Dias atrás, descrevi, em linhas gerais, a psicologia de Tomás de Aquino, mais especificamente aquela ligada à 'parte sensitiva' da alma, que partilhamos com os animais [perfeitos], e ao Intelecto/Vontade, bem como as ligações dessas faculdades com a teologia moral e a uma metafísica fortemente aristotélica.
Aproveito a deixa para falar agora de um psicologia ascética mais vinculada à antropologia cristã-ortodoxa.
Tomás de Aquino manteve a tripartição da alma herdada da tradição platônica e isso também permanece na Filocalia e demais escritos dos Padres do Deserto. Podemos dizer, então, que a alma humana possui uma parte estritamente erótica ou desejante [epitumeia] -- que Tomás vinculava à ''alma vegetativa''; uma parte irascível [tímica] -- que Tomás vinculava à ''alma animal''; e a parte superior, ou o Nous -- e que ele reduzia, como expliquei, à capacidade racional, diferente da Ortodoxia.
Essa alma tripartite pode ser abordada em duas categorias mais gerais: Tomás a dividia em Intelecto e partes irracionais [já que ele reduzia o Intelecto à razão]; os Padres do Deserto a tratavam como Nous [Intelecto no sentido de potência de intuição espiritual, ou de essência da alma] e partes passionais [epitumeia e timo].
No ascetismo ortodoxos, cada uma dessas partes possui suas faculdades, que, depois da queda, passaram a operar segundo os ''prazeres da carne'', de modo desordenado, decaído, e 'objetificando' o mundo em caracteres sensíveis. A operação adâmica, ou natural no sentido original do termo -- como natureza antes da queda, natureza saída das mãos de Deus -- é chamada de virtude. Mas a operação desordenada e doentia é chamada de ''paixão'' [em sentido genérico] ou 'logismoi' [nas obras de Evágrio].
O primeiro estágio do ascetismo ortodoxo, chamado de ''vida prática'', é fazer com que as faculdades psíquicas deixem de operar segundo a carne e voltem a operar segundo o Espírito. Dizendo de outra maneira, é fazer com que as operações das partes passionais da alma [ou seja, o desejo/eros/epitumeia e o temperamento/Ira/timo] saiam do estado apaixonado e retornem à virtude.
[O tratamento mais direto do Nous vem em um estágio mais avançado, o de gnóstico, embora as fronteiras entre eles não sejam tão rígidas quanto uma exposição ''esquemática'' pode dar a entender.]
Existem oito faculdades mais gerais das partes passionais da alma, e portanto oito paixões mais gerais também. No ascetismo ortodoxo, estas oito paixões [logismoi] são foco do ataque de demônios específicos. Ou seja, de inteligências angélicas decaídas e rebeladas que 'operam' energeticamente [''ergon''] no âmbito de uma dessas faculdades.
De modo que, a tipologia das faculdades da alma é também uma tipologia das paixões [e de suas virtudes, que são o estado natural de 'funcionamento' delas], e também uma demonologia.
Antes de apresentar a tipologia das paixões, é bom lembrar que ela nada tem a ver com a tomista, segundo a qual o eros e o temperamento podiam se encontrar ou não moderados pela razão. Dependendo do caso, geravam ou os vícios ou as virtudes correspondentes a essa moderação, sendo o estado equilibrado da alma chamado de Justiça e Prudência. Na Ortodoxia, o caso nada tem a ver com o raciocínio ou a capacidade de abstração, e o ascetismo se dá dentro de um contexto de batalha contra os demônios correspondentes a cada âmbito de operação de uma das faculdades da alma. Outras diferenças vão ficar claras conforme o modelo for apresentado.
A origem primeira das faculdades passionais do homem é ''amor-próprio''. Embora não desenvolva essa ideia, Evágrio a afirma textualmente no Skemmata: "O primeiro de todos os 'logismoi' é o pensamento do 'amor-próprio' [philautia], do qual vem os Oito''.
A Filáucia não tem um sentido negativo, e pode ser entendido aqui no mesmo tom de Aristóteles ou Sêneca [o primeiro dizia que todo amor que o sujeito pode ter pelos outros é extensão do seu amor por si mesmo]; está ligada à consciência do eu, gerada pelo deleite do sujeito com a descoberta de sua própria beleza. Eu o vincularia àquilo que Freud chamou de ''narcisismo primário'' -- e que difere do complexo narcísico, que ele exemplificou por meio do mito de Narciso, também usado pela filosofia clássica para se referir à queda da Filáucia no egoísmo, arrogância e idiotia.
Mas eu não vou muito mais longe nisso.
Evágrio do Ponto costuma classificar as Oito Paixões [Logismoi] mais gerais segundo a ligação de cada uma delas com as operações da parte 'erótica' ou 'irascível' da alma: aquelas são ''paixões do corpo''. O segundo conjunto, as ''paixões da alma''. Nessa abordagem, não é correto dizer, como os tomistas, que todas as paixões tenham raízes no corpo enquanto tal, embora todos os oito logismoi estejam ligados aos prazeres da carne [por oposição aos prazeres espirituais, pois a gnose gera também uma forma de deleite ou gôzo].
