No texto O Brasil entre a História e a historieta falei da necessidade de explicações multicausais para traçar um quadro mais geral da intervenção militar de 1964. Pretendo agora discorrer sobre a produção de uma linha historiográfica fundamentada na sociologia funcionalista, muito forte nas universidades norte-americanas e tributária de desenvolvimentos tanto de Weber quanto Durkheim, mas também de Talcott Parsons, Nikla Luhmann e outros. Para exemplificá-la, escolhi três importantes pesquisadores sobre o papel das Forças Armadas na República, sendo o primeiro deles Gláucio Ary Dillon Soares.
Soares, escrevendo em meados da década de 1980, em meio ao processo de abertura política e redemocratização do país, criticava o trabalho histórico feito a partir de deduções de teorias muito marcadas pela sociologia do conflito, com ênfase na dinâmica de classes. Explica ele que os militares não são uma classe econômica mas um grupo funcional, apontando assim um certo vício de origem presente nas explicações de tendências marxistas, que não conseguiriam dar conta da atuação política de grupos que que agem a partir de valores corporativos em vez de perspectiva classista. Estes valores são constituídos por uma visão de mundo específica a determinada categoria profissional e determinada por sua inserção e função na sociedade, em um conjunto determinado pelas noções de equilíbrio/desequilíbrio sistêmico. Este tipo de abordagem passou a ser conhecido como perspectiva organizacional, uma busca por compreender as estruturas internas e valores intrínsecos das diferentes organizações sociais para avaliar a participação política das dita cujas. Nesse caso, existiria um determinado ethos militar que teria de ser levado em conta na análise histórica, em vez de subordinar os processos que envolvem os militares a uma dinâmica de classes. Por sua vez, estes valores corporativos, componentes de uma ''mente militar'', não variariam muito no tempo, pois seriam funções que modelam a cultura e a mentalidade de seus integrantes. Outro fator constituinte é a percepção dos militares sobre a maneira que a sociedade os vê, que estabeleceria na ''mente militar'' uma descontinuidade, que em certos momentos tomaria a forma de uma disfunção, entre Forças Armadas/Sociedade civil.
Há várias críticas metodológicas e teóricas que podem ser apontadas no trabalho de Gláucio Ary Dillon Soares. Em primeiro lugar, ele enfatiza uma abordagem micro, que, em seu trabalho, privilegia entrevistas e depoimentos com os envolvidos nos eventos, acumulando dados quantitativos e estatísticos [1]. É uma abordagem que contempla o indivíduo, que seria o portador concreto da mentalidade a ser identificada e analisada, a ''mente militar'' tal como absorvida e interpretada pelos próprios militares. Essa escolha faz parte da crítica que Soares faz à produção ensaísta baseada na sociologia do conflito; no entanto, ele acaba caindo em outros extremo, criando uma dicotomia insustentável entre fontes e teoria e tratando de maneira ingênua as primeiras, uma forma um tanto desbragada de empirismo que pensa poder deixar os ''fatos falarem por si''. Sem levar em conta a subjetividade dos depoentes, o contexto dos depoimentos, sem nenhum contraste destas fontes com outras de natureza diversa, e sem nem mesmo uma análise crítica do discurso, Soares acaba caindo em uma quantificação do manifesta e expresso, passando por cima de tudo quanto, nas entrevistas, está implícito e latente [2]. Desse jeito cambaleante ele chega à conclusão de que o golpe foi exclusivamente militar, produto de um atrito crescente entre o ethos das FFAA e as ações de Jango. Apesar destes problemas, a concepção organizacional de Soares trouxe novidades à temática da intervenção de 1964 ao tratar os militares como um grupo característico, uma corporação com particularidades próprias e visando se reproduzir no tempo, em interação com outros corpos sociais, em vez de simplesmente fragmentá-la em um conjunto de indivíduos analisados através de categorias extrínsecas à sua vivência profissional e aos valores nela transmitidos.
