o como referência e realizando, cada um a seu modo, a “inversão de olhar” que mencionei no início. Dois deles são particularmente importantes para nossa História: o suíço Frithjof Schuon e o italiano Julius Evola.


Guénon e Schuon juntos antes do estranhamento e do desenvolvimento do Perenialismo do suíço



Antes de falar deles, chamo a atenção para fato pouco destacado pelos atuais “especialistas” em Tradicionalismo na grande mídia: o imenso conjunto de discordâncias que existem entre estes autores. Evidente que há um grau ainda maior de consenso, mas as divergências em tópicos específicos não podem ser menosprezadas. De certo modo, elas se fazem presentes nas ‘fontes tradicionais’, ou seja, nos escritos e práticas dos grandes metafísicos e autoridades espirituais a que os Tradicionalistas se reportavam. Na Índia, por exemplo, Ramanujacharya, um dos principais nomes do Visidhtadvaita Vedanta, se afastava da interpretação de Shankara, principal nome do Advaita, em uma série de temas. Mas mesmo quando se reportavam à mesma Metafísica, era possível aos Tradicionalistas terem abordagens distintas na transposição que faziam para as análises das espiritualidades fora da Índia e para a análise da Modernidade, bem como na exposição dos passos necessários para uma “retificação” ou “restauração” do Ocidente.

Schuon também se ‘reverteu’ ao Islã e se tornou  sheik Sufi, neste caso da Tariqa Maryamiyya, embora suas "credenciais" de transmissão iniciática tenham sido contestadas depois. O suíço construiu uma obra tão consistente quanto a de Guénon, publicando cerca de duas dezenas de livros, e seu movimento obteve grande sucesso nos EUA. Durante muito tempo, ele foi a força dominante no interior do Tradicionalismo, e um importante revisor da escola. Estas revisões não foram aprovadas por Guénon, diga-se de passagem, que acusou Schuon de criar um “pseudo-universalismo”. [5]

A abordagem schuoniana tem importância capital para a nossa História em pelo menos um sentido bastante específico: Olavo de Carvalho foi largamente influenciado pela Maryamiyya, copiou alguns de seus métodos, e boa parte das criticas que realizou ao Tradicionalismo nos anos 2000 tinham por principal alvo o projeto que pensou discernir na organização do suíço.

Schuon é conhecido pela proposta da “Unidade Transcendente das Religiões”, nome de seu livro mais famoso. Ele radicalizou o Perenialismo implícito em Guénon, emprestando a ele, no entanto, características muito próprias. O metafísico francês dizia que toda forma tradicional plena tinha uma dimensão esotérica, que lidava com a dimensão propriamente metafísica e iniciática. Schuon extremou esta posição ao defender que todas as tradições verdadeiras tinham o mesmo núcleo metafísico, uma religio perennis cujo núcleo podia ser descrito a partir de uma comparação de seus símbolos e ensinamentos. Em suma, começou não só a destrinchar quais seriam esses ensinamentos como também a “conciliar” as aparentes contradições entre as diversas “religiões”. Foi ainda além quando a Maryamiyya passou a admitir não-muçulmanos, pelo menos em estágio inicial, o que a levou a ter influência em outras organizações religiosas. Também cruzou uma linha sempre muito criticada por Guénon ao permitir certo sincretismo nos ritos da tariqa.

Com isto, abriu o flanco para a acusação de que buscava uma infiltração nas religiões, lendo-as a partir de uma “super-doutrina” elaborada e aplicada por ele próprio, ensinada para iniciados em sua tariqa, e a partir da qual ele se colocaria em posição superior às próprias autoridades das formas tradicionais praticadas “exotericamente” por seus discípulos. Além disso, levou a fama de relativizar as práticas basilares do Islã, criando um “sufismo genérico” sem grandes compromissos como a Shari’a. [6] No fim da vida, sua tariqa foi abalada por acusações de desvios sexuais. Há relatos também de que o suíço alegou ter alcançado a Identidade Suprema.

 

 

2.4      Julius Evola

 

O Barão Giulio Cesare Andrea Evola tornou-se a principal referência Tradicionalista nos meios fascistas e neofascistas da Europa e dos EUA. Sua importância na dissidência é tamanha que seu nome é o primeiro que vem à mente quando se pensa neste campo político, o que é ainda mais surpreendente quando se sabe que o Barão era um autor quase que marginalizado dentro das principais linhagens da escola. É possível encontrar pessoas com décadas de estudo de Guénon, Schuon, Ananda Kentish Coomaraswamy, Rama Coomaraswamy, Titus Burckhardt, Marco Pallis, Seyyed Hossein Nasr e muitos outros, mas com conhecimento apenas fragmentário da obra de Evola. Isto se deve, claro, ao envolvimento do italiano com movimentos políticos demonizados após a Segunda Guerra Mundial. E ainda assim, ele deve ser visto não só como um dos mais eruditos, mas também um dos mais profícuos, originais e abrangentes pensadores da escola.

