domingo, 12 de abril de 2020

A ética do sambista -- apontamentos sobre a cultura popular carioca, ou: Metafísica da Festa no Rio, parte I

Semanas atrás, falei de passagem da famosa polêmica entre os sambistas Noel Rosa e Wilson Baptista, pouco conhecida na época em que aconteceu, quando ficou restrita ao mundo dos bambas e das redes de música e malandragem do Rio dos anos 1930, mas que virou símbolo de uma importante encruzilhada em que a vida da cidade e das classes populares se encontrava na época.

Muitas pesquisas tem apontado que a verdadeira causa do embate entre os dois músicos foi a disputa por uma mulata. Noel perdeu a parada, não se conformou e esperou um bom momento para se vingar do rival através de um samba.

O evento que detonou o embate tem pouca importância e não eclipsa seu sentido mais abrangente. O conflito permite apontar as diferentes propostas e alternativas que, por meio dos dois bambas, seduziam os corações dos sambistas do Rio. Estava em jogo o significado do próprio termo, o que era de fato ser um malandro, qual era a ética daqueles que se dedicavam ao samba.

Digo ética num sentido forte. Ser sambista não era só fazer um tipo de música com certo ritmo e gênero. Era antes de tudo uma rede de sociabilidade que implicava em um modo de vida, de relação com a sociedade, posicionamento frente aos desafios da vida e também da morte.

Diferente do que muitos pensam, o samba carioca, ou samba do Estácio, não nasce nos morros para onde as populações mais pobres estavam sendo empurradas desde os anos finais do século XIX. Sua gênese e desenvolvimento está vinculado, na área mais pública, aos botequins e rodas de música em torno da Praça Onze, com suas festas em antigos sobrados, casebres que, com portas e janelas abertas, tornavam possível a participação da ''turma do sereno'' nas calçadas e bares; e, em âmbitos mais internos, na profusão de terreiros de ''macumba'' e ''candomblé'' que se espalhavam pelas mais diversas regiões do Rio.

Os terreiros podiam ficar na ''cidade'', como era o caso daquele comandado por Tia Ciata; nas favelas que surgiam nos morros, como o de Tia Fé, na Mangueira; ou nas freguesias rurais, como o de Dona Esther, em Osvaldo Cruz, e Madalena Xangô de Ouro, em Quintino, locais de reunião da ''Vai como pode'', futura Portela. Nessas Pequenas Áfricas se moviam os sambistas, em fuzarcas que misturavam o sagrado e o profano, e que duravam até sete ou oito dias.

Os sambistas em torno da Praça Onze se consideravam ''malandros'', o que significava negar a ética do trabalho que estava sendo propagandeada pelo Brasil oficial pós-escravidão, sobreviver às margens por meio de golpes -- eram ladrões, cafetões, punguistas --, e se garantirem nas rodas de pernadas movidas a álcool e partido alto. Eram herdeiros diretos das maltas de capoeiras e davam continuidade aos seus valores de ''valentia''.

No fim do século XIX, esses ''valentes'' e ''malandros'' estavam organizando cordões, ranchos e blocos para brincarem também de forma coletiva. Essas novas organizações possuíam estética e hierarquias próprias, além de símbolos identitários, o maior deles seu estandarte ou bandeira. Tinham sede, documentos de fundação, 'hinos', identidades definidas por laços comunitários, sejam eles familiares, religiosos, de vizinhança, étnicos ou de profissão. Os malandros saíam festejando fantasiados de índios ou de baianas, mas sempre armados de navalhas e outras armas.

[Na origem das escolas de samba, a ala das baianas eram formadas principalmente por homens que escondiam armas nas roupas. Quanto mais valente era o malandro, mais disposto a defender a agremiação e suas tradições. Na foto abaixo, o famoso Heitor dos Prazeres fantasiado de baiana.]


Seja nas rodas de pernadas, em disputas de partido alto nos botequins, na Festa da Penha, nos terreiros ou nos cordões, ranchos, blocos e escolas de samba; os malandros estavam dispostos a uma vivência dionisíaca, festiva, ''desordeira'', brava, em que a morte era comemorada porque considerada parte da vida.

Um exemplo foi a morte de dois componentes do cordão Estrela dos Dois Diamantes no Carnaval de 1902 por grupos de um cordão rival, o Flor da Primavera. O cortejo fúnebre se deu na Terça Feira Gorda, e foi acompanhado por diversas agremiações carnavalescas que se solidarizaram com o 'Estrela'. No caminho até o cemitério, o clima esquentou quando os tambores começaram a zabumbar. No fim, tudo terminou numa tremenda festa, em que pessoas sepultaram os heróis sapateando sobre os túmulos e dando vivas ao Carnaval. Essa forma de encarar a morte está expressa também em obras famosas de Noel ["Não quero flores nem coroa com espinho/Eu quero choro de flauta, violão e cavaquinho/Quando eu morrer, não quero choro nem vela/Quero uma fita amarela gravada com o nome dela''], ou em recente entrevista de Zeca Pagodinho, que explicava que no subúrbio carioca dos anos 1970 e 1980 ''só tinha duas coisas para fazer: macumba e velório'', e contava a festa regada a cerveja e jogo de azar que se tornou o funeral de seu próprio pai. ''Secamos a rua toda'', dizia o sambista.