Edmundo Campos Coelho fez uma aplicação mais consistente da sociologia funcionalista. Também ele encara o Exército como uma organização que possui dinâmica própria e que permanecia em constante interação com outros corpos sociais, que constituem, para as Forças Armadas, ''seu entorno''. Esta dinâmica se explicaria por fatores internos e expressariam uma evolução similar à orgânica, de modo que o Exército seria com um organismo em crescimento, construindo sua identidade em etapas distintas. O período de formação das Forças Armadas -- sua ''infância'', por assim dizer -- teria se dado durante o Império, época em que a organização militar estaria subordinada inteiramente à sua ''mãe'', a sociedade civil [3]. Com a proclamação da
República os militares romperam o cordão umbilical, criando uma novo padrão de relacionamento com as elites civis, mas ainda sem uma identidade inteiramente definida [4]. Na etapa seguinte, posterior a 1930, a identidade militar teria sido construída por meio da elaboração de uma ''missão'', a Doutrina Góes, que era um projeto amplo com o escopo de tornar as Forças Armadas em um ator político nacional, invertendo, inclusive, os papéis de relação com a sociedade civil ao sustentar que esta deve se organizar pelo paradigma daquelas [5]. Neste período, que coincidiria com o Estado Novo, a organização militar teria alcançado uma identidade própria, com objetivos, disciplina e unidade de ação bem definidas [6]. Entre 1945/1964 teria havido um período de influências recíprocas com a sociedade, que teria internalizado e enraizado as propostas do corpo militar, enquanto este, por sua vez, tinha de dar respostas às questões enfrentadas pelo país como um todo. Segundo Coelho, o maior dos problemas nesta época teria sido o nascimento da cultura de massas, que ele chama de ''secularização da sociedade'', um cenário em que o espraiamento de um pragmatismo ético desvinculado de valores mais abstratos teria acarretado o afastamento do ethos militar daquele dos civis, gerando um processo de alienação mútua, que, por um lado, afirmou ainda mais a identidade militar, e, por outro, se tornou base para uma crise sistêmica nos anos 1960, causada pela expansão da identidade militar na sociedade [7]. 1964 era o momento, a oportunidade que os militares tinham
de transformar seus valores em coordenadas para o conjunto da população.
O grande ''Calcanhar de Aquiles'' da análise de Coelho é enxergar as FFAA como uma instituição total, controlando completamente a vida e o pensamento de seus integrantes, nos quais imprimiria não só uma mentalidade única como também uma unidade de atuação política. Por isso ele tem grandes dificuldades de lidar com os episódios que apontam o conflito no interior da própria organização militar, principalmente aqueles durante o período populista, e que indicam que ela não é uma unidade completamente fechada, mas que se abre e se projeta em seu entorno. Este é um ponto interessante de reflexão, pois a recusa de Edmundo Campos Coelho em tratar de certos aspectos da relação entre militares e os civis a partir de 1945 revelam os limites da aplicação rígida da própria sociologia funcionalista.
O grande ''Calcanhar de Aquiles'' da análise de Coelho é enxergar as FFAA como uma instituição total, controlando completamente a vida e o pensamento de seus integrantes, nos quais imprimiria não só uma mentalidade única como também uma unidade de atuação política. Por isso ele tem grandes dificuldades de lidar com os episódios que apontam o conflito no interior da própria organização militar, principalmente aqueles durante o período populista, e que indicam que ela não é uma unidade completamente fechada, mas que se abre e se projeta em seu entorno. Este é um ponto interessante de reflexão, pois a recusa de Edmundo Campos Coelho em tratar de certos aspectos da relação entre militares e os civis a partir de 1945 revelam os limites da aplicação rígida da própria sociologia funcionalista.