Guénon e Schuon davam atenção restrita para a ciência e a arte de seu tempo, preferindo criticar o Ocidente por inteiro enquanto divulgavam para elites intelectuais as supostas verdades metafísicas e esotéricas que pensavam discernir em seus estudos e vias espirituais. Nenhum dos dois pretendia realizar qualquer atividade política ou ter envolvimento com os afazeres do mundo moderno. A posição de Evola era flagrantemente distinta, consequência de um esoterismo que, pelo menos no discurso público, tomou outra trilha em relação aos dois Tradicionalistas mais famosos.

O italiano levava mais a sério a ideia de que as sombras da Kali Yuga não eram um rompimento definitivo com a esfera do Ser, o que seria impossibilidade pura e simples. As influências espirituais se esvaneciam na medida em que o ciclo se afastava do Princípio, mas elas nunca estavam ausentes de fato. Assim, era possível dialogar com o resquício de luz divina que existia por trás da decadência da Era. Isto significava para o italiano dialogar com as forças contemporâneas, tanto no terreno da arte, quanto no da ciência e no da ação política, visando potencializar suas positividades na direção de uma retificação. Podemos também interpretar a abordagem de Evola como tântrica, ainda que Guénon não concordasse que a distinção fosse exatamente esta.

Não apenas tântrica, mas marcadamente varmachara, o chamado “Caminho da Mão Esquerda”. Segundo Christopher D. Wallis, quanto mais à esquerda for a via tântrica, “mais ela enfatiza as seguintes características: não-dualismo, culto ao feminino, inclusão das mulheres, transgressão das normas sociais, simbolismo mortuário ocasional, e gurus carismáticos.” Em que grau essas características se aplicam à visão de Evola é matéria polêmica. Mas diferente de Guénon e Schuon, ele não tinha intenção de salvaguardar as grandes religiões como veículos tradicionais. Pelo contrário, as considerava incapazes de fornecer apoio para a retificação do Ocidente.

O Barão igualmente criticava o que entendia ser a defesa de uma “burocracia iniciática” nos escritos do metafísico francês. Para Evola, muitas das instituições e organizações esotéricas já não providenciavam aos seus adeptos a “realização de estados superiores”. Ou seja, eram também estéreis no terreno iniciático.

As divergências entre Julius Evola e René Guénon levantam alguns dos principais problemas da história do esoterismo ocidental e são fundamentais para entender a Dissidência Tradicionalista

Uma divergência ainda mais fundamental se dava em relação aos Grandes Mistérios. O francês defendia a superioridade brâmane em relação aos ksatryias. Mais ainda, considerava que o processo de “retrocesso de castas” teve início quando estes últimos se rebelaram contra a autoridade espiritual brâmane. A suposta rebelião se ligava a ideias sobre a Geografia Sagrada e os continentes perdidos de Hiperbórea e Atlântida, que por sua vez incluíam assuntos como o do Centro Tradicional Primordial e da Contra-Tradição, que não temos espaço para tratar aqui, mas que se refletiram profundamente na obra do russo Alexandr Dugin, que será abordada em textos futuros.

De todo modo, Evola pensava que as tendências espirituais inscritas no ksatrayia tornavam-no apto a uma iniciação superior pela “usurpação” ou “conquista” das energias veiculadas pelos brâmanes. Esta Iniciação transformava quem a possuísse em um ser acima das próprias varnas. Ora, esta figura existia também para Guénon, um estado de grande realização anterior à divisão da humanidade em castas, e que ele chamava de Hamsa, a condição primordial da humanidade. Evola sustentava, no entanto, que esta era também a função da Realeza Sagrada, o cume do poder do Estado e maior símbolo de transcendência na ordem social.

