sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O progressismo liberal destruiu Guerra nas Estrelas?


''A idéia de desistir da democracia, que muitas vezes, em época de crise, você nota no decorrer da história, seja com Júlio César, Napoleão ou Adolf Hitler. Você vê essas democracias sob forte pressão, em uma situação de crise, abrindo mão de parte da liberdade que elas têm e do sistema de controle, em favor de alguém com uma forte autoridade para ajudá-los através da crise"

George Lucas explicando em que ideias e eventos se baseou para construir o personagem de Palpatine




O novo trio de herois do Universo de Guerra nas Estrelas, destinado pela Força a substituir Luke, Leia e Solo

Pretendo discutir o seguinte texto, que tem sabor olavetico e conservador: [https://medium.com/@mateusmatosdiniz/the-last-jedi-como-o-progressismo-destruiu-star-wars-27e79d575748]



O autor coloca questões interessantes sobre Guerra nas Estrelas. Ele argumenta que a franquia se tornou instrumento de propaganda de pautas do progressismo liberal [por ser olavete, talvez o autor preferisse retirar o adjetivo 'liberal' que vou usar à vontade daqui por diante]. Essas propagandas não seriam bem propagandas, mas antes sugestões ''subliminares''. Não há uma discurso articulado, explícito, militante que defenda essas pautas nos filmes, segundo o articulista. Mas eles apresentam como normais situações ligadas a essas pautas, e cuja apresentação acaba modelando a percepção e a mentalidade das novas gerações, que passam a associar essas situações com heroísmo, sacrifício, retidão, e se tornam simpáticas com os personagens que as veiculam. O panorama geral delineado está correto. O que não impede que esteja também permeado de equívocos que vou discutir abaixo.



Em primeiro lugar, a análise do autor não serve a Guerra nas Estrelas de forma particular, ela se estende a todo o universo cinematográfico nascido de Hollywood. Desde pelo menos o início da Guerra Fria nos anos 1940, mas provavelmente até antes, o cinema se tornou cavalo de batalha da guerra cultural ianque, que visa promover seus modelos e hegemonia através da idealização do ''american way of life''. Não só o cinema é ponta de lança nessa 'cruzada', mas todo o universo pop, que inclui também novelas, séries, HQs etc. Isso quer dizer que, praticamente todo ''pipocão'' de Hollywood traz, em algum grau, a influência do progressismo liberal, veiculando as pautas que lhe são mais caras em determinado momento.


Essa influência pode ser algumas vezes militante, explícita e tonitroante. O filme é, algumas vezes, peça de propaganda ianque, como Rambo II. Na maioria das vezes, no entanto, ela é sugestiva, indireta, apresentada antes de tudo como o arcabouço de normalidade em que a história e os personagens se desenvolvem, como lembra bem o autor do texto. Não é sequer necessário fazer do filme mero instrumento de propaganda, basta atentar para o fato de que os produtores, os diretores, roteiristas e atores estão, em sua maioria, mergulhados na mentalidade progressista liberal. Mais uma vez dou méritos ao autor por demonstrar esse ponto citando entrevistas de Daisy Ridley, Jeremy Shada e Rian Johnson, em que são defendidas agendas da militância afro, feminista e “gayzista”. Mas o ponto também estaria demonstrado caso fossem citadas entrevistas de mais de 95% dos profissionais envolvidos com Hollywood. Claro que esta mentalidade se refletiria nas obras, mesmo que os dito cujos não se interessassem em propagandeá-la de modo mais ou menos implícito.

 
A Comandante Holdo assume a liderança da Resistência após ataque aos líderes que deixou Leia momentaneamente incapacitada: protagonismo feminino

Para quem não compartilha das pautas do progressismo liberal, só restaria duas soluções: ou se afastar completamente dos produtos de Hollywood e do universo pop em geral, denunciando-os e boicotando-os; ou adotando uma alternativa intermediária, que concilie denúncia e releitura das obras nos pontos e elementos em que não estejam totalmente vinculadas a estas pautas. Essa última solução é a mais comum: mesmo os críticos dos instrumentos de guerra cultural ianque consomem as obras, mas discernindo nelas aquilo que pode ser dissociado da mentalidade subjacente -- afinal, a maior parte dos filmes, repito, não pode ser reduzida à mera propaganda, o 'american way of life' e temas que o circundam aderem a eles mais como contexto, como moldura.


Mas o autor não parece seguir esse caminho, ele entende que Guerra nas Estrelas está tão comprometido com o liberalismo que foi destruído. Seria uma posição polêmica, e, até onde vejo, equivocada. Muita gente pensa dessa maneira, vê a saga como expressão dos valores e da geopolítica americanos, e portanto uma porcaria do começo ao fim. No entanto, há trocentos elementos naquela galáxia distante, grande parte deles analisados exaustivamente em livros, sites, artigos, teses etc., que apontam que a saga tem muito mais a dizer e mostrar que um servilismo ao Ocidente globalista.

 
Possíveis relações amorosas inter-étnicas em Guerra nas Estrelas: Rey parece ser objeto de amor de Finn, que por sua vez é objeto de amor de Rose
Eu penso que o erro do articulista é mais grave, no entanto. O que ele parece dizer é que Guerra nas Estrelas FOI destruído. Ou seja, a saga podia ser ''salva'' das garras do Ocidente antes, mas não agora. Agora ela é um instrumento de marketing cosmopolita. Ele cita alguns pontos d'Os Últimos Jedi e dos filmes da Disney que exemplificariam essa agenda: o caráter multi-étnico dos novos personagens, inclusive com a possibilidade de uma relação entre Finn [negro] e Rey [branca] ou entre o primeiro e Rose [asiática]; o protagonismo feminino tão a gosto do feminismo; a crítica ao racismo contra os negros representado na relação entre Finn e Phasma; a crítica ao machismo no descarte de Han Solo logo no primeiro filme da nova trilogia; a subversão entre a figura do mestre e do discípulo representada em um Luke covarde e em uma Rey corajosa; o abandono dos valores familiares com o descarte da necessidade da linhagem Skywalker; o apoio à revolução social dos pobres contra uma elite econômica expressa no arco de Finn e Rose no Cassino; etc.


Vou tratar destes pontos na continuação desse texto, mas antes quero pontuar aquilo que considero a principal fragilidade do artigo que discuto: supor que a Disney tenha inovado com Guerra nas Estrelas ao incluir, na moldura dos novos filmes, essas supostas sensibilidades progressistas. Ou seja, a falsa ideia de que o restante da Saga estava a salvo dessa moldura, ou que ela fosse menor ou menos fundamental do que apresentada nos novos filmes da franquia. Depois vou propor uma razão de outra ordem para que isso venha à tona mais fortemente agora e que pretende explicar o porquê essa análise tem o potencial de se tornar comum entre parte dos fãs da saga.



[continua]

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