Alfred Stepan é um cientista
político norte-americano, um dos ''brasilianistas'' da historiografia, como são chamados os pesquisadores que foram contemplados por bolsas financiadas direta ou indiretamente pelo governo estadunidense e acabaram realizando um trabalho pioneiro e importante para o conhecimento histórico brasileiro [8]. Possuidor de uma análise sistêmica, que faz confluir na explicação tanto fatores de ordem estrutural quanto conjunturais, ele vê a sociedade brasileira como um grande sistema em interação com outros maiores e internacionais. O Brasil, por sua vez, comporta conjuntos próprios, como o político, que também tem seus ramos. Estes sistemas podem estar funcionando de modo equilibrado ou desequilibrado uns com os outros, sendo a crise explicada por uma mudança na interação entre os subsistemas do conjunto social, uma análise que permite inclusive articular causalidades de diferentes temporalidades. Nem por isso o pesquisador deixa de dar importância aos fatores intencionais, às decisões dos atores históricos em meio a estes elementos determinantes de natureza estrutural, de modo que o desenrolar e o desfecho factual da crise depende de escolhas pessoais.
A obra de Stepan parte de uma questão colocada por sua própria experiência na sociedade em que vive, onde as FFAA tem uma função bastante específica e vinculada à ideologia da democracia liberal, segundo a qual os militares, modelados pela figura típica do soldado-profissional, devem estar subordinados ao poder civil, cabendo a política ao sistema partidário. Percebendo que este modelo liberal não funciona no país, apesar da letra da lei e da formatação dada às instituições, Stepan identifica a causa deste ''desvio'' na baixa institucionalização do sistema partidário, que causaria o transbordamento da política para outras organizações, incluindo aí o Exército. Outro ponto fundamental de sua análise é a descrição de um um padrão típico de relacionamento entre militares e civis, que ele qualifica de 'modelo moderador', fazendo assim uma analogia com o poder exclusivo do Imperador durante a Monarquia [9]. Segundo esse padrão, os militares teriam o direito de intervir no sistema político em momentos de crise, devolvendo logo depois o poder aos civis, como ocorreu quando da Revolução de 1930, ou no fim do Estado Novo, na queda de Getúlio em 1954, na possa de Juscelino em 1956 etc. [10] A grande novidade de 1964 seria a ruptura com este padrão, já que os militares decidem permanecer no poder. As razões para esse desdobramento seriam encontradas em mudanças ideológicas ocorridas nas Forças Armadas durante a Segunda Guerra Mundial, quando foram colocadas sob liderança norte-americana no campo de batalha. A partir dali, a organização militar formulou uma nova função atrelada à perspectiva da Doutrina de Segurança Nacional, que se expressou institucionalmente pela fundação da Escola Superior de Guerra [11]. A característica mais marcante desta escola de formação foi o treinamento de uma elite militar que se considerava superior aos civis, já que só ela se teria verdadeiro interesse nacional, com uma visão de mundo específica e orientada pelo confronto civilizacional da guerra fria, com conhecimento técnico e capacidade para governar. Esta elite não apenas se considerava apta a exercer o poder como estava convencida que os civis haviam perdido esta capacitação justamente em um momento em que crescia o perigo comunista e em que as Forças Armadas precisariam exercer de maneira precisa seu papel de salvaguarda da República [12]. Segundo Stepan, esta mudança ideológica nas Forças Armadas teria começado já nos anos 1940, mas se atualizou de acordo com as conjunturas políticas de então [13], marcada por uma crise institucional e pela incapacidade de João Goulart levar a frente seus projetos por causa de particularidades do sistema eleitoral, que seria obstáculo na formação de uma maioria parlamentar. Diante disso, o presidente tomou uma decisão fundamental, a de legitimar as 'Reformas de Base' à parte do Congresso, sendo o 'Comício da Central' o evento símbolo dessa tentativa. Estas opções realizadas por Jango [14] em um momento de mudança ideológica das FFAA e de crise sistêmica desencadearam não só a intervenção militar mas a permanência dos generais no poder.
