segunda-feira, 10 de março de 2014

O Justiçamento do Aterro ainda sem solução; ou: o elitismo necessário

Durante algum tempo, evitei fazer qualquer comentário sobre o ladrão adolescente que foi pego no Flamengo, levou uma surra e foi preso a um poste com uma tranca de bicicleta. Mas a questão gerou tamanha polêmica nas redes sociais, repercussões fora dela e continua tão quente e ideologizada que tomei a decisão de escrever algumas linhas. O que me espanta é a utilização do episódio específico para as mais disparatadas acusações partidárias. Estas acusações são, sem mais nem menos, provocadas por: a) uma idealização do pobre; b) um ódio preconceituoso contra a classe média. 

Aqueles que querem entender o ocorrido para além da mera retórica política, basta que se dirijam ao youtube e façam uma busca com os termos ''ladrão apanha'': serão inundados por um mar de vídeos nos quais algum assaltante contumaz, pego em flagrante, é surrado por populares. Vão encontrar vídeos de pretos, mulatos, caboclos, indígenas, brancos, cafuzos apanhando, em todas as regiões do país. De forma muito comum, as vítimas são amarradas a cercas, muros e postes. Alguns recebem apenas alguns tapas e humilhação pública antes de serem deixados para a polícia, outros são linchados de modo brutal. Os agressores pertencem, geralmente, às classes populares e baixa-classe média. 

[Certa feita, enquanto eu transitava pela cidade em um ônibus, dois rapazes conversavam próximo a mim. Falavam alto, de modo que não era possível deixar de escutá-los. Um deles contava como reconheceu um sujeito que o havia assaltado quando saltava do ônibus bem no bairro em que morava. Imediatamente chamou uns conhecidos, continuava ele, amarrou o meliante num poste e o humilhou, bateu e o fez devolver o dinheiro.]

O que há de comum em todos estes episódios? Primeiro, um sistema de valores popular que despreza alguns tipos de crime, dentre eles o de estupro e o de roubo. Neste último causo, o popular sente imenso desprezo e ira pelo ladrão que rouba de pobres e remediados, mais ainda se o faz perto de algum bairro residencial. [a mentalidade popular perdoa o assaltante de bancos, mas dificilmente aquele que se volta contra quem tem de suar debaixo do sol para garantir sua sobrevivência. Na minha memória distante, lembro de uma entrevista com um lavrador muito simples do interior do Brasil, em um programa cujo nome não me recordo, no qual, em determinado momento, respondendo a uma questão qualquer sobre seu filho, ele diz que ele ''podia fazer tudo, menos roubar [sic]''.] Segundo, expressões de ''justiçamentos populares'' associado a um mecanismo de busca por bodes expiatórios, em que, por diversos motivos, determinado grupo explode e faz do criminoso um bode expiatório para todas as suas mágoas, vingando-se nele com raiva incontida, agressividade assustadora e violência explosiva 
[1]. Isso é um dado sociológico e de psicologia de massas, e, como tal, é muito comum no país, tanto em áreas rurais quanto urbanas. Em geral, estes fatos não causam comoção maior na mídia e entre o beatiful people. [2]

A reação diante do acontecimento dessa semana no Rio de Janeiro foi bem diferente. O fato tem, realmente, algumas características interessantes que explicam essa reação, embora não sejam, até onde entendo, aquelas que estão sendo costumeiramente denunciadas por aí. Foi um justiçamento que ocorreu no Aterro do Flamengo, zona nobre da Cidade Maravilhosa, vitrine da 'civilização brasileira' -- que se encontra pertinho de eventos que atraíram ainda mais os olhos do mundo para o país e para sua 'capital cultural' -- e praticado, provavelmente, por indivíduos de classe média. Isso foi o suficiente para qualificar o ato de ''bárbaro'', de uma expressão de ''ódio de classe'' e até mesmo de racismo, com chamadas em horário nobre e intimidação a jornalistas que o descreveram tal como é: um dos sintomas óbvios da ineficiência do Estado no cumprimento de uma de suas funções básicas, a saber, garantir a segurança pública. [3]

O que o episódio torna patente são as visões distorcidas e aplicações mal feitas do princípio da Justiça à organização social. Por um lado, há uma velha idealização do pobre, do miserável, que seria, enquanto indivíduo, portador de alguma virtude por causa de sua situação de desvantagem econômica e social. O crime cometido por eles seria a expressão de uma forma de justiça social, uma vingança contra o sistema, legitimada por suas necessidades materiais e pela marginalização que sofrem. O pobre que rouba é quase um rebelde que traz 'igualdade', que equilibra um sistema desarmônico. Ainda que muitos não expressem diretamente estas crenças com todas as letras [alguns assim fazem], no fundo ela está presente, incrustada na alma, arraigada na consciência de boa parte da esquerda. [4] É óbvio que a injustiça social, a desigualdade, a marginalização etc. é aviltante, e que, além disso, é elemento importante na explicação do crime. Claro também que a extrema necessidade torna não só supérflua como até ridícula a aplicação de alguma sanção a uma crime de pouca monta [pense em um esfomeado que afana uma laranja num supermercado]. Mas isso está muito longe de tornar a atividade do roubo em uma ação moralmente correta ou legalmente tolerável. Podemos elencar Padres e mais Padres da Igreja que falavam contra a desigualdade social, a tirania dos ricos, o egoísmo daqueles que tem posses, sempre se colocando a favor da caridade, da partilha das riquezas e da assistência ao pobre. Mas nunca encontraremos nenhum deles dizendo que ser ladrão é uma alternativa cristã para os miseráveis. E olha que era ainda mais difícil ser miserável nos séculos passados do que no Rio de Janeiro do século XXI.