Assim, o Barão enxergava nas características próprias aos Ksatryias a chave para a retificação do Ocidente, e não na formação de uma elite intelectual [e portanto brâmane], como queria Guénon. A forma do Império -- com um governante sagrado, capaz de unir em si próprio a iniciação do guerreiro e a do sacerdote – seria aquela que representava no mundo o Homem Cósmico; não as civilizações em que a autoridade espiritual se concentrava nas mãos de brâmanes. No debate político da história europeia, os evolianos costumam dizer que estariam do lado dos gibelinos e do Império, contra os guelfos e o Papado. Esta quase inversão na hierarquia de ksatrayias e brâmanes era acompanhada também pela valorização da ação [espiritual] sobre a contemplação. Também se associava à valorização que Evola conferia em sua Metafísica da História às sociedades indo-europeias, consideradas ksatryia e ativas, e oriundas do Norte Global; em relação às sociedades orientais, tidas por sacerdotais [brâmanes] e contemplativas. [7] 

Enfim, estas discussões entre Guénon e Evola, que podem parecer sutis demais para os leitores, são vitais para quem deseja entender de modo apropriado o Tradicionalismo, incluindo o envolvimento de dissidentes com esta corrente de pensamento. Na verdade, boa parte da história das ideias esotéricas ocidentais se conecta com estas questões. Elas induzem a uma abordagem distinta do mundo ao redor, da natureza da ordem social, do papel das religiões e instituições sagradas, bem como visões díspares sobre a História, os ciclos cósmicos e as raízes dos processos de decadência espiritual e civilizacional.

Como dito no início, Evola se envolveu diretamente com o pensamento de sua época, em diálogo que tinha por objetivo impregnar de esoterismo o mundo em que vivia. Mesmo as obras mais polêmicas, como “Síntese da Doutrina da Raça”, visavam “corrigir” a perspectiva que ele considerava profana. Há muita polêmica a respeito de seu envolvimento direto com o nazi-fascismo nos anos 1940, ainda que ele próprio não se considerasse fascista e tivesse produzido críticas a essa ideologia desde os princípios dos anos 1930. É indubitável que suas escolhas naquelas décadas continuam inspirando movimentos neonazistas, embora ele também tenha realizado críticas ferrenhas ao Nazismo. O que aliás, também aponta um erro flagrante de Teitelbaum em entrevista concedida este ano.[8]

Depois da Segunda Guerra Mundial, Evola adotou uma postura pública aparentemente apolítica. A Idade Sombria teria atingido tal grau de degeneração que já não seria possível retificá-la. Nesta situação, o melhor seria o não-compromisso, a guarda interior contra as influências nefastas, a “saída para a vida interior” a fim de escapar da contaminação da degradação ocidental. Era uma abordagem que parecia contrastar com a anterior. Mas até que ponto o italiano considerava impossível uma ação que revertesse as condições da Idade sombria é tema polêmico entre seus próprios discípulos. Há quem diga que ele continuou ligado, de algum modo, a movimentos neofascistas em seu país. Outros relatos sugerem que sua paraplegia era uma farsa. Há polêmicas, inclusive, sobre qual seria sua verdadeira vertente espiritual – em “Julius Evola: o Sufi de Roma”, Frank Gelli declara que seu mestre era, na verdade, um cripto-sufi, o que redimensionaria completamente a obra de um autor que, para muitos, era o maior dos defensores das tradições pagãs indo-europeias.

Os estudiosos mais antigos do Tradicionalismo aprenderam sempre a ter um pé atrás e diferenciar atentamente entre o discurso que estes autores sustentavam em suas obras e suas reais perspectivas espirituais e intenções. Nenhum deles deve ser abordado com simplificações. Muitos aspectos da biografia deles se ocultam sob uma nuvem de mistérios, à espera de uma abordagem mais precisa em pesquisas futuras.

 

 2.5      A difusão do Tradicionalismo

 

A emergência da Dissidência Tradicionalista no debate político levantou um véu que escandalizou diversos estratos da sociedade ocidental e da mídia, que decidiram lidar com a descoberta repetindo jargões antifascistas e reafirmando sua crença na ciência, no progresso, nas liberdades individuais etc. Alguns criam espantalhos e, com chapéu de alumínio, imaginam uma grande rede de conspiração financiada por bilionários. Mas a verdade é que, antes mesmo de transbordar para a esfera propriamente política, o Tradicionalismo se difundia intensamente por diversos círculos intelectuais, artísticos, filosóficos e esotéricos dos países da Europa e da América. Voltamos ao início do texto para explicar a adesão cada vez maior a esta escola de esoterismo.


