Segunda parte da comunicação de André Luiz V.B.T. dos Reis, membro da Organização Popular -- Nova Resistência, em evento organizado com a Mobilização Islâmica, no Rio de Janeiro, dia 29 de novembro de 2018
.
.
A
destruição do sistema de poder dominante permitiu que as forças neoliberais e
filo-americanas se reagrupassem em torno de um candidato popular, um político
que soube manipular a ojeriza moral que a maior parte da população brasileira
sentia pela agenda progressista e cosmopolita incentivada por PT e PSDB.
Jair
Bolsonaro vinha construindo sua imagem contra a militância LGBT. Orientado
também pelos filhos, ele pôde se aproximar de lideranças liberais, evangélicas
e sionistas, se tornando apto para atrair para sua candidatura as organizações
interessadas em uma reorientação do Brasil nesse cenário internacional cada vez
mais minado.
Para
que compreendamos o próximo governo Jair Bolsonaro é fundamental vê-lo em larga
medida como uma continuidade da agência internacional e nacional interessada em
um realinhamento estratégico da geopolítica brasileira, uma americanização de
nossa sociedade e um choque liberal em nossas instituições e economia.
Ressalto,
no entanto, que essas forças se aglutinaram em torno da candidatura Jair
Bolsonaro, mas não se confundem inteiramente com ela. Se podemos afirmar que o
sucesso do próximo governo representaria uma vitória considerável para essa
agenda que eu considero anti-nacional, não podemos, no entanto, afirmar que o
fracasso do governo redundaria em sua derrota.
Os
grupos em torno de Bolsonaro podem muito bem usar as possíveis falhas do Presidente
eleito para fazerem avançar a proposta filo-americana em torno de algum novo
nome. Essa é uma possibilidade aberta. Não é impossível supor uma futura candidatura
de Sérgio Moro, de João Dória ou outro elemento passível de ser
instrumentalizado e capaz de instrumentalizar as mesmas forças.
Na
minha leitura, o governo de Bolsonaro é uma fase do projeto anti-nacional pela
americanização e liberalização, leia-se: pela ocidentalização da sociedade
brasileira. Uma ocidentalização que vinha sendo levada a efeito a passos de
formiga pelo PT e pelo PSDB, mas cuja marcha poderá se acelerar no próximo
mandato presidencial.
Mas,
pela natureza do processo de derrubada do sistema até então vigente, essas
forças “ocidentalizantes” não consolidaram sua hegemonia. Elas possuem
contradições internas, contradições umas com as outras e também contradições
com sua própria base social. Esses pontos de conflito lançam dúvidas sobre sua possibilidade
de sucesso, pelo menos a curto ou médio prazo.
Vou
falar sobre os riscos dos próximos anos por meio de uma rápida análise das
orientações e campos que disputam espaço no novo governo. Esses campos são formados
por grupos que interseccionam e se friccionam em alguma medida. Os encontros e
desencontros entre os grupos que participam desses campos podem impulsionar a
popularidade ou, pelo contrário, paralisar a ação do governo.
Além
disso, esses campos são de certa forma mais ou menos essenciais para o sentido
final do governo Jair Bolsonaro. Eles representam, de certa maneira, círculos
mais ou menos concêntricos em torno do Presidente eleito. Eles estão ligados ao
Presidente eleito por laços orgânicos.
Vamos
imaginar então que estejamos entrando num palácio, na casa em que vive o nosso
futuro governante. Vamos conhecer essa casa, partindo do seu exterior até
atingirmos cômodos mais internos, aqueles em que Bolsonaro se sente mais à
vontade, em que ele abre seu coração.
O
primeiro campo, que representa o círculo mais exterior, é o econômico. Jair Bolsonaro propôs uma aliança com o
mercado financeiro. Essa aliança se tornou factível por causa do peso do nome
de Paulo Guedes. A perspectiva econômica de Bolsonaro sempre criou desconfiança
nos agentes do sistema financeiro, que a consideravam herdeira do nacionalismo
estatista militar.
Paulo
Guedes, pelo contrário, é um legítimo representante da escola de Chicago e
prometeu, durante a campanha, uma ação ultra-liberal por parte do novo governo.
O futuro super-ministro da economia é um dos pilares do governo Bolsonaro. Ele
chegou a prometer o inexequível, como a privatização de todas as estatais e de
todo imobiliário da União. Era um modo que encontrou de enfatizar o compromisso
com o choque neoliberal.
O
planejamento econômico de Paulo Guedes passa pela aposta na diminuição do
Estado, com venda de estatais, controle de gastos públicos e redução dos cargos
comissionados. Existe o objetivo de realizar uma abertura comercial também, com
a leitura de que, de alguma maneira, se aumentaria a competitividade da indústria
e se diminuiria os preços para a população. Paulo Guedes propõe também uma
forte redução da carga tributária, acompanha de reformas institucionais
importantes. Para levar adiante esse plano neoliberal, ele montou uma equipe
coesa e afinada com seu discurso e unificou ministérios sob seu comando.