A sociologia funcionalista fornece importantes subsídios para explicar e descrever os acontecimentos que levaram ao regime militar. Claro que seu arcabouço teórico não deve se tornar uma prisão. Não se pode perder de vista que o indivíduo contemporâneo possui uma identidade multifacetada na qual está presente também características de classe, que tangenciam e perpassam os valores que absorve das comunidades e corpos sociais dos quais faz parte. Também não se pode perder de vista a velocidade das transformações do mundo contemporâneo, que geram áreas ainda maiores de atritos entre as diferentes organizações de um mesmo sistema social, que podem também ser descritas não apenas enquanto desequilíbrios, mas como conflitos, rupturas que levam perigo ao sistema como um todo. Também seria interessante levar em conta os elementos de estrutura econômica que fazem parte do organismo social, que alimentam inclusive a cultura predominante e a articulação dos diversos subsistemas, ligando-os à reprodução de uma formação social específica. Estes aspectos, associados a uma pesquisa biográfica dos atores históricos, dos sujeitos que tomam as decisões em meio a todas estas conjunturas, se torna vital para entender os complexos arranjos e resultados da História.
____________________
[1] A abordagem 'micro' de Glaúcio Ary Dillon Soares não tem nada a ver com a 'micro-história' de um Carlo Ginzburg. Ela diz respeito antes a uma ênfase no discurso e percepção dos indivíduos envolvidos no evento histórico, entendidos como unidade mínima na qual se poderia perceber a mentalidade do corpo social da qual faz parte.
[2] Soares sequer se coloca a questão de saber o quão ideologizados podem ser os depoimentos de militares sobre as razões do golpe, ainda mais em um período em que buscavam justificar-se frente aos processos de redemocratização. Além disso, a mera expressão das motivações com as quais os agentes justificam suas ações não poderiam se tomadas, por si só, como nexos causais reais de processos históricos.
[3] Pesquisas historiográficas apontaram que a origem social dos oficiais do Exército durante a Monarquia eram estratos decadentes das elites civis tradicionais. Estes sujeitos, ao se verem em situação financeira periclitante, costumavam adentrar o alto funcionalismo público, tanto na área militar quanto jurídica. Se a situação fosse pior ainda, tornavam-se profissionais liberais -- eis aí a origem da primeira classe média brasileira, chamada de 'tradicional'. Há, portanto, vínculos sociais muito fortes entre estes grupos e classes sociais. O que não implica, necessariamente, em solidariedade irrestrita. O alto oficialato militar, por exemplo, vai se ressentir de seu pequeno espaço político em um Império dominado por um mentalidade civilista que desqualificava a função militar. O papel do Exército, inclusive, não era sequer o de manter a ordem interna do país, função que era conferida à Guarda Nacional. A Guerra do Paraguai vai expor as fraturas desse tipo de relação, quando, vitoriosos no campo de batalha, os oficiais das FFAA passaram a exigir maior peso na vida nacional.
[4] Um padrão ambíguo, que desvalorizava a participação política militar ao mesmo tempo que os exaltava como guardiões dos valores republicanos.
[5] Percebendo o esfacelamento da estrutura do Exército nas rebeliões tenentistas ocorridas durante a Primeira República, o grupo a que pertencia o General Góes Monteiro tomou a responsabilidade de fortalecer a hierarquia das instituições militares, tornando-as mais rígidas e controlando-as inteiramente do alto. Isto seria vital para que o Exército, até então fragmentado e fragilizado, pudesse cumprir sua função constitucional, a de proporcionar segurança para a nação. Segundo ele, ''devia acabar com a política NO Exército para que se fizesse a política DO Exército''. Esta formatação da organização militar foi realizada por meio de diversos expurgos, que se aproveitaram dos embates políticos ocorridos tanto em 1930, como também na revolta paulista de 1932, no levante comunista de 1935 e no golpe do Estado Novo em 1937. Para isso era necessário também eliminar a concorrência que as FFAA possuíam nas forças públicas estaduais, as ''polícias'' das oligarquias, que eram, em certos casos, bastante poderosas. O grupo de Góes Monteiro percebia que naquele mundo uma força militar forte só podia existir diante da presença no país de certas indústrias de base -- uma perspectiva trazida ao país já na década de 1910 pelos ''jovens turcos', oficiais que estudaram na Alemanha e enxergaram o poder das forças militares daquele país, impulsionadas pela economia e ''revolução do alto'' que modelou a nova potência europeia. Desse modo, a Doutrina Góes não apenas se limitava a reintegrar administrativamente o Exército, mas a exigir que o Estado não apenas revertesse seu formato federativo, mas se tornasse centralizado e capaz de impor um programa de industrialização setorial. Grande parte da pressão sobre Vargas para investimento na área petrolífera e siderúrgica nasceu das Forças Armadas. Claro está que a Doutrina Góes previa toda uma reformulação não apenas da organização militar, mas também das instituições brasileiras.
