segunda-feira, 3 de março de 2014

Casamento como via de união, ou: o caráter icônico do matrimônio cristão

Antes de começar a falar do sentido do casamento segundo a Ortodoxia convém esclarecer dois equívocos que vem se disseminando, inclusive em meios ortodoxos. Por causa do politicamente correto, ou então como forma de não desanimar leigos ou, quem sabe, até por verdadeira ignorância, pipocam aqui e ali afirmações de que não há hierarquia, no cristianismo, entre a vida celibatária, típica do monge, e a matrimonial. Isto é falso, os Santos Padres deixaram claro que o monacato trata-se de escolha por uma modo de existência superior, e o epíteto de ''via angélica'' por ele recebido expressa simbolicamente sua exaltada posição na fé Ortodoxa. A castidade é uma ascese que todo cristão deve levar à frente, seja ele casado ou solteiro, seja leigo ou sacerdote, viva no mundo ou em mosteiros, pois a luta cristã pode ser vista também como a reintegração do eros decaído e sua transfiguração em uma relação agápica em Deus e com Deus. O celibato, porém, é uma forma de castidade ou de via de reintegração pessoal que se inicia em um ponto mais elevado, aquele que reflete a androginia original adâmica, anterior à separação dos sexos, uma condição que, quando realizada, manifesta um aspecto do Reino, segundo as palavras do próprio Cristo, que ensinava que aqueles que o vivenciavam ''não se casavam nem se davam em casamento, mas vivem como os anjos do céu''. [1]

Outro equívoco, em um pólo contrário ao descrito acima, é o de pensar que o casamento nada mais é do que um estado voltado para a manutenção de certa relação entre os sexos com o objetivo da reprodução e perpetuação da família. É a perspectiva daqueles que nele vêem, fundamentalmente, uma dimensão social da existência sem maiores repercussões espirituais, senão somente aquelas implicadas no âmbito meramente moral. Afinal, pensam, se no Reino dos Céus não há mais casamento, segundo as palavras do Senhor, e se já no Éden Adão era um tipo de andrógino [2], que significado maior o casamento poderia ter senão o de gerar filhos no estado decaído? É importante frisar que não se trata aqui de negar que o casamento tenha também esta função já que após a Queda a reprodução humana tornou necessário o intercurso sexual. Mas o casamento cristão não visa oferecer uma legitimação religiosa, uma espécie de benção, para a operação dos homens nessa dimensão da natureza decaída apenas, como tampouco é uma concessão aos inaptos para a via celibatária, para aqueles que se consomem na luxúria, como se oferecesse a estes tão somente a função de perpetuação da vida 'natural'. O matrimônio cristão, pelo contrário, é um meio de transfigurar esta dimensão da reprodução 'natural' e social, inaugurada com o pecado ancestral, e de proporcionar meios para que os cônjuges superem essa esfera e nasçam em outra vida, em outra camada da realidade. [3]

O casamento se manifesta na ordem criada quando da separação dos sexos que, segundo muitos Padres, foi realizada por Deus em previsão do pecado ancestral. É possível também entender esta separação como reflexo no homem da comunhão de pessoas em uma só natureza que se dá em Deus: afinal, Eva era uma pessoa originada da pessoa e da carne de Adão, era uma outra hipóstase que comungava da mesma ousia. A separação dos sexos dividiu o homem em dois conjuntos psicossomáticos que são complementares em todos os sentidos, tanto em seus aspectos corporais, como também nos psicológicos, mentais e psíquicos [4]. O homem, porém, não permaneceu no estado edênico, situado entre a mortalidade e a imortalidade. O pecado ancestral desregrou as paixões dos nossos pais, dando origem a uma condição doentia que se perpetua ao longo das gerações. Como consequência, as faculdades psicossomáticas humanas tornaram-se desregradas. O Eros, que pode ser visto ou como uma das potências da psique, ou, de forma mais ampla, como uma faculdade síntese da alma, foi desvirtuado. Se no estado edênico ele fluía da mente para o corpo, passava agora a operar a partir deste último e autônomo em relação à Vontade, dando origem ao sensualismo e à luxúria, ao apego pelas coisas do mundo, à fragmentação e ''derramamento'' da psique, através dos sentidos, em um mundo agora objetificado. Associado a este processo, o homem foi revestido de ''vestes de pele'', sinal da animalidade e do corpo de carne [5].