Estátua de Nagarjuna, principal nome da escola Madhyamika, que possibilitou a conciliação entre os brâmanes e o Budismo



A resposta é mais simples do que parece. Há pelo menos setenta anos, os fundamentos ideológicos e filosóficos do Ocidente vem sendo esmiuçados, relativizados, criticados e refutados no campo intelectual e acadêmico. Em debate recente com o filósofo Bernard Henri Lévy, Dugin apontou como as ideias tradicionalistas estavam mais próximas do conhecimento produzido nas universidades norte-americanas, principalmente na Antropologia, do que a crença hoje "cândida" na ideologia do progresso, no Iluminismo ou na universalidade dos valores eurocêntricos.

O Ocidente não é criticado apenas pelo Tradicionalismo, mas virtualmente por toda e qualquer corrente filosófica do último meio século. A partir dos anos 1960, as classes médias tiveram acesso aos debates oriundos da Academia. Quem de fato é hoje ingênuo o suficiente para sustentar o valor de face do cientificismo e do evolucionismo oitocentista, a não ser aqueles com parco acesso à informação de qualidade? Neste sentido, muitos elementos do Tradicionalismo estiveram na vanguarda, pelo menos no campo do esoterismo, de uma crítica que se tornou generalizada nas décadas recentes. E, no caso Tradicionalista, ela é feita não a partir de um relativismo completo e individualista, mas de matrizes de pensamento que estão entre os maiores arcabouços intelectuais já produzidos pelo homem, do neoplatonismo ao taoísmo, da mística sufi ao Shaivismo de Caxemira.

Por isso também se equivoca quem imagina que esta escola metafísica atraiu apenas gangues neonazistas desejosas de reeditar as polêmicas – que compreendem muito pouco, diga-se de passagem – de Julius Evola. Na verdade, os meios tradicionalistas estão ainda mais repletos de adeptos da contracultura, hippies, estudantes cultos de filosofia e esoterismo, pessoas de sensibilidade de esquerda, críticos do colonialismo. O Tradicionalismo se tornou perfeito para a Dissidência em uma época em que o mito burguês e ocidental perdeu sua capacidade de mobilizar corações e mentes.

 

 

2.6      Pontes para o próximo capítulo

 

A)    O  Tradicionalismo não é necessariamente uma linha de chegada, mas um portal que dá acesso a um oceano imenso de autores. Ter isso em mente é fundamental para que se compreenda a dinâmica dos próprios grupos que se vincularam a esta escola. Muitos seguiram a trilha de Guénon, Schuon e se converteram a uma espiritualidade tradicional. Alguns descobriram as ‘fontes tradicionais’ mencionadas por estes autores nos ritos, práticas e metafísicas das vias espirituais que escolheram. O sujeito começa em Guénon, e logo está lendo Abhinavagupta ou São Simeão Novo Teólogo. Parte destes passa não só a mobilizar o Tradicionalismo contra o Ocidente, mas também a ler o próprio Tradicionalismo, e a criticá-lo, a partir da ótica de suas religiões e tradições. O exemplo típico dessa abordagem é o de São Seraphim de Platina.

B)    No caso de pessoas vinculadas a Schuon, há tendência de assumir uma identidade religiosa mas continuar lendo a própria via espiritual a partir da ótica da “Unidade Transcendente das Religiões”. De todo modo, nem toda pessoa realiza esta "passagem" pelo portal do Tradicionalismo. Muitos tornam os livros de um ou mais de seus autores em novas "Escrituras Sagradas".

C)     Os frutos mais óbvios do Tradicionalismo não se encontram no terreno político. E há de se ressaltar que muitos tradicionalistas nunca se interessaram diretamente por este tipo de atuação.

 

Na próxima postagem, vou abordar rapidamente, e sem maiores pretensões, alguns exemplos de recepção do Tradicionalismo no Brasil. E finalmente falar sobre Olavo de Carvalho e sua importância capital na gestação da Dissidência Tradicionalista, principalmente entre aqueles que interpretaram a ação do “Filósofo da Virgínia” como flagrantemente dissonante com os princípios mais fundamentais da escola.


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[1] O discurso de Guénon se dá muitas vezes em múltiplos níveis, por mais que ele tente esclarecer, a cada passagem, o âmbito a que se está referindo. Assim, os epítetos "Oriente" e "Ocidente" são aplicados por ele a dois tipos de mentalidade, àquela tradicional e à Moderna, tendo esta última se manifestado na Europa a partir do século XV. Por outro lado, Oriente e Ocidente também podem ser vistos sob a ótica de uma Geografia Sagrada, que em Guénon se vincula ao tema dos Ciclos Cósmicos e dos Centros Iniciáticos que tem a função de transmitir e manter os ensinamentos tradicionais em cada período específico. Este é um tema muito complexo, e não pretendo abordá-lo de modo sistemático e direto neste texto.