Por outro lado, mas também expressando esse sentimento desvirtuado de Justiça, está a noção, também não claramente exposta mas igualmente entranhada na psique de alguns, de que a classe média tem de engolir calada os crimes cometidos contra ela por este 'pobre-justiceiro-equilibrador-do-sistema'. Afinal, ela está do lado dos algozes nesta história. Pode até se aceitar, pensam, que um grupo de pobres reaja e faça justiçamento contra outros pobres. Mas a classe média, ora bolas? No entanto, a classe média é um grupo de cidadãos, em sua maior parte igualmente honesta e trabalhadora, que tem também direito a segurança, de sair e retornar à sua casa sem que seus bens sejam tomados, ou sem que passem por constrangimentos, violência, humilhações e intimidações. E que, obviamente, explode em ira e vingança quando é aviltada, tal como qualquer pobre do mais necessitado subúrbio ou favela. 

As classes populares entendem e praticam mal a Justiça quando de seus justiçamentos. A classe média também. Os movimentos político-partidários que buscam ideologizar tais explosões de ira e tal procura por bodes expiatórios idem. A verdade é que a Justiça não é popular, não importa o que algumas ideologias digam. O povo costuma ser bárbaro, a massa certamente o é. E a barbárie se faz acompanhar, no campo social, da violência e do desmesuramento. Toda sociedade tem de possuir uma elite preparada para a aplicação da justiça. A ordem civilizada pode prescindir de uma série de coisas, mas nunca de juízes qualificados e de um Estado capaz de impor uma ordem. E uma ordem que seja válida para miseráveis, remediados e ricos. Sem isso, não adianta falar de 'justiça social', 'direitos humanos', 'distribuição de riqueza' etc. Nada mais serão senão expressões para o caos. [5] Se há uma ideia que é afetada por atos similares ao Justiçamento do Aterro é a de que há uma ''justiça de classe'' ou ''do povo''. Ou uma elite, com critérios adequados de formação e seleção [que evidentemente passam longe tanto de cortes econômicos quanto de ideologias classistas], atuando em uma Ordem legítima e eficaz, tem o poder de julgar, ou então estamos à beira da selvageria.

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[1] Se olharmos para além das aparências, o princípio do 'justiçamento' e do 'bode expiatório' encontra outra expressão no linchamento moral e midiático de acusados de crimes de grande repercussão. O advento de grandes redes de comunicação de massa fez com que o fenômeno deixasse de se manifestar de modo localizado e regional, a partir de uma ação direta de determinada comunidade, para se tornar um fenômeno de cadeia nacional. No início da década de 1990, lembro de um exemplo típico. Uma criança, que estudava em uma pequena escola particular de primeiro segmento de ensino fundamental [naquela época, o antigo ''primário''], chegou em casa reclamando de dores para seus pais, e teria dito a eles que teriam sido causadas por abusos sexuais dos direitos e professores. A notícia foi divulgada pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, então em seu auge de influência e apelo às massas, como fato líquido e certo. No dia seguinte, uma massa enfurecida de pais e responsáveis destruiu completamente o colégio, não deixando pedra sobre pedra. Um dia depois a TV noticiava que a criança havia mentido. Um episódio que deixa claro que tecnologia e ''informação'' não é necessariamente sinônimo de civilização, pelo contrário.

[2] Depois do caso no Aterro do Flamengo, no entanto, a mídia viu um grande filão na exploração deste tipo de fato. Mas poucas são as análises críticas que lidem com o cerne do problema. 

[3] A 'terceirização' do Justiçamento, com a contratação de valentões, pistoleiros e inclusive criminosos para fazerem uma 'limpa' em regiões pouco seguras, também tem sido usada para acusações de classe, mas ela é também comum em favelas e regiões pobres, não escapando da estrutura de valores e psicologia de massa que leva, per si, ao apoio a justiceiros.

[4] Pouco tempo depois que a vítima foi quase que transformada por alguns em uma espécie de 'mártir' de uma sociedade injusta, racista e desigual, foi noticiado também que o pequeno ladrão usou os mesmos mecanismos de justiçamento, bode expiatório e humilhação pública contra outros menores.

[5] ''Nada justifica a ação de justiceiros, as punições impostas por grupos à margem das leis ou os ‘julgamentos’ paralelos. Estas são as práticas de que lançam mão as quadrilhas de milicianos, traficantes e as gangues que se aproveitam do medo e da insegurança para angariar algum poder e perpetrar ações violentas. Os ‘playboys’ que prenderam um adolescente de 15 anos a um poste com uma tranca de bicicleta, na madrugada do último domingo, na Zona Sul do Rio, rebaixaram-se ao nível dos criminosos que supostamente tentam combater. Registros da Polícia Civil aos quais o site de VEJA teve acesso mostram que a vítima da gangue, apenas cinco dias antes, tinha comandado uma surra contra outro menor, um colega do abrigo Central Carioca, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Ou seja, decidiu, por conta própria, uma punição a alguém que estava em desvantagem - exatamente como fizeram os homens que o perseguiram. A surra foi registrada no último dia 28 de janeiro.'' 
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/adolescente-preso-a-poste-no-rio-surrou-colega-em-abrigo-de-menores

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