[6] Um aspecto importante nesta análise é a ideia de Coelho de que há uma continuidade entre a Doutrina Góes e a Doutrina de Segurança Nacional elaborada pela futura Escola Superior de Guerra.
[7] Há aqui problemas com a análise de Edmundo Campos Coelho e que são atacados pelos defensores de uma sociologia do conflito. O período populista da República viu o alto oficialato do Exército se dividir em correntes distintas e que se articulavam em alianças com fragmentos da elite civil. Havia uma corrente nacionalista de esquerda, uma corrente nacionalista de direita e uma liberal de direita. Estas correntes, além de dialogarem com os civis, compondo alianças com eles, entravam em disputas nas eleições do Clube Militar, que eram extremamente importantes no período para se conhecer as tendências predominantes entre os generais. Essa divisão também esteve no cerne da divisão ocorrida em 1961, com a renúncia de Jânio, com o impasse entre a tentativa de golpe no Rio de Janeiro, e a ''cadeia de legalidade'' de Leonel Brizola, que teve apoio do comandante do III Exército, sediado no Rio Grande do Sul. Além disso, não é totalmente seguro afirmar que o ethos militar se encontrava tão divorciado assim das transformações culturais que ocorriam na sociedade brasileira das décadas de 1950 e 1960. Há pesquisas que indicam o contrário.
[8] O governo dos Estados Unidos tinha interesses estratégicos na pesquisa histórica dos países latino-americanos depois do episódio traumático da Revolução Cubana. Os ''brasilianistas'' realizaram importantes trabalhos, alguns clássicos, em diversos períodos da História brasileira. Cito rapidamente os nomes de Kenneth Maxwell e de Thomas Skidmore. Eles se beneficiavam de uma grande qualificação acadêmica, ainda não existente no Brasil por causa de falta de estrutura universitária e ausência de programas de pós-graduação, e de um acesso mais fácil a fontes militares por causa da conjuntura política.
[9] Na verdade, a expressão não foi inventada por Stepan, estando já presente na Primeira República [1989/1930]. Ele apenas a formalizou conceitualmente.
[10] É interessante notar que o sucesso dessa intervenção depende da existência de um consenso entre os generais sobre que lado apoiar. O fracasso em estabelecer esse consenso explica a ocorrência de golpes e contra-golpes na década de 1950 e, principalmente, a quase guerra civil desencadeada com a renúncia de Jânio Quadros.
[11] Alguns aspectos importantes a serem percebidos: Os funcionalistas dão grande importância a análise das instituições modeladoras da mentalidade e dos valores de determinadas organizações e grupos sociais. Neste caso, a Escola Superior de Guerra, fundada no modelo do War College norte-americano, seria a formadora da elite militar, o instrumento de transmissão da nova identidade da corporação. Outro ponto importante é que Stepan dá ênfase à ruptura representada pela participação do Exército na Segunda Guerra Mundial. A Doutrina de Segurança Nacional elaborada pela ESG não seria uma simples continuidade com a Doutrina Góes. Stepan percebe a importância do diálogo entre os sistemas internos do país e o sistema internacional na análise da dinâmica do conjunto político brasileiro.
[12] A Doutrina de Segurança Nacional apostava em um conflito de longa duração entre civilizações diferentes, a ocidental cristã e a comunista atéia, marcada por competições em todos os âmbitos, e que levariam a ideia de Segurança da nação para todos os aspectos da vida social, inclusive o esportivo. A Segurança não dependeria somente de fatores externos, mas também internos, já que agentes subversivos poderiam operar a favor do adversário no território pátrio mesmo. Era o conceito de ''inimigo interno''.