[2] A Realidade Primeira une em si os dois pólos principais cuja articulação vão gerar todos os Universais e toda a Existência propriamente dita: Purusha [o Espírito, o 'Eu', o pólo ativo ou Masculino] e Prakriti [A Matéria, a Substância, o pólo passivo ou Feminino]. A queda ou afastamento do princípio é, portanto, uma materialização cada vez maior do mundo e de seus estados correspondentes, rumo a uma indistinção total na matéria primordial.

[3] Destruição é a agenda do Tradicionalismo 

[4] Não há espaço para tratar dos aspectos de uma Antropologia e de uma Psicologia Tradicionalista. Mas há uma correspondência analógica entre a constituição do ser humano em sua estrutura psicossomática, e o Cosmos ou o Homem Universal. Há também uma analogia entre ambos e a Ordem Social. Para uma abordagem acadêmica, vejam "Homo Hiearchicus: o sistema de castas e suas implicações", do antropólogo Louis Dumont, em que são tratadas as diferenças entre as sociedades holistas [tradicionais] e as individualistas [modernas]. 

[5] Neste sentido, é necessário distinguir o Perenialismo de Schuon com a postura e as ideias Tradicionalistas de René Guénon.

[6] Ou seja, um sujeito continuaria praticando sua religião, e inclusive chegando a uma posição de autoridade na instituição religiosa correspondente, mas no fundo se vincularia às ideias da metafísica exposta por Schuon, aceitando sua autoridade superior e esotérica. Um fenômeno também ligado a uma forma de cripto-sufismo. Esta questão foi mais tarde explorada por Olavo de Carvalho, que a associou a sensibilidades islamofóbicas do neoconservadorismo e da direita europeia. Tratarei deste ponto no próximo texto.

[7] Este é um tema caro ao esoterismo oitocentista: as diversas Eras da história humana, com a sucessão cíclica dos Centros Iniciáticos segundo uma Geografia Sagrada. Pode ser encontrado tanto em Blavatsky quanto em Papus, tanto em organizações rosacrucianas quanto em maçônicas e para-maçônicas. 

[8] É verdade que Teitelbaum se esforçou algumas vezes para desvincular o Tradicionalismo do nazismo e do fascismo [vide: A base ideológica que funda a nova direita]. Mas em outras ocasiões escorregou sob a pressão do entrevistador, chegando a dizer à Folha de São Paulo que "Julius Evola [1898-1974], que é o principal político Tradicionalista, colaborou com o governo fascista na Itália, mas no fundo nazistas e fascistas eram muito modernos para ele, muito materialistas. Mas creio que o Tradicionalismo não tenha nenhuma crítica particular ao nazismo." [vide: Guerra na Ucrânia reflete doutrina de Dugin]. A declaração é surpreendente, porque dá a entender que o autor de "Guerra pela Eternidade" não domina a obra daquele que considera o "principal político Tradicionalista". Afinal, Evola escreveu uma obra específica com críticas veementes ao nazismo. Em "Notas sobre o Terceiro Reich", ele critica a vulgarização, massificação e filistinismo nazista, suas distorções de conceitos como o de Reich [que, segundo ele, jamais poderia ser um modelo político Tradicional], a "insuperável incapacidade" da simbologia nazista face à dimensão transcendente, o nacionalismo, e até a mentalidade "plebeia" [em um sentido de varna] de Hitler e associados. Aliás, até mesmo a "Síntese da Doutrina da Raça" pode ser encarada como uma ferrenha crítica ao racismo biológico, ao cientificismo e ao materialismo das concepções nazistas.

domingo, 22 de maio de 2022

Dugin e a Nação, ou: a Geopolítica de Dugin -- parte III

Os partícipes da "Grande Aliança Revolucionária" projetada por Dugin, ou os defensores e propagandistas incondicionais de suas ideias gostam de diferenciar, retoricamente, entre “Grande” e “Pequeno” nacionalismo. É uma estratégia para evitar chocar pessoas mais sensíveis com a oposição de Dugin à existência do nacionalismo, das nações e do conceito moderno de Estado-Nacional. No livro “Rise of the Fourth Political Theory”, publicado em 2017, o russo afirma em meio a uma entrevista sobre Martin Heidegger:

 

“O Nacionalismo é um conceito moderno, tal como o Internacionalismo, que é seu correlato. Sou contra o nacionalismo e contra todas as criações da Modernidade. Estou profundamente convencido que a Modernidade está absolutamente errada em todos os sentidos.''