A partir de então, homens e mulheres passaram a se buscar impulsionados pela memória da complementariedade original, a que, consciente ou inconscientemente, buscam por resgatar; pela necessidade de prazer sensorial e sentimental, manifestações típicas do novo estrato animal; e visando a reprodução da espécie e da sociedade, uma geração de novas hipóstases que reflete a Trindade Divina, mas agora manifesta por meio da perpetuação da vida animal [6]. O casamento,sobre o qual falava Senhor em sua resposta aos saduceus, que propuseram o suposto dilema que refutaria a possibilidade de ressurreição, atende a estes impulsos por meio da união sexual. E este é um ponto importante. Como vai ressaltar São João Crisóstomo, a cópula é condição sine qua non para a existência do casamento no mundo decaído. Ele faz notar as palavras de Cristo, que ensina que homem e mulher se tornam ''uma só carne''. Não se trata, portanto, de um união meramente fraternal, mas de uma comunhão a ser realizada fisicamente, por meio da conjunção erótica. É esta conjunção, transfigurada e sustentada pela graça sacramental recebida da Igreja e ligada a uma ascese de entrega mútua, que faz do matrimônio uma possibilidade de transcender a correnteza da mera perpetuação da vida mundana. [7]

A Encarnação do Verbo não apenas restaura como deifica a natureza humana, permitindo que, na Igreja, o matrimônio, operando a partir da união sexual -- patamar em que se colocou o Eros em sua queda --, possa elevar o casal na esfera do ser. São João Crisóstomo ensinou que o casamento é uma via mística que leva o homem não apenas de volta ao estado edênico mas também à contemplação dos mistérios da própria Trindade, tanto em sua economia como também em seu aspecto propriamente teológico. O santo Arcebispo de Constantinopla repetia que o casamento ''é um grande mistério''. Por meio dele, o Eros pode ser reorientado, através do amor aos entes criados, para a união agápica com Deus. A união física e sacramental dos sexos leva não só à reconstituição da androginia edênica, mas reproduz na vida do casal a encarnação do Cristo. São João Crisóstomo ensina que Theotokos é, ao mesmo tempo, filha, esposa e mãe de Cristo. Filha porque criatura, esposa por causa do noivado celeste [8] com o qual se comprometeu em relação ao Senhor, e mãe porque o gerou em sua própria carne -- e aqui se vê em espelho a criação de Eva a partir de Adão. Já segundo São Máximo o Confessor, a Encarnação é um processo de descida do Verbo em que o nascimento histórico de Jesus Cristo pode ser descrito quase que como uma etapa. A manifestação formal do entes é, segundo o mesmo Padre, uma outra dimensão da ''Encarnação'' do Logos. E a primeira delas se dá ainda acima disto, na própria geração dos logoi das criaturas nas energias da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Esta dimensão encarnacional está intimamente ligada à sacramental, pois o casamento reproduz a união hipostática de Cristo com a natureza humana, por um lado, e, por outro, a união mística com a alma do fiel por meio do sacramento eucarístico. Ainda nessa linha, o casamento reflete a própria fundação da Igreja quando, na cruz, Cristo é lanceado no coração, do qual verte sangue e água [9]. Aqui temos mais um espelho, como no caso anteriormente citado da concepção de Cristo na Toda Santa e Pura Mãe de Deus, do nascimento de Eva do lado de Adão. Não é à toa que a eclesiologia é toda ela marcada pelo arquétipo matrimonial, através do qual Cristo é associado ao homem e a Igreja à mulher, de modo que o casamento reproduz em uma escala micro a Nova Criação, em que o Verbo reúne em torno de Si os diferentes entes, vivificando-os e deificando-os com Suas energias, um verdadeiro organismo teândrico. Sintetizando todas estas considerações, São João Crisóstomo vê na união matrimonial o ícone da própria economia divina. Assim como o Pai envia o Filho ao mundo [que, por outro lado, é uma expressão dos próprios logoi criados nas energias do Verbo] para se unir hipostaticamente à natureza humana, santificando-a e deificando-a no organismo teantrópico da Igreja; assim também o homem deixa a sua própria casa para se unir em carne a uma mulher, da qual será mística e moralmente a cabeça, santificando e deificando-a, e ela, assim unida ao seu marido, será para ele seu corpo através da obediência, ou seja, da ligação de sua vontade à vontade dele [10]

O caráter icônico do casamento permite que, por meio da união sexual, do sacramento e da ascese, homem e mulher contemplem e vivenciem, em sua relação e existência como casal, todas estas esferas de realização, chegando até mesmo, mais uma vez segundo São João Crisóstomo, no vislumbre da processão do Espírito a partir da Hipóstase do Pai, do qual a criação de Eva do lado de Adão seria também imagem [11], e a da geração do Filho a partir do Pai, da qual a relação do homem como cabeça da mulher seria a imagem [12]. Estamos cá muito longe daqueles que pensam que o casamento cristão, e sua dimensão sexual, foi instituído apenas para a geração de filhos, como se para isso fosse necessário qualquer sacramento. O casamento é, primordialmente, uma via de união.


