sábado, 9 de maio de 2015

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico III


Continuação do ''Tratado sobre a Práxis''. Evágrio trata agora das paixões da acídia, vanglória e orgulho.





Contra os Oito Logismoi [pensamentos apaixonados]: Continuação




27 Quando caímos nas mãos do demônio da acídia, devemos então, entre lágrimas, dividir a alma em duas partes, uma que consola e a outra que é consolada, semeando boas esperanças em nós mesmos e entoando esse encantamento do Santo Davi: ''Por que te deprimes, ó minha alma, e te inquietas dentro de mim? Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: Ele é minha salvação e meu Deus.’' [Sl 41, 6.] [1]

28 Não se deve abandonar a cela no momento das tentações, tecendo pretextos supostamente razoáveis, mas antes deve-se sentar dentro da cela e suportar paciente e corajosamente todos aqueles [demônios] que vem para cima de si, e, mais especialmente, o demônio da acídia, que, sendo o mais pesado de todos, seguramente testa extremamente a alma. A esquiva de tais lutas ensina a mente a ser inábil, covarde e fugitiva. [2]


29 Nosso maior e mais santo mestre [na vida prática] [3] costumava dizer: ''Assim, o monge deve se preparar como alguém que vai morrer amanhã; e então, mais uma vez, usar o corpo como um companheiro [do monge] com quem estará junto por muitos anos. Aquela [prática] corta os pensamentos da acídia e torna o monge mais zeloso, enquanto esta última guarda o corpo inteiro e em igual medida preserva a continência para com ele''. [4]

30 É difícil escapar do pensamento da vanglória. Pois aquilo que você faz para destruí-lo se torna para você o início de um outro [pensamento de vanglória]. Os demônios não se opõe a cada um de nossos retos pensamentos, mas alguns dele sofrem oposição também daqueles vícios com o qual temos nos conformado. [5]

31 Vi o demônio da vanglória sendo atormentado por todos os demais demônios e permanecendo de pé, insolente, sobre o cadáver dos demônios que o perseguiam, e manifestando ao monge a grandeza de suas [do monge] virtudes. [6]

32 Aquele que alcançou a gnose e colheu o prazer que dela vem não será mais persuadido pelo demônio da vanglória ainda que lhe sejam apresentados todos os prazeres do mundo -- pois o que o demônio pode apresentar que seja maior do que a contemplação espiritual? [7] Na medida em que não temos o gosto da gnose, trabalhemos na vida prática de boa vontade, mostrando a Deus que nosso objetivo em tudo é a busca de Sua [de Deus] gnose. [8]



33  Traga à recordação seu modo anterior de vida e suas falhas antigas e como você, que era apaixonado, passou, por Misericórdia de Cristo, para a impassibilidade e como mais uma vez deixou o mundo que havia te humilhado em muitas coisas. E também avalie isso para mim: quem é que te guarda no deserto e quem expulsa os demônios que rangem os dentes para você? Pois, por um lado, estes pensamentos trabalham a humildade; e, por outro lado, eles não admitem o demônio do orgulho.

 _______________________________________________


[1] O conselho é dirigido para aqueles que estão sendo tentados pelos demônios e não apenas por seus próprios hábitos apaixonados. Essa distinção é exposta por Evágrio mais adiante. Os próximos parágrafos terão por foco o logismoi da acídia. A salmodia aqui citada não é exatamente a oração incessante, embora alguns vejam na passagem sinais disso.

[2] Segundo o comentário de um monge athonita, ''podemos discernir a fisiognomonia do asceta realizado. Ele possui uma perseverança adquirida na batalha; possui um auto-controle que lhe permitir direcionar seus pensamentos de acordo com as boas práticas ascéticas e contra os demônios que o atacam; possui um auto-controle que lhe impede de tolerar a paixão da ira contra seus irmãos; ele possui uma amabilidade sincera que o torna atrativo aos demais. Um homem difícil de ser derrubado pelos demônios. Nenhuma tolice aqui. Nenhuma auto-indulgência. Nenhum sentimentalismo. O homem escolheu a estrada -- ascetismo -- com conhecimento pleno dos perigos, e ele viaja com amor como um guerreiro que busca pelo Deus de Abraão, Isaque e Jacó.''
[3] São Macário de Alexandria.
[4] O asceta deve viver com a contemplação da morte, de modo a espantar os pensamentos da acídia; mas deve possuir o discernimento necessário na realização do ascetismo para não comprometer seu corpo em vãs e imoderadas mortificações.
[5] Evágrio passa a tratar de um novo logismoi nesse ponto, a vanglória. Ele aproveita para notar que nem toda tentação tem por origem o ataque de um demônio, ou seja, de uma inteligência angélica decaída. A origem dos pensamentos apaixonados podem ser hábitos mentais arraigados e com os quais nos deixamos modelar ao longo de nossas vidas.
[6] Passagem muito importante, pois o demônio da vanglória ataca aqueles que possuem realizações e conquistas espirituais. Essas realizações, adquiridas pela vitória sobre outras paixões, podem não ter sido objeto da luta de uma vontade direcionada para Deus e sim para a própria auto-glorificação.
[7] Evágrio fala do 'prazer espiritual' que advém da intuição direta dos logoi dos entes visíveis, dos anjos e das energias divinas, resultado da purificação das paixões e da iluminação do Nous, que é implicitamente contrastado com os prazeres e satisfações oriundos das sensações e, de forma mais ampla, das paixões decaídas.
[8] Aquele que ainda não possui a experiência da gnose deve se concentrar na luta espiritual pela purificação das paixões, a vida prática, mas de boa vontade, tendo por objetivo o amor a Deus, de modo a não ser enganado pela vanglória. O asceta deve purificar suas intenções, confrontando-as continuamente em meio à vida de oração.

2 comentários: