terça-feira, 8 de outubro de 2019

O Coringa, parte III -- A Plenitude do Êxtase




5. O assassinato da Mãe, da Amante e do Pai


No entanto, o Coringa não encarnaria sem que os afetos e complexos que seguravam Arthur nas relações humanas desmoronassem de vez. Voltando de um encontro com sua suposta namorada, ele lê, escondido, mais uma carta que sua mãe endereçava a Wayne. Segundo o texto, ele era filho de uma relação amorosa de Penny e o patrão. Quando confrontada, a mãe lhe diz que o empresário não assumiu a paternidade por causa das aparências, e que a obrigou a “assinar uns papéis”.

Arthur parte em uma jornada para conversar com seu suposto pai. Ele vai até a mansão Wayne, onde conhece Bruce, um menino que não sorri, e é expulso por Alfred, que lhe avisa que nunca ocorreu nada entre Penny e Thomas. Em seguida, o protagonista aproveita um protesto anti-sistema para invadir um cinema em que o miliardário assiste um filme de Chaplin e o segue até o banheiro.

Thomas Wayne lhe conta que sua mãe é “louca”, que ele nunca foi para cama com ela, e que ele, Arthur, foi adotado. Penny, continua o empresário, havia sido internada no Arkham durante um tempo, e sofria de delírios paranóides. Quando Arthur perde o controle e começa a rir, recebe um soco do seu interlocutor: “Como você pode achar isso engraçado!?” Mas ele não achava. Ao tentar conhecer seu pai, ele percebeu que desconhecia completamente sua mãe.

Penny sofre um derrame quando entrevistada por dois policiais a respeito dos homicídios no metrô. Para descobrir a verdade, Arthur ruma até o asilo Arkham, quando não apenas confirma as palavras do empresário, mas também descobre que sua mãe havia sido internada por permitir que seu filho adotivo fosse espancado por um namorado violento e abusivo. 

Mas ele não chorava”, dizia a mãe no relatório médico, “sempre foi uma criança tão feliz [Happy]”, justifica, em uma das cenas mais trágicas da película. A polícia havia encontrado a criança em um apartamento imundo, amarrada a um radiador de carro, com hematomas e ferimentos na cabeça.

Foi ali que o Coringa encarnou de vez na pessoa de Arthur? Difícil saber. 

A tensão do filme é crescente, a trilha sonora impacta cada vez mais, e Phoenix adquire uma figura ainda mais perturbadora. Ele vai para o apartamento da namorada, buscando algum consolo, quando percebemos que todo o affair entre os dois não passou de imaginação. A vizinha mal o conhecia.

O Coringa toma conta quando Arthur passa a noite na geladeira, como se buscando um novo útero? Ou quando descobre que a imagem paterna que acalentou por toda a vida, Murray Franklin, o apresentador, passa em seu programa um vídeo da apresentação amadora do show de Stand-up de Arthur, debochando da falta de talento e dos problemas mentais do novato? 

Ou, pior ainda, quando uma funcionária da emissora liga para ele, dizendo que o vídeo passado no programa gerou muita reação do público, e ele estava convidado para uma entrevista no programa de Murray, que terminava toda noite com a frase: “Lembre-se: Isto é a Vida”?

Quando foi que Fleck saiu de cena pra dar espaço inteiramente ao Arquétipo? 

Teria sido no apartamento da vizinha, suposta namorada, quando simula um tiro na própria cabeça? Ou na decisão de sufocar a mãe com um travesseiro no hospital? “Happy?! Eu nunca fui feliz um minuto sequer da minha vida desgraçada. Eu achava que minha vida era uma tragédia, mas agora percebo que ela é uma comédia do caralho!

Ou ainda no instante em que finalmente mata Murray com um disparo na cabeça durante a entrevista ao vivo? 

Naquele show, em que ele fez questão de revelar que sentia graça do que os demais consideravam repugnante, e não via beleza nenhuma no que os outros consideravam ou normal ou divertido: “Eu matei os executivos porque eles eram horríveis!”, escancara no programa ao vivo. “Você está buscando justificativa para ter matado três pessoas!”, protesta Murray. “Eles eram horríveis. Por que vocês se importam com eles? Só porque Thomas Wayne chorou por eles na TV? Se fosse eu, vocês pulariam sobre meu cadáver como se eu não estivesse ali!

Você é horrível, Murray! Você me trouxe no seu programa pra debochar de mim.