 

Em artigo publicado no site Katehon, em março de 2022 ["Nationalism: Criminal Fiction and Ideological Impasse"] , Dugin afirma:


"Provavelmente, apenas algumas pessoas prestam atenção seriamente ao fato de que a Quarta Teoria Política, à qual dou minha adesão, dá a maior das atenções à crítica do nacionalismo. Ainda mais impressionante é a crítica do Liberalismo e a rejeição do dogma marxista. Mas igualmente necessária e fundamental é a rejeição radical não só do nacionalismo, mas até mesmo da nação." [1]


A distinção entre Grande e Pequeno Nacionalismo se refere, na verdade, à diferença entre Grandes Espaços/Civilizações/Impérios, defendida no modelo de Multipolaridade do russo, e Estados-Nacionais, que deveriam perder sua soberania legal e/ou real. O assunto é abordado em “Teoria do Mundo Multipolar”, de 2012:


“Uma vez que o sistema westfaliano recusa formalmente o reconhecimento de qualquer realidade legal e legítima que transcenda a soberania nacional, a normatização espacial da esfera das relações internacionais não consegue obter uma expressão conceptual formal. Contudo, o equilíbrio de poder por vezes é consistente e óbvio ao ponto de pela sua própria natureza se equiparar à lei e, deste modo, assenta na lei de solidificação. Tal sucedeu com a “Doutrina Monroe”, a lei do mar inglesa, a “Doutrina Wilson” ou os termos do Tratado de Versalhes: as potências dominantes do mundo identificaram os seus interesses nacionais (assegurados pelo uso da força) como norma do estado das coisas, embora os processos decorressem fora do âmbito das suas fronteiras e a uma ampla distância destas. [...] O multipolarismo, tal como o bipolarismo e o unipolarismo, não é um conceito legal e pode bem não o ser no futuro mais próximo, ou até mesmo nunca. Trata-se da descrição do real equilíbrio de poder entre os principais actores a nível mundial. Consequentemente, tanto a “civilização” quanto a “ordem multipolar” possuem o estatuto legal de conceitos prévios: existem e podem ser impostos pela força do poder e dos recursos, podem ser declarados, podem ser funcionais e reais. Em determinadas circunstâncias podem até substituir o modelo westfaliano,  seria então lógico colocar-se a questão da rejeição formal da soberania nacional, transferindo tal conceito para uma instância diferente – a própria civilização ou pólo do mundo multipolar.”

 

A construção dos “Espaços Civilizacionais” [como eu disse em texto anterior, Dugin não ‘naturaliza’ as Civilizações/Grandes Espaços, mas diz que devem ser construídos] pode ser realizada pela força, segundo os interesses dos Estados vigentes. É óbvio que estes Estados seriam os mais poderosos. Dugin está aplicando o Realismo a este ponto de sua Teoria do Mundo Multipolar.

O papel dos Estados Nacionais nesta estratégia geopolítica é exposta no livro seguinte, “Geopolítica do Mundo Multipolar”, publicado também em 2012. Mais uma vez, os neo-eurasianistas espelham o que seu inimigo declarado, o Ocidente Unipolar centrado nos EUA, realizam ao redor do planeta com o objetivo de manter seu “Império Mundial”: o “construtor da civilização” redesenha as fronteiras, destrói e constrói nações conforme seu interesse. Os EUA o fazem em prol do globalismo. Os eurasianos devem defender o mesmo, mas em prol da Multipolaridade.

Ou seja, na Geopolítica de Dugin, um Estado Nacional deve ou não sobreviver na medida em que impulsione ou impeça o projeto de Multipolaridade Eurasiano. O Estado Nacional pode ser forte o suficiente para ser o pólo de construção de um Grande Espaço/Civilização/Império, como a Rússia estaria fazendo atualmente na Ucrânia. Ou pode se fraco, um “pequeno nacionalismo”, que contribui para a manutenção do Sistema Westphaliano, uma elaboração moderna que, para Dugin, serve apenas de plataforma de atomização da vida pessoal e de alavanca para a futura globalização.

Existe um terceiro caso, o do Estado Nacional forte que obstaculize a Multipolaridade e que não possa ser engolido por nenhum outro em seu entorno geoestratégico. Neste caso, há duginistas que defendem que tal Estado deveria ser fragmentado e dividido, “balcanizado”, como meio de facilitar o processo de integração civilizacional posterior. Esta linha de raciocínio, inclusive, está na origem da criação de alguns movimentos dissidentes separatistas ligados à QTP, como a “Frente Popular Austral”, e a atual “Resistência Sulista”. Tratarei deste tema mais detidamente no âmbito da História da Dissidência Tradicionalista no Brasil. [abra o link.]