Para
manter a lua de mel com o “mercado”, o governo Jair Bolsonaro terá de mostrar
sua capacidade de executar uma Reforma da Previdência que satisfaça a exigência
dos agentes financeiros por ajuste fiscal e por diminuição do Estado. Era
desejo de Guedes estabelecer uma Previdência residual e substituir o sistema
atual pelo de capitalização, entregando a aposentadoria dos trabalhadores nas
mãos dos rentistas. A menina dos olhos do super-ministro da economia a esse
respeito é o Chile. Mas a proposta parece impossível de ser adotada.
Para
realizar uma Reforma da Previdência ao gosto do choque neoliberal, o governo
Jair Bolsonaro teria de gastar uma enorme parte de seu capital político. Teria
de demonstrar também imensa capacidade de articulação. E eis aqui um dos motivos
de maior desconfiança nas possibilidades do Presidente eleito. O grupo que se
encontra no poder é inexperiente nas lidas político-partidárias. Ele ainda tem
de encontrar os meios que lhes permitam negociar a contento com o Congresso.
Não se sabe até que ponto Jair Bolsonaro é capaz da composição de um arco de
alianças sólido.
O
próprio Paulo Guedes é um novato na gestão pública. Ele é reconhecidamente um
bom estrategista de mercado, mas não parece ter vocação para as operações
diárias. Nunca se destacou como executor de planos. Nunca participou da
administração de um governo. O acúmulo de áreas da máquina pública nas mãos de
Paulo Guedes pode vir a ser menos um sinal de força do super-ministro do que de
fragilidade do próximo governo. Se Paulo Guedes não demonstrar competência na
gestão da máquina, pode acabar paralisando a área econômica e levando à
derrocada do governo.
Outro
complicador é o fato de boa parte da base partidária de Bolsonaro ser oriunda
do serviço público. Ela possui larga influência de setores do judiciário, das
polícias e das forças armadas, que respondem por uma proporção considerável do
suposto déficit da Previdência. Para impor uma reforma satisfatória para o
“mercado”, Bolsonaro teria de contrariar interesses bastante arraigados em sua
própria base política, o que está longe de ser fácil. Contradições como essa
foram responsáveis pelo descrédito do governo PT, incapaz de um equilíbrio
entre sua agenda neoliberal e as expectativas dos sindicatos e do funcionalismo
dos quais dependia eleitoralmente.
Se
o campo econômico não apresentar uma Reforma da Previdência convincente para o
“mercado”, a lua de mel vai acabar muito rapidamente. A “confiança” dos investidores vai se esvair,
e já no início do segundo semestre do próximo ano teremos uma piora
considerável nas expectativas econômicas.
O
mesmo raciocínio pode ser aplicado ao programa de privatizações que Paulo
Guedes prometeu executar. Peças importantes na base política de Bolsonaro,
dentre elas alguns generais associados ao novo governo, já manifestaram sua
oposição à venda de algumas empresas. Paulo Guedes vai ter grande dificuldade
de apaziguar o sistema financeiro nesse terreno.
Poderá
extinguir ou vender empresas e agências públicas sem grande lucratividade ou
abrir concessões privadas em algumas áreas, mas é improvável que atraia
investimentos capazes de apontar para uma redução do déficit público com esse
tipo de medida. A redução dos cargos comissionados pode também comprometer a
eficiência da máquina pública, gerar forte resistência da burocracia, e afetar
a qualidade da gestão.
Existe
também um descontentamento de setores econômicos importantes com a retórica de
Paulo Guedes. A Fiesp tentou deixar a indústria de fora do super-ministério
colocado nas mãos do “Chicago Boy”. Os industriais investiram na candidatura de
Bolsonaro por causa das promessas de diminuição dos encargos trabalhistas. Mas
já perceberam que essa direção do governo não está lá tão garantida. Eles podem
ter caído no canto de uma sereia, que lhes mentiu sobre menores impostos mas
que promete abrir violentamente o mercado brasileiro para os importados. A
indústria brasileira, que vem sofrendo com a arquitetura neoliberal da
economia, depende fortemente do protecionismo econômico e do Mercosul, que
responde por boa parte de nossa venda de manufaturados.
Se
realizar de fato uma abertura comercial, Paulo Guedes pode vir a dar o tiro de
misericórdia nos setores industriais sem, no entanto, gerar benefícios
concretos para a população. Benéfica ou não, o Brasil perdeu o barco da
abertura comercial. O mundo entrou numa era de guerra comercial e de
protecionismo. A abertura comercial pode destruir a indústria, fazendo com a
que a Fiesp pague o pato. Mas promete também colocar o Brasil na contramão do
que está sendo realizado pelas principais potências, inclusive o governo de
Trump, que inspira os sonhos de Bolsonaro.