As paixões do corpo são a Gula [Gastrimargia] e a Luxúria [Porneia]. As paixões da alma são a Avareza [Philargyria], Tristeza [Lypia], Ira [Orge], Acídia [Akedia], Vanglória [Kenodoxia] e Orgulho [Hiperefania].
As paixões são movidas da seguinte forma: as representações mentais [noema] de objetos sensíveis aparecem no fluxo de consciência. É um processo natural e involuntário, seja qual for sua origem [que podem ser três: a recepção emocionada de uma percepção sensorial; a reminiscência de uma percepção sensorial apaixonada e que está 'estocada' na memória; a sugestão demoníaca, sendo que esta última pode atuar também por meio das duas anteriores.]
Enfim, trata-se de processo involuntário. Mas na medida em que o sujeito aceite a representação mental em sua consciência e a sustente por um ato de vontade [ou omissão], e dialogue com ela [dianoia, discurso interior], a partir daí há pecado e as faculdades da alma já estão em operação de modo equivocado [paixão]. De modo que o combate às paixões depende, antes de tudo, de vigilância da consciência e de uma guerra mental. [Sendo curto e grosso, a partir do momento que se dialoga com o logismoi, já era, o pecado vem.]
As paixões tem vínculos umas com as outras [assim, por exemplo, a tristeza, que está relacionada à parte irascível da alma, pode estar vinculada ao desejo de algo que se perdeu -- uma paixão do eros -- e pode levar à Ira. Ou pode ser causada, quem sabe, por uma vanglória frustrada]. Existem métodos apropriados para combater cada uma dessas paixões e os demônios que as instigam.
Mas, de modo bastante geral, podemos dizer que as paixões do corpo são diminuídas com jejum, trabalho corporal e solitude. As paixões da alma respondem principalmente à salmodia, à longanimidade e à caridade. As paixões em geral são tratadas por leitura das Escrituras, vigílias e oração.
Quando o homem conquista as paixões, permitindo que floresçam as virtudes em cada faculdade das partes passionais da alma, atinge o estado que Evágrio chamava de impassibilidade [apatheia]. Nem todos os Padres do Deserto chamavam esse estado de impassibilidade. Alguns deles, como São Diódoco de Foticeia e São João da Escada, usam o termo apenas para a restauração final da imagem de Deus alcançada na theosis, num patamar muito mais avançado do que a da 'vida prática'. Essa diferença se dá porque a 'apatheia' plena jamais é alcançada antes da Teologia/Visão de Deus, ou seja, da deificação [theosis].
A virtude síntese da apatheia é a caridade, ou amor espiritual. É esse amor espiritual que atualiza o Nous, a parte superior da alma, que possui capacidade de conhecimento direto da realidade.
É o momento de recordar que Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, dizia que a alma sensitiva possuía cinco sentidos exteriores [paladar, olfato, tato, audição e visão] e quatro interiores [senso comum, fantasia, poder estimativo e poder memorativo] [1]. Isso está correto. Mas nas obras dos Padres do Deserto, o Nous tem também ''sentidos espirituais''.
Esses sentidos espirituais são análogos aos sentidos corpóreos. É possível dizer que há uma percepção espiritual auditiva, outra visual, outra olfativa e assim por diante. Não se trata efetivamente de 'percepção sensorial', mas é análoga a ela. [Evágrio, por exemplo, ao descrever o modo como os demônios instigam as paixões, ensina que cada um deles tem um ''odor característico'', ou seja, uma energia ou ergon -- operação -- que pode ser percebido pelo asceta como um ''odor'']. São Serafim de Platina tratou mais detidamente desse assunto em uma de suas obras.
Enfim, assim que o asceta alcança um grau suficiente de impassibilidade, e na medida mesma da impassibilidade que conquista, se inicia uma nova etapa de sua ascensão, que é a da gnose. A contemplação ou Gnose se inicia pela Segunda Contemplação Natural, que é um nível inferior da intuição espiritual. Nesse nível, o gnóstico contempla os logoi [razões ou Ideias, em um sentido platônico] dos objetos corpóreos.
Tratei desse tema quando abordei a diferença entre a Visão Beatífica e a Deificação. Santo Agostinho dizia que os logoi de todas as coisas criadas podiam ser vistos na Mente de Deus [Tomás de Aquino depois vai entender isso como contemplação da essência divina, algo que não penso estar implicado na abordagem agostiniana].
Mas segundo Evágrio, os logoi dos entes corpóreos estão inscrito na Natureza Original, assim como a arte de um artista pode ser vislumbrada em suas obras. Esses logoi são a Sabedoria Divina [Sofia], uma operação do Logos no nível da Natureza [não da natureza decaída, mas aquela saída das mãos de Deus].