Seja forte ou fraco, o Estado Nacional deve dar lugar a um Império que coloque a soberania em âmbito superior ao da identidade nacional. Os passos estão descritos em “Geopolítica do Mundo Multipolar”, continuação de "Teoria do Mundo Multipolar":

 

“A Teoria do Multipolarismo demonstra que os Estados nacionais são um fenômeno eurocêntrico, mecânico, e, para uma maior dimensão, “globalista”, no seu estágio inicial (a ideia de identidade individual normativa na forma do civismo prepara o chão para a “sociedade civil” e, correspondentemente, para a “sociedade global”). Que todo o espaço mundial é separado hoje em territórios de Estados nacionais é uma consequência direta da colonização, do imperialismo e da projeção do modelo ocidental em toda a humanidade. Assim, um Estado nacional não carrega em si mesmo qualquer valor autossuficiente para a Teoria do Multipolarismo. A tese da preservação dos Estados nacionais na perspectiva da construção da ordem do mundo multipolar é somente importante no caso, se isso impede pragmaticamente a globalização (não contribui com ela) e oculta sob si mesmo uma realidade social mais complicada e proeminente – afinal, muitas unidades políticas (especialmente no Terceiro Mundo) são Estados nacionais simplesmente nominalmente e elas representam virtualmente várias formas de sociedades tradicionais com sistemas de identidade mais complexos. Aqui, a posição dos proponentes do mundo multipolar é completamente oposta aos globalistas: se um Estado nacional efetua a unificação da sociedade e auxilia a atomização dos cidadãos, ou seja, implementa uma profunda e real modernização e ocidentalização, tal Estado nacional não tem qualquer importância, sendo apenas uma sorte de instrumento da globalização. Tal Estado nacional que não está se preservando dignamente não possui sentido algum na perspectiva multipolar. Mas se um Estado nacional serve como uma face frontal para outro sistema social – uma cultura, civilização, religião, etc., original e especial - deveria ser apoiado e preservado enquanto atualiza sua evolução vindoura em uma estrutura mais harmoniosa, dentro dos limites do pluralismo sociológico no espírito da Teoria Multipolar.” [Capítulo 3]

 

O trecho acima traz informações boas para se pensar. Dugin critica em outro ponto a sociedade norte-americana por ela não se fundamentar em identificações étnicas, e na citação considera o "civismo" como um passo rumo à sociedade global. Cabe lembrar que, assim como nos EUA, a maioria esmagadora da população brasileira tampouco tem identificações étnicas. Temos diferentes regiões culturais [o mundo caipira, o mundo gaúcho etc.] que trespassam fronteiras estaduais e raciais, e que não se vinculam a qualquer etnia particular. Ser caipira ou gaúcho não é pertencer a uma etnia, mas a uma cultura macro-regional. O Brasil não se formou como um "Império Multi-Nacional", como a Rússia. O princípio gerador da "Brasilidade" foi o da "aculturação" dos povos que aqui chegavam, como se lê em Darcy Ribeiro. Um processo de "etnicização" e criação de "nacionalidades" distintas no território brasileiro seria uma novidade imensa em nosso processo histórico, e com consequências imprevisíveis, quando não destinado a um fracasso retumbante. 

Devemos lembrar também que os Grandes Espaços/Civilizações fazem parte de uma estrutura hierárquica. Nem todos são polos geopolíticos mundiais, apenas os que se localizam no Norte Geopolítico, segundo o modelo de “Mundo Quadripolar” defendido por Dugin, e que descrevi na postagem: A Geopolítica de Dugin -- Parte II . [abrir o link.] No modelo "Quadripolar", a civilização latino-americana estaria subordinada ao pólo geoestratégico e geopolítico dos EUA, em uma reprodução da Doutrina Monroe.