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[1] Segundo São Teófono de Poltava, o Novo Recluso, ''é necessário, antes de tudo, estabelecer o entendimento correto do casamento em princípio, e só então examinar a questão de um ponto de vista prático. Há dois pontos de vista extremos a respeito dessa questão que são incorretos em princípio: aquele que considera o casamento como um mal e aquele que abole completamente a diferença de mérito entre o casamento e a virgindade. O primeiro extremo é encontrado em muitas seitas místicas, o segundo é uma opinião geralmente aceita no Ocidente protestante, a partir de onde tem penetrado na literatura ortodoxa. De acordo com este último ponto de vista, os modos de vida matrimonial e virginal são definidos simplesmente por características individuais de um homem, e nada especial ou exaltado é visto do caminho virginal em comparação ao estado marital. Em seu tempo, o Bem Aventurado Jerônimo refutou minuciosamente este ponto de vista em sua obra ''Dois livros contra Joviniano''. O ensinamento positivo da Igreja é belamente expresso por São Serafim nestas palavras: ''o casamento é bom, mas a virgindade é melhor!''[...]''

[2] O homem foi criado ''macho e fêmea'', ou seja, completo sexualmente. Andrógino aqui não significa, claro, alguma forma de hermafroditismo, até porque as características sexuais secundárias não existiam no estado edênico, e sim posse plena das energias e qualidades masculinas e femininas.

[3] Na concepção cristã, as duas funções mais básicas do casamento são, em ordem de importância, evitar a fornicação e a de gerar filhos. No entanto, estas funções não se opõem àquela mais alta, e que será exposta a seguir.

[4] Uma perspectiva muito diferente de movimentos contemporâneos que pensam que a única diferença natural entre homens e mulheres se daria nos órgão sexuais. Os Padres ensinam, inclusive, que no Éden os órgão sexuais não estavam ainda manifestos; o sexo transcende este aspecto, porém, ele se enraíza em todos as dimensões da vida individual, de modo que não é equivocado, em certa medida, falar de uma natureza masculina e uma natureza feminina.

[5] É ensinamento consensual dos Padres, com a exceção de Santo Agostinho, de que não havia cópula sexual no Paraíso. Somente a partir das ''vestes de pele'' que a reprodução humana se deu a partir destes parâmetros. O que não implica que não pudesse haver a geração de novas pessoas humanas no estado edênico. O meio pelo qual Eva foi criada não implicou cópula sexual, por exemplo. O modo de criação de Eva a partir do lado de Adão é uma imagem de grande poder e mistério, um ícone matrimonial que é tido por reflexo de realidades superiores, como veremos a seguir.

[6] Segundo São Simeão de Tessalônica, ''Deus não queria que nossa origem fosse irracional e da semente e impureza. Mas dado que nos tornamos mortais voluntariamente, Ele permitiu que a reprodução da raça se desse como a dos animais, para que soubéssemos a que ponto caímos''. 

[7] Desse modo, por mais meritório que possa ser uma união que se dê sem união sexual, ela não é, propriamente falando, um casamento. A idéia de ''casamento virginal'' é uma imagem da união entre Adão e Eva no Éden, e do noivado celeste e místico, que, por sua vez, é uma expressão da união entre Deus e Theotokos, mas não é a isto que o casamento propriamente dito se refere, como implicado nas palavras do próprio ofício da coroação: ''Una-os em uma só mente e os coroe em uma só carne''. 

[8] O Noivado Celeste é a aplicação do arquétipo do casamento à própria vida virginal. Desse modo, o princípio que rege o casamento está também presente no celibatário.

[9] Ensinamento de São João Damasceno.

[10] Aqui se encontra expresso o caráter ascético do casamento, sintetizado no ato do amor, em sua dimensão física e espiritual. Homem e mulher entregam sua vida um ao outro, como Cristo e Igreja se entregam um ao outro. A Igreja por meio da submissão de sua vontade, Cristo por meio da transmissão deificante de sua vida, seu sangue e sua divindade. No campo corporal, esta entrega é explicada por São João Crisóstomo pela noção de que o marido e mulher não tem mais posse de seu próprio corpo. O corpo do marido pertence à mulher, e o da mulher ao marido.

[11] Segundo os Padres, o sono profundo que Deus enviou sobre Adão quando da criação de Eva não é o sono tal como o conhecemos no mundo decaído. Santo Irineu de Lyon ensinava que este tipo de sono não existia no estado edênico. Na Septuaginta, a palavra hebraica é traduzida por ''êxtase'', com o duplo sentido de ausência de sentimentos e de sonho estático. Este sonho estático de Adão, também chamado de ''sonho profético'' segundo Santo Efraim o Sírio, foi, segundo Santo Agostinho, um tipo de transe que lhe permitiu contemplar a realidade de um ponto de vista mais elevado e profundo. Nesse estado, ele contemplou Eva dentro de si. Em virtude disto, tanto São Clemente de Alexandria quanto São Jerônimo chamam Adão de ''profeta''. Mas a palavra êxtase também é usada aí, segundo São Metódio do Olimpo, com o sentido de união sexual. A criação de Eva, a diferenciação dos sexos, foi, também, o primeiro ato sexual, de modo que ela é filha e esposa de Adão; de um modo similar, Theotokos será mãe e esposa de Cristo.

[12]Figura do Princípio hierárquico e da articulação das diferentes qualidades em torno da Vontade/Intelecto, ou do 'Eu'.



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