6. Toma que é de Graça! O Coringa Reina



De todo modo, o Coringa já estava inteiramente presente quando dois colegas de trabalho visitam Arthur para lhe dar pêsames pela morte da mãe. Um deles é Randall, o outro um anão de nome Gary, que sempre foi motivo de piada para os ''colegas''. Já se preparando para o show de Murray Franklin, com  maquiagem parcialmente completa, e depois de ter se soltado em uma dança frenética que completava sua mudança física de um ser desengonçado e cambaleante para um Palhaço Bailarino, O Coringa mata Randall com uma tesoura. Em um dos momentos mais nervosos do filme, em que o público confunde comédia com horror, ele deixa Gary ir embora, e ainda o ajuda a destrancar a trava da porta, que o anão não alcançava.

O Coringa já estava inteiramente presente quando perseguido por dois policiais pelas ruas e pelo metrô, que estava lotado de pessoas que partiam para uma imensa manifestação contra a elite e o sistema. No metrô, acidentalmente um dos policiais atira em um dos protestantes, sendo linchado pela multidão.

Assim como Fleck, a cidade havia incorporado o Coringa. No momento em que ele pede para contar uma última piada a Murray e o apresentador nega, o Palhaço grita com um humor que só ele consegue discernir completamente: “Você sabe o que acontece quando um doente mental solitário é tratado por vocês como se fosse lixo? Vocês tem o que merecem!” E assassina o apresentador ao vivo, rindo, dançando e dizendo diante d câmera, “Lembrem-se: Isto é a Vida!

A cidade se amotina. Quebradeiras anarco-populares, carros virados, a polícia sendo enfrentada pelas ruas rebeladas. No meio da revolta, alguém com uma máscara de palhaço espera Thomas Wayne sair do cinema com a família, e mata o empresário e sua mulher em um beco escuro diante de seu filho, o pequeno Bruce. Antes de dar cabo do auto-intitulado “salvador de Gotham”, o amotinado grita as mesmas palavras que viu o Coringa dizer na TV: “Tome o que você merece!”, um verdadeiro ''Recebe, que é de graça!"

O Coringa reina pessoal e socialmente na icônica cena final, destinada a entrar para a história do cinema. Levado por um carro de polícia, o Palhaço contempla o caos que reina em Gotham e ri. Os policiais o repreendem, mas ele continua, dizendo que é tudo lindo. Repentinamente, uma ambulância roubada bate na viatura. Dela saem duas pessoas com máscaras de palhaços, desejando libertar o novo deus.

O palhaço é colocado no capô do carro de polícia, e em torno dele uma multidão de anarquistas populares e amotinados, combatendo as autoridades nas ruas, o incentivam a ficar de pé. O Coringa recobra os sentidos e se levanta, dançando para a multidão, e retoca sua maquiagem desfeita com o sangue que lhe sai pela boca.



7. Na dança do Palhaço Assassino, não há nenhuma Redenção



Para terminar esse texto, quero falar do delírio recorrente do protagonista. O caráter solipsista que o filme carrega em larga escala levanta uma série de questões sobre a veracidade de toda a história. Tudo aquilo aconteceu mesmo ou era só imaginação de Arthur Fleck? O que era verdade e o que era miragem psicótica?

Todd Phillips é competente o suficiente para manter essa questão em aberto. Mas dá uma pista que muitos interpretaram como um pequeno defeito da obra. Quando invade o apartamento da vizinha, a cena por si só já deixa claro que o namoro e os encontros entre os dois eram frutos da imaginação super-excitada de Fleck. No entanto, o diretor agrega uma cena de cerca de dez segundos, que reedita rapidamente as interações entre os dois, reforçando que ocorreram somente na cabeça de Arthur. Alguns encararam como uma explicação desnecessária, e que destoa do nível do filme.

Mas talvez seja o sinal dado por Phillips para que saibamos que o que vem mais para frente não era nenhuma fantasia. Ele explica um elemento da psicose neurótica do Coringa como forma de apontar que o restante era a realidade fatal, o domínio completo do Arquétipo, sem delusões, sem alienações, sem inclusive propósito.

O Coringa de Phoenix e Phillips não está buscando uma sociedade melhor, não tem uma mensagem, ainda que de caos [o personagem de Ledger, por sua vez, faz questão de ensinar que ''todas as coisas queimam'']. O filme não apresenta nenhum tipo de redenção, como n’O Cavaleiro das Trevas, em que no fim das contas os cidadãos de Gotham se recusam a se mostrar “doentes como você", na frase que o Batman de Bale diz para o Palhaço. 

Agora, a subversiva e atemorizante cena final vai em outra direção, ainda mais terrífica, para desespero do establishment.  N’O Coringa, o protagonista declara que não acredita em política nem veio pra fundar nenhum movimento: “Eu não acredito nisso! Eu não acredito em nada!”, ele ri. 

O Coringa age e mata por ser um bom dançarino. E quem não é? “Ele!” [tiro]. “Todas as pessoas são horríveis”. Tudo o mais é gatilho e circunstância.





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