sexta-feira, 28 de março de 2014

A Divindade de Cristo nos Evangelhos chamados de ''Sinóticos''

Durante um certo tempo andei me embrenhando no intrincado assunto do estudo histórico sobre Cristo. A ''busca pelo Jesus Histórico'' acabou me interessando não só por causa da temática próxima à minha área de formação mas também porque me parecia útil para responder algumas questões pessoais que carreguei durante algum tempo, principalmente em um período de transição e que acabaria por me levar à Igreja. Com o tempo o interesse passou e o valor que eu dava à abordagem histórica sobre Cristo diminuiu consideravelmente. Mas, ainda que não sirvam como elemento primordial ou fio condutor do estudo de religiões, muita coisa boa pra pensar ainda pode ser aproveitada desse campo. Mais de uma vez me deparei com a dúvida de terceiros sobre a presença da crença na Divindade de Cristo nos Evangelhos sinóticos. Há em alguns círculos uma percepção de que a afirmação explícita da natureza divina do Senhor só aparece no Evangelho de São João Teólogo, e já vi pesquisador de status dizendo bobagens sobre esse tema, alegando inclusive que a famosa declaração ''e o Verbo era Deus'' seria uma interpolação tardia. Para um cristão ortodoxo a palavra dos santos basta. Mas os não cristãos podem contar com boas e fortes indicações de que a fé na Divindade de Cristo estava presente já na primeira geração de cristãos.


Um dos mitos cosmogônicos mais difundidos pelo mundo apresenta o Deus Criador derrotando um monstro aquático ou caminhando por sobre as águas, que são aqui símbolo do Caos Primordial, ou ainda do estado informe anterior ao Cosmos [1]. No Velho Testamento, a imagem de Deus caminhando por sobre as águas, ou as pisando e domando, são frequentes. Elas aparecem não apenas em Gênesis mas também em Jó, no capítulo 9, onde se diz que Deus "sozinho formou as extensões dos Céus e caminha sobre as alturas do Mar", marcando o estabelecimento do Império divino sobre as Águas Primordiais. Na Septuaginta esta passagem utiliza as palavras em grego ''peripaton...epi thalasses'', que querem dizer "andando sobre [o] mar". Também em Habacuc encontramos o mesmo tema, em 3:15: ''Pisaste o mar com teus cavalos, o turbilhão das grandes águas!Esta tradição se mantém nos livros do Velho Testamento que falam sobre a Sabedoria Divina, como no capítulo oito de Provérbios. E de maneira ainda mais inequívoca em Eclesiástico 24: "Sozinha percorri a abóboda celeste, e penetrei nas profundezas dos abismos. Andei sobre as ondas do mar...'' Também nesta passagem a Septuaginta traz a palavra "andei", em grego ''peripatesa''


Pois bem, os Evangelhos de Marcos, Mateus e João trazem um episódio de epifania, uma revelação de Jesus sobre Sua própria divindade: Cristo se apresenta aos discípulos andando por sobre o mar. Os termos em que essa caminhada se apresenta nos remetem de imediato para as passagens do Antigo Testamento. Em Marcos, no capítulo 6, versículo quarenta e oito, Jesus se dirige a eles ''peripaton epi tes thalasses'' [caminhando sobre o mar]. Os discípulos pensam se tratar de um fantasma e se assustam. E o Senhor lhes diz: "Sou eu, não temais". Em grego ''ego eimin [EU SOU ] me phobeisthe''. Depois que sobe ao barco, seus discípulos O adoram e confessam que Ele é "verdadeiramente o Filho de Deus". 


Não só a Igreja Primitiva notou que o episódio se ligava às teofanias de Deus e da Sabedoria domando as Águas Primordiais no Velho Testamento. A conexão era evidente demais também para os contemporâneos críticos da forma. Muitos explicam essa associação alegando que a narrativa é uma invenção. Os discípulos conheceriam as imagens do Antigo Testamento sobre a cosmogonia e o papel criador da Sabedoria e a teriam usado para criar um relato teológico. Estaríamos na presença não de um evento real, mas da construção de uma narrativa de teor mitológico com o propósito de passar determinado ensinamento. Esta hipótese tem, no entanto, alguns problemas muito sérios. Segundo John Paul Meier e outros ligados à ''busca pelo Jesus Histórico'' e estudos correlatos, o episódio da caminhada por sobre as águas tem múltipla corroboração em Marcos e em João [2], e faz parte de uma longa seção de eventos conectados que muitos chamam de "seção do pão". Ou seja, não é um relato isolado que cai de para-quedas no texto como seria de se esperar de uma criação teológica. Por outro lado, muitos bons críticos da forma concordam que, diferente do que se poderia esperar de início, a versão apresentada em João é provavelmente ainda mais primitiva do que a do Evangelho de Marcos. Surpreendentemente, o evangelista que é chamado de "O Teólogo" pela tradição da Igreja narra esse episódio em termos ainda mais crus, despido de imagens tipicamente teológicas. 


Mesmo que se coloque em dúvida a força dos critérios para atestar a historicidade desse evento, ainda assim estamos diante de uma perícope que remonta à primeira geração de cristãos, como se deduz por sua presença em Marcos e em João, duas tradições evangélicas bastante desconectadas e, provavelmente, completamente independentes. Como grande parte dos céticos se fundamenta nos critérios da disciplina histórica para sustentar que as imagens teológicas sobre Cristo se desenvolveram após a segunda geração de cristãos, eles teriam, por estes mesmos critérios, de encarar esse episódio como uma exceção notável que indicaria a afirmação da Divindade de Jesus já nos primórdios da Igreja. Um grande problema para aqueles que crêem na construção gradual do ''mito Jesus''.




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[1] Segundo Mircea Eliade, ''as águas simbolizam a soma universal das virtualidades; são fonte e origem, o depósito de todas as possibilidade de existência; precedem a toda forma e suportam toda a criação.''

[2] A múltipla corroboração ou atestação em fontes independentes é um dos critérios de historicidade aplicados a textos antigos. Nas últimas décadas, uma grande parte dos historiadores mudou sua posição sobre o Evangelho de João, passando-o a considerar fruto de uma tradição autônoma em relação aquela do Evangelho de Marcos.

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