Os grupos carnavalescos possuíam, no entanto, mais um significado: eram espaços de integração das camadas populares ao seu entorno, à sociedade “oficial”. Um meio de dirimir a exclusão abissal em que o país estava construído, através de pontes culturais que ligavam todos os grupos sociais. Desse modo, eram também espaços de negociação. É nesse contexto que devem ser lidas as visitas que os cordões e ranchos faziam aos jornais no início do século XX, para apresentar suas fantasias, alas e estandartes; e também os concursos que a própria imprensa se sentiu impulsionada a realizar para premiar as melhores agremiações. É sob essa luz que se dá o famoso embate musical entre Noel Rosa e Wilson Baptista, tendo sido ele provocado ou não pela disputa por uma formosa mulata.

“Lenço no Pescoço”, de um ainda desconhecido Baptista, acabou gravado na voz de Sílvio Caldas. Era uma ode à figura do malandro forjada nas rodas da Praça Onze: “Meu chapéu do lado/Tamanco arrastando/Lenço no pescoço/Navalha no bolso/Eu passo gingando/Provoco e desafio/Eu tenho orgulho/Em ser tão vadio/ Sei que eles falam/Deste meu proceder/Eu vejo quem trabalha/Andar no miserê/Eu sou vadio/Porque tive inclinação/Eu me lembro, era criança/Tirava samba-canção/Comigo não/Eu quero ver quem tem razão”.

Noel Rosa decidiu responder propondo uma nova figura de malandro, não mais vinculado à marginalidade, mas integrado à sociedade respeitável, ainda que mantivesse sua particular experiência festiva e dionisíaca da realidade. O Poeta da Vila compôs “Rapaz Folgado”, em que versava: ‘Deixa de arrastar o teu tamanco.../Pois tamanco nunca foi sandália/E tira do pescoço o lenço branco/Compra sapato e gravata,/Joga fora essa navalha/Que te atrapalha/Com chapéu do lado deste rata.../Da polícia quero que escapes/Fazendo samba-canção,/(Eu) já te dei papel e lápis/Arranja um amor e um violão./Malandro é palavra derrotista/Que só serve para tirar/Todo o valor do sambista/Proponho ao mundo civilizado/Não te chamar de malandro/E sim de rapaz folgado”.

Vale dizer que, se é verdade que a figura do malandro e do boêmio se confundia muitas vezes com o do ‘fora-da-lei’ e ‘valente’, e as vielas e ruas em que se batucava eram associadas a zonas de prostituição em que “o assassinato era comum”, nas palavras de João do Rio; os blocos, ranchos e cordões carnavalescos não se formavam apenas em torno do culto à marginalidade, embora mantivessem sempre a ética da valentia herdada dos capoeiristas e todos os elementos comunitários e tribais. O bloco dos Arengueiros, que foi o principal núcleo de formação da Estação Primeira de Mangueira, era barra pesada nas palavras do próprio Cartola, como os blocos de sujos que saiam no Carnaval desde os tempos do Império. Já a escola de samba Prazer da Serrinha, e depois o Império Serrano, tinha vínculos fortes com o Sindicato Resistência, de funcionários administrativos da zona portuária, uma tradição formativa das agremiações carnavalescas que remonta ao fim do século XIX.

Essa polêmica não havia, portanto, surgido do nada. Ela expressava de modo preciso os nuances e disputas no interior das próprias classes populares em negociação com o poder público, e o sentido ético e comportamental que seria resultado desse diálogo. Não é possível dizer também quem venceu. As duas figuras do Malandro ainda convivem no mundo do samba.



Paulo da Portela, o grande embaixador das escolas de samba nos anos 1930 e 1940, aderiu à visão de Noel, fazendo com a que os membros da Portela adotassem alinhados ternos e gravatas, deixando o tamanco e as os rabos-de-arraia de lado. Zeca Pagodinho também dá ênfase a essa malandragem que não se recusa ao trabalho, embora não viva também para ele: “Só vou pro batizado quando é samba/Compadre meu precisa batucar/Eu sou da saideira que descamba/Aqui não tem hora pra acabar/Amigo eu nunca fiz bebendo leite/Amigo eu não criei bebendo chá/Eu sou da madrugada, me respeite/Que eu sei a hora de ir trabalhar/Não sou sujeito de ficar enchendo a cara/Quem escancara, não vê o mundo girar/Pra ficar bom, melhor tomar remédio/E o tédio é quando vem fechar o bar/Também não vou ficar levando bronca/Deixa a conta que hoje eu preciso pendurar/Já calibrei, já tirei a minha onda/Ainda tenho casa pra cuidar”.

Ao mesmo tempo, as figuras de Hilário Jovino, Carlos Cachaça, Beto sem Braço, Bezerra da Silva e outros atravessaram o século XX, gerando fascínio, tanto no asfalto quanto no mundo mais ordenado das escolas de samba.

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