O
segundo campo, um pouco mais próximo das raízes do pensamento de Bolsonaro,
reúne os agrupamentos que representam, em algum grau, a base social popular
responsável pela vitória do candidato do PSL. A imprensa se refere a eles por
meio dos apelidos de “bancadas da bala”, “da Bíblia” etc. Esses setores foram
atraídos por causa da militância de Bolsonaro contra as pautas identitárias que
chamo de pós-modernas, como é o caso do lobby LGBT, e por sua defesa de pautas
consideradas importante pela moralidade do “homem comum”. São evangélicos,
anti-feministas, opositores do chamado “gayzismo”, representantes em graus
variados do conservadorismo moral da população. Também fazem parte desse campo
os agentes de tendência liberal que identificam essas pautas identitárias com
uma suposta doutrinação comunista ou esquerdista realizada nas escolas e nas
universidades. São também propositores de um endurecimento da legislação penal
e do combate incisivo contra a criminalidade nas grandes cidades, além da
derrubada do Estatuto do Desarmamento, que restringe fortemente a posse e o
porte de armas no país.
Esse
vetor é um dos mais importantes para a manutenção da popularidade imediata do
Presidente eleito. É provável que Bolsonaro invista imediatamente nessa direção
como forma de compensar a pauta impopular da Reforma da Previdência. Seria uma
maneira de manter sua militância inflamada nas redes sociais. O confronto
contra a comunidade acadêmica, a patrulha de professores no ensino de base, a
redução da maioridade penal, mudanças no regime penitenciário, atendimento das
reivindicações das lideranças religiosas e outras medidas serão usadas como
forma de mobilizar essa base eleitoral.
Existe
um grande potencial pra Bolsonaro nesse terreno. Se ele for competente na
manutenção de determinadas promessas feitas às classes populares, pode garantir
ao governo fôlego mesmo se fracassar em outras áreas. Embora a mobilização
desses grupos supra-partidários não garanta a governabilidade do dia a dia, ela
é a verdadeira teia de ligação de Bolsonaro com sua massa, quando o encaramos
como um líder popular.
Sérgio
Moro, que se tornou herói popular por conta de sua agência anti-corrupção, pode
ser um grande aliado de Bolsonaro nesse campo. A República de Curitiba chegou
ao poder nesse governo, e pode continuar usando o aparato da Polícia Federal e
do Ministério Público para preencher as manchetes de notícias de caça a
corruptos, principalmente adversários políticos. A oposição petista deve
continuar sofrendo e sangrando com Sérgio Moro no Ministério da Justiça, para
dar um exemplo.
Se
Bolsonaro investir nessa direção, deve gerar conflitos tanto com a comunidade
acadêmica quanto com gangues criminosas que dominam os presídios e favelas do
país. Esses conflitos podem paralisar o governo, se ele se intimidar ou não
demonstrar competência para sustá-los ou no mínimo gerenciá-los; mas podem
também aumentar a popularidade do governo, angariando apoio da população para
medidas autoritárias. Imaginemos um conjunto de rebeliões do PCC e do CV no
sistema penitenciário. O capital
político do governo pode derreter diante das críticas, do medo e da hesitação;
mas pode se fortalecer se a população comprar uma narrativa de guerra, de “vai
ou racha”, e vislumbrar em Bolsonaro uma disposição de enfrentamento.
É
bom repetir, no entanto, que essa mobilização de suas bases sociais e das
bancadas que as representam não resolve o problema da governabilidade. Uma das
promessas que Bolsonaro parece querer cumprir é a de não lotear os cargos
públicos. Ele quer o fim do presidencialismo de coalizão consolidado no país
por Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso e que consiste no “toma-lá,
dá-cá”. Ou seja, troca de votos no Congresso por redes clientelistas na máquina
pública. A mudança no relacionamento entre o Executivo e o Legislativo foi
vendida durante a campanha como um meio de combate contra o sistema corrupto
que teria se apoderado da Nova República.
Falamos
aqui de um tema importante para a base social e popular de Jair Bolsonaro, e ao
mesmo tempo uma provável fonte de dores de cabeça para o novo governo. Só três
presidentes tentaram mudar seriamente o padrão de relacionamento com o
Parlamento vigente na Nova República. O primeiro foi Fernando Collor de Mello,
que pagou a ousadia com um impeachment. O segundo foi o primeiro governo de
Lula, que em vez de cargos estabeleceu uma mesada para congressistas – o famoso
Mensalão --, e por isso quase chegou ao fim ainda no segundo ano de seu
mandato. O terceiro foi Dilma Roussef, que brigada com Eduardo Cunha e com o “Centrão”
não conseguiu sequer um terço de votos na Câmara para colocar fim ao processo
de impeachment que vinha sofrendo.
Bolsonaro
promete contornar essa questão apelando para uma espécie de “política dos
governadores”. Sabendo que os Estados estão falidos, que quase todos eles precisam
renegociar dívidas com a União, o Presidente eleito pretende trocar apoio a
essas demandas por votos das bancadas estaduais no Congresso. Essa nova
política dos governadores pode vir a funcionar no início do próximo ano, quando
os novos eleitos vão estar com o pires na mão e o Presidente no ápice de sua
popularidade. A partir do segundo semestre, porém, pode se tornar um mecanismo
insuficiente para garantir a governabilidade, jogando o governo mais uma vez em
uma encruzilhada.
[continua]
Nenhum comentário:
Postar um comentário