[13] Um exemplo de como articular causalidades de diversas temporalidades. O ''salvacionismo'' militar remonta, na verdade, à República Velha.
A obra de Stepan parte de uma questão colocada por sua própria experiência na sociedade em que vive, onde as FFAA tem uma função bastante específica e vinculada à ideologia da democracia liberal, segundo a qual os militares, modelados pela figura típica do soldado-profissional, devem estar subordinados ao poder civil, cabendo a política ao sistema partidário. Percebendo que este modelo liberal não funciona no país, apesar da letra da lei e da formatação dada às instituições, Stepan identifica a causa deste ''desvio'' na baixa institucionalização do sistema partidário, que causaria o transbordamento da política para outras organizações, incluindo aí o Exército. Outro ponto fundamental de sua análise é a descrição de um um padrão típico de relacionamento entre militares e civis, que ele qualifica de 'modelo moderador', fazendo assim uma analogia com o poder exclusivo do Imperador durante a Monarquia [9]. Segundo esse padrão, os militares teriam o direito de intervir no sistema político em momentos de crise, devolvendo logo depois o poder aos civis, como ocorreu quando da Revolução de 1930, ou no fim do Estado Novo, na queda de Getúlio em 1954, na possa de Juscelino em 1956 etc. [10] A grande novidade de 1964 seria a ruptura com este padrão, já que os militares decidem permanecer no poder. As razões para esse desdobramento seriam encontradas em mudanças ideológicas ocorridas nas Forças Armadas durante a Segunda Guerra Mundial, quando foram colocadas sob liderança norte-americana no campo de batalha. A partir dali, a organização militar formulou uma nova função atrelada à perspectiva da Doutrina de Segurança Nacional, que se expressou institucionalmente pela fundação da Escola Superior de Guerra [11]. A característica mais marcante desta escola de formação foi o treinamento de uma elite militar que se considerava superior aos civis, já que só ela se teria verdadeiro interesse nacional, com uma visão de mundo específica e orientada pelo confronto civilizacional da guerra fria, com conhecimento técnico e capacidade para governar. Esta elite não apenas se considerava apta a exercer o poder como estava convencida que os civis haviam perdido esta capacitação justamente em um momento em que crescia o perigo comunista e em que as Forças Armadas precisariam exercer de maneira precisa seu papel de salvaguarda da República [12]. Segundo Stepan, esta mudança ideológica nas Forças Armadas teria começado já nos anos 1940, mas se atualizou de acordo com as conjunturas políticas de então [13], marcada por uma crise institucional e pela incapacidade de João Goulart levar a frente seus projetos por causa de particularidades do sistema eleitoral, que seria obstáculo na formação de uma maioria parlamentar. Diante disso, o presidente tomou uma decisão fundamental, a de legitimar as 'Reformas de Base' à parte do Congresso, sendo o 'Comício da Central' o evento símbolo dessa tentativa. Estas opções realizadas por Jango [14] em um momento de mudança ideológica das FFAA e de crise sistêmica desencadearam não só a intervenção militar mas a permanência dos generais no poder.
A sociologia funcionalista fornece importantes subsídios para explicar e descrever os acontecimentos que levaram ao regime militar. Claro que seu arcabouço teórico não deve se tornar uma prisão. Não se pode perder de vista que o indivíduo contemporâneo possui uma identidade multifacetada na qual está presente também características de classe, que tangenciam e perpassam os valores que absorve das comunidades e corpos sociais dos quais faz parte. Também não se pode perder de vista a velocidade das transformações do mundo contemporâneo, que geram áreas ainda maiores de atritos entre as diferentes organizações de um mesmo sistema social, que podem também ser descritas não apenas enquanto desequilíbrios, mas como conflitos, rupturas que levam perigo ao sistema como um todo. Também seria interessante levar em conta os elementos de estrutura econômica que fazem parte do organismo social, que alimentam inclusive a cultura predominante e a articulação dos diversos subsistemas, ligando-os à reprodução de uma formação social específica. Estes aspectos, associados a uma pesquisa biográfica dos atores históricos, dos sujeitos que tomam as decisões em meio a todas estas conjunturas, se torna vital para entender os complexos arranjos e resultados da História.