Voltando ao ponto principal, a  citação ajuda a entender o apoio efusivo de Dugin à ação da Rússia na Ucrânia. A Rússia é o Estado forte que, a partir do uso da força em seu entorno geoestratégico, pode destruir os Estados Nacionais que o circundam [considerados como instrumentos da globalização pelo fato mesmo de serem nacionalismos e reproduzirem o modelo Westphaliano], a fim de “construir” a Civilização Eurasiática [Grande Espaço/Império Regional]. Que esta construção possa ser realizada manu militari, em imitação às práticas colonialistas e neocolonialistas, é dito explicitamente pelo geopolítico russo em “Rise of Fourth Political Theory”:

 

"Claro que, ao falar da expansão da influência russa no espaço pós-soviético, não estamos insistindo na colonização direta no sentido antigo. Os Impérios de hoje raramente recorrem a métodos semelhantes (embora, como vimos no caso de Iraque e Kosovo, eles ainda sejam empregados; consequentemente não podemos desconsiderá-los inteiramente)." [Capítulo 5]

 

 Nesta mesma obra, Dugin oferece um quadro para explicar as diferenças entre as Primeira, Segunda, Terceira e Quarta Teorias Políticas em relação aos mais diversos tópicos. Quando o assunto é nação e nacionalismo, a QTP duginiana os considera como aberrações burguesas que devem ser dissolvidas.




No quadro, destacado em vermelho, Dugin defende a dissolução da ideia de nação na Quarta Teoria Política

É interessante imaginar como esta linha de raciocínio se aplicaria no Sul Global, ou mesmo fora da Rússia. Dugin parece ler a realidade mundial a partir de parâmetros culturais próprios. O Estado Russo nunca foi um Estado-Nacional, é herança dos antigos Impérios Multi-Nacionais europeus, que abrigavam diversas nacionalidades [históricas, linguísticas, ou étnicas], como no exemplo do Império Austríaco oitocentista. A Rússia atual se sustenta em um modelo de Federalismo “Matriosca” [bonecas russas em que as menores ficam dentro da maior]: o Estado abriga Repúblicas e Oblast autônomos, com direitos, línguas e identidades específicas. É uma espécie de construção que faz sentido na História russa e de outros países da Europa. Quando se tenta enquadrar outras realidades nacionais a este parâmetro particular, temos o que acontece hoje na Ucrânia. É ilusão imaginar que todos os ucranianos contrários à absorção de seu país pelo vizinho sejam “neonazistas russofóbicos”: eles se veem com uma nação distinta e reivindicam o direito a um Estado próprio. Ocorreria o mesmo caso a Rússia decidisse invadir a Polônia -- como já fez outras vezes na História, diga-se de passagem.

A solução que Dugin oferece para impasses como este é a aplicação pura e simples de um tipo de realismo: o mais forte impõe seus interesses pela força, caso necessário. Se este modelo é complicado para a Rússia, significando uma expansão militar visando absorver os países em seu entorno e ajustá-los à sua estrutura de Império Multi-Nacional [e inviabilizando as regiões que não se adequam a esta construção, como o Oeste ucraniano], que dirá para outros contextos, como o latino-americano. As identidades nacionais brasileira, uruguaia, paraguaia, venezuelana, argentina etc. teriam de ser dissolvidas em nome de quê, exatamente? A construção de uma Pátria Grande tem de seguir outras linhas, e que deixem espaço para a realidade desprezada pela Multipolaridade eurasiana, os Estados e identificações Nacionais, preservados sem recurso ao "direito do mais forte". Guerra do Paraguai, nunca mais, conflito em que todos os lados acabaram perdendo muito, incluindo o Império do Brasil, cujo regime foi condenado a médio prazo. 

Desde então, a Diplomacia brasileira busca evitar conflitos militares nas fronteiras sul-americanas, para que não fossem engolidos pelos grandes conflitos entre as potências do Norte Geopolítico, criando entre nós trincheiras estritamente militares em prol de interesses alienígenas. Cabe pensar seriamente se uma mudança nesta orientação contribuiria ou não para a integridade territorial brasileira, de nossos vizinhos e para a independência e soberania dos povos latino-americanos.

Também seria interessante imaginar o papel e função dos EUA. O que os neo-eurasianos diriam se os ianques decidissem agir no seu entorno geoestratégico a partir da força militar, redesenhando as fronteiras arbitrariamente para defender sua "fortaleza americana" e seu "Império Regional"? Esta é a lógica estrita da Geopolítica de Dugin, e inclusive consequência implícita em seu "Modelo Quadripolar". Os latino-americanos teriam "independência civilizacional" para viver segundo seus costumes, culturas, organização político-social. Mas não soberania completa, já que o polo integrador ficaria nos EUA. 

A Multipolaridade duginiana não serve aos interesses brasileiros, obviamente. Quando muito, somos instrumentos da guerra que o geopolítico russo pretende mover contra os EUA. Mas não sujeitos ativos na proposta de um mundo multipolar que contemple a independência completa do Sul Global.


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[1] https://katehon.com/en/article/nationalism-criminal-fiction-and-ideological-impasse