Pois bem, a segunda contemplação natural vai iluminando o Nous do gnóstico [a gnose é a alteração na mente gerada pela contemplação unitiva com os logoi, com a arte do grande artista, ou com a sabedoria divina, e portanto causa uma transformação na mente do asceta]. Os sentidos espirituais são aguçados e apurados na medida mesma dessa iluminação. E vão preparando o gnóstico para uma outra transformação, quando então se torna capaz da primeira contemplação natural.
Antes disso, convém dizer o seguinte: existem também demônios que tentam desviar o gnóstico no campo da contemplação natural. A atividade demoníaca [e a tipologia dos demônios] não cessa com a cura das partes passionais da alma, com a superação dos Oito Logismoi, com a consecução da impassibilidade.
Existem ''tentações'' e ''vícios'' noéticos, no sentido estrito do termo, ou seja, demônios que atacam diretamente a atividade intuitiva-espiritual do Nous. É o que na tradição athonita se chama de ''Delusão'', uma gnose demoníaca, e que está na origem dos heresiarcas [já que todo gnóstico é um professor]. De modo que, se a guerra na 'vida prática' é contra o vício, e portanto se encontra em um âmbito moral; na vida gnóstica, a guerra é contra a falsidade e em nome da Verdade.
Outro dia falo da Primeira Contemplação Natural, que é a gnose dos Poderes Angélicos [e demoníacos mais elevados, já que demonhos são anjos também], tanto de seus 'corpos' quanto de seus logoi.
Lembrando que a Contemplação Natural não é o fim último do gnóstico. Acima da Primeira Contemplação Natural está a Teologia em sentido estrito, ou seja, a Visão de Deus, também chamada de ''gnose essencial''.
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[1] A análise das operações da alma em Tomás de Aquino tem nuances importantes que levam a confusões quando comparada com a descrição da psique em obras ortodoxas ou em outros tratados sobre a vida espiritual.
Falemos de algumas.
Tomás encara a alma como ''forma do corpo'', com rigor aristotélico. O Intelecto -- que os Santos costumam chamar de Nous -- seria um poder da alma. E a pessoa se refere ao composto alma e corpo.
Ora, na Ortodoxia a abordagem é um tanto mais platônica. A alma não é exatamente a forma do corpo, mas seu governante interior -- que em certo sentido também é prisioneiro. O corpo é instrumento da alma mais do que sua ''matéria'' somente. Além disso, Santa Macrina afirmava que o Nous não é só o nome de um poder da alma, mas da própria essência da psique.
[Tenho um amigo que costuma dizer que a pessoa é como uma cebola, e é por aí.]
O Nous como essência da psique é a própria pessoa humana, ainda que os vínculos com o corpo sejam fundamentais sob dada perspectiva.
Tomás de Aquino segue a divisão tripartite da alma encontrada em Platão, mas a 'complexifica' seguind os passos de Aristóteles. Nada de errado nisso, a psicologia aristotélica é mesmo mais elaborada. O Doutor Angélico usa a divisão vegetativa/sensitiva/intelectual.
A alma sensitiva tem cinco faculdades exteriores e quatro interiores. Os cinco exteriores são os sentidos corporais: visão, audição, tato, paladar e olfato. Os interiores dizem respeito a:
1) O senso comum -- que organiza as sensações corpóreas em uma percepção unificada. Assim, se vejo uma galinha, sinto seu cheiro, e escuto seu cacarejo, não tenho percepções dissociadas. Cada sentido captou parte da realidade, mas o senso comum as tornou uma percepção unificada;
2) A fantasia -- muitas vezes chamada de 'imaginação', e que se presta a muitos mal entendidos. No tomismo, a fantasia é um 'estoque' das imagens percebidas. Um depósito das sensações perceptuais unificadas pelo senso comum. Ela não é um poder 'combinatório' de imagens, nem muito menos capaz de acessar ou guardar o universal. A fantasia, tal como entendida aqui, é operação da alma sensível, partilhada com os animais perfeitos, não está no âmbito racional nem muito menos noético.
3) O poder estimativo-- modo por meio do qual os animais tem capacidade de 'estimar', instintivamente, algo em termos de utilidade e desejo. Pensem num tico-tico construindo o próprio ninho, um macaco usando uma vara pra capturar formigas, ou num rato sabendo que a sombra do predador é perigosa. No homem, Tomás de Aquino o chama de ''juízo particular'', porque se dá também pela comparação entre imagens particulares.
4) O poder ''memorativo'' -- também chamado comumente de ''memória'' e que também se presta a confusões. No caso, é também um estoque ou depósito de avaliações do poder estimativo ou de juízos particulares [no caso do homem]. Está vinculado ao senso de passado, e no homem é acessado como reminiscência. O poder memorativo não deve ser confundido com a atividade intelectual que Tomás chama de memória, e que é capaz de guardar conceitos objetivos e subjetivos, e portanto lida com abstrações e universais.
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