____________________
[1] A abordagem 'micro' de Glaúcio Ary Dillon Soares não tem nada a ver com a 'micro-história' de um Carlo Ginzburg. Ela diz respeito antes a uma ênfase no discurso e percepção dos indivíduos envolvidos no evento histórico, entendidos como unidade mínima na qual se poderia perceber a mentalidade do corpo social da qual faz parte.
[2] Soares sequer se coloca a questão de saber o quão ideologizados podem ser os depoimentos de militares sobre as razões do golpe, ainda mais em um período em que buscavam justificar-se frente aos processos de redemocratização. Além disso, a mera expressão das motivações com as quais os agentes justificam suas ações não poderiam se tomadas, por si só, como nexos causais reais de processos históricos.
[3] Pesquisas historiográficas apontaram que a origem social dos oficiais do Exército durante a Monarquia eram estratos decadentes das elites civis tradicionais. Estes sujeitos, ao se verem em situação financeira periclitante, costumavam adentrar o alto funcionalismo público, tanto na área militar quanto jurídica. Se a situação fosse pior ainda, tornavam-se profissionais liberais -- eis aí a origem da primeira classe média brasileira, chamada de 'tradicional'. Há, portanto, vínculos sociais muito fortes entre estes grupos e classes sociais. O que não implica, necessariamente, em solidariedade irrestrita. O alto oficialato militar, por exemplo, vai se ressentir de seu pequeno espaço político em um Império dominado por um mentalidade civilista que desqualificava a função militar. O papel do Exército, inclusive, não era sequer o de manter a ordem interna do país, função que era conferida à Guarda Nacional. A Guerra do Paraguai vai expor as fraturas desse tipo de relação, quando, vitoriosos no campo de batalha, os oficiais das FFAA passaram a exigir maior peso na vida nacional.
[4] Um padrão ambíguo, que desvalorizava a participação política militar ao mesmo tempo que os exaltava como guardiões dos valores republicanos.
[5] Percebendo o esfacelamento da estrutura do Exército nas rebeliões tenentistas ocorridas durante a Primeira República, o grupo a que pertencia o General Góes Monteiro tomou a responsabilidade de fortalecer a hierarquia das instituições militares, tornando-as mais rígidas e controlando-as inteiramente do alto. Isto seria vital para que o Exército, até então fragmentado e fragilizado, pudesse cumprir sua função constitucional, a de proporcionar segurança para a nação. Segundo ele, ''devia acabar com a política NO Exército para que se fizesse a política DO Exército''. Esta formatação da organização militar foi realizada por meio de diversos expurgos, que se aproveitaram dos embates políticos ocorridos tanto em 1930, como também na revolta paulista de 1932, no levante comunista de 1935 e no golpe do Estado Novo em 1937. Para isso era necessário também eliminar a concorrência que as FFAA possuíam nas forças públicas estaduais, as ''polícias'' das oligarquias, que eram, em certos casos, bastante poderosas. O grupo de Góes Monteiro percebia que naquele mundo uma força militar forte só podia existir diante da presença no país de certas indústrias de base -- uma perspectiva trazida ao país já na década de 1910 pelos ''jovens turcos', oficiais que estudaram na Alemanha e enxergaram o poder das forças militares daquele país, impulsionadas pela economia e ''revolução do alto'' que modelou a nova potência europeia. Desse modo, a Doutrina Góes não apenas se limitava a reintegrar administrativamente o Exército, mas a exigir que o Estado não apenas revertesse seu formato federativo, mas se tornasse centralizado e capaz de impor um programa de industrialização setorial. Grande parte da pressão sobre Vargas para investimento na área petrolífera e siderúrgica nasceu das Forças Armadas. Claro está que a Doutrina Góes previa toda uma reformulação não apenas da organização militar, mas também das instituições brasileiras.
[6] Um aspecto importante nesta análise é a ideia de Coelho de que há uma continuidade entre a Doutrina Góes e a Doutrina de Segurança Nacional elaborada pela futura Escola Superior de Guerra.
[7] Há aqui problemas com a análise de Edmundo Campos Coelho e que são atacados pelos defensores de uma sociologia do conflito. O período populista da República viu o alto oficialato do Exército se dividir em correntes distintas e que se articulavam em alianças com fragmentos da elite civil. Havia uma corrente nacionalista de esquerda, uma corrente nacionalista de direita e uma liberal de direita. Estas correntes, além de dialogarem com os civis, compondo alianças com eles, entravam em disputas nas eleições do Clube Militar, que eram extremamente importantes no período para se conhecer as tendências predominantes entre os generais. Essa divisão também esteve no cerne da divisão ocorrida em 1961, com a renúncia de Jânio, com o impasse entre a tentativa de golpe no Rio de Janeiro, e a ''cadeia de legalidade'' de Leonel Brizola, que teve apoio do comandante do III Exército, sediado no Rio Grande do Sul. Além disso, não é totalmente seguro afirmar que o ethos militar se encontrava tão divorciado assim das transformações culturais que ocorriam na sociedade brasileira das décadas de 1950 e 1960. Há pesquisas que indicam o contrário.
[8] O governo dos Estados Unidos tinha interesses estratégicos na pesquisa histórica dos países latino-americanos depois do episódio traumático da Revolução Cubana. Os ''brasilianistas'' realizaram importantes trabalhos, alguns clássicos, em diversos períodos da História brasileira. Cito rapidamente os nomes de Kenneth Maxwell e de Thomas Skidmore. Eles se beneficiavam de uma grande qualificação acadêmica, ainda não existente no Brasil por causa de falta de estrutura universitária e ausência de programas de pós-graduação, e de um acesso mais fácil a fontes militares por causa da conjuntura política.
[9] Na verdade, a expressão não foi inventada por Stepan, estando já presente na Primeira República [1989/1930]. Ele apenas a formalizou conceitualmente.
[10] É interessante notar que o sucesso dessa intervenção depende da existência de um consenso entre os generais sobre que lado apoiar. O fracasso em estabelecer esse consenso explica a ocorrência de golpes e contra-golpes na década de 1950 e, principalmente, a quase guerra civil desencadeada com a renúncia de Jânio Quadros.
[11] Alguns aspectos importantes a serem percebidos: Os funcionalistas dão grande importância a análise das instituições modeladoras da mentalidade e dos valores de determinadas organizações e grupos sociais. Neste caso, a Escola Superior de Guerra, fundada no modelo do War College norte-americano, seria a formadora da elite militar, o instrumento de transmissão da nova identidade da corporação. Outro ponto importante é que Stepan dá ênfase à ruptura representada pela participação do Exército na Segunda Guerra Mundial. A Doutrina de Segurança Nacional elaborada pela ESG não seria uma simples continuidade com a Doutrina Góes. Stepan percebe a importância do diálogo entre os sistemas internos do país e o sistema internacional na análise da dinâmica do conjunto político brasileiro.
[12] A Doutrina de Segurança Nacional apostava em um conflito de longa duração entre civilizações diferentes, a ocidental cristã e a comunista atéia, marcada por competições em todos os âmbitos, e que levariam a ideia de Segurança da nação para todos os aspectos da vida social, inclusive o esportivo. A Segurança não dependeria somente de fatores externos, mas também internos, já que agentes subversivos poderiam operar a favor do adversário no território pátrio mesmo. Era o conceito de ''inimigo interno''.
[13] Um exemplo de como articular causalidades de diversas temporalidades. O ''salvacionismo'' militar remonta, na verdade, à República Velha.
[14] Stepan será claro em apontar uma certa falta de manobra de João Goulart para lidar com a conjuntura que recebeu.