quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Reflexões sobre a relação entre castas e a formação social na gestação da Inglaterra e do Brasil

Portugal era um país de terras pobres, incapazes de sustentar boa parte de sua nobreza. Quem herdava o título nobiliárquico era o primogênito da casa, e os demais tinham de se virar. A situação se agravava em relação a casas aristocráticas menores. Como comum na Idade Média, crise da nobreza significava guerras e saques sem fim, levando o entorno ao caos e a uma maior fragmentação política, típica do feudalismo.


Um segundo ponto é que Portugal se constituiu como Reino em meio a Reconquista Ibérica. Foi ali que nobres e príncipes enérgicos reuniram a aristocracia em torno de si e levaram a guerra para inimigos exteriores, que acabavam sendo fonte de riquezas na medida em que eram conquistados, saqueados etc. Esta era uma solução eficaz para os grupos nobres durante as crises medievais, em Portugal não foi diferente.


O Reino português foi constituído na medida em que os nobres ofereciam serviços para a Coroa, recebendo em troca ''mercês'' reais, ou seja, benefícios territoriais, comerciais e cargos, que eram possíveis exatamente por causa do cenário de guerra contínua.


No âmbito externo, o que garantia o reconhecimento do Reino era o acordo feito com o Vaticano. A associação dos dois pontos citados implicava que a expansão territorial, a 'Reconquista', não poderia parar sob pena de falir de vez a nobreza e de destruir a lealdade da dita cuja à Monarquia.


Quando a Reconquista terminou, Portugal atacou Castela. Diante da fragilidade frente aos vizinhos, e na iminência do fim do Reino, ocorreu a Revolução de Avis, que alavancou o incipiente absolutismo português e a aliança com setores burgueses das grandes cidades.


Portugal se voltou para a expansão pelo norte da África. Sendo fraco inclusive para esta empreitada, resolveu investir nas Grandes Navegações. O mais importante neste cenário era a crescente associação dos nobres com o comércio. Era o nobre-comerciante, ou, no limite, o comerciante-nobre. Gente que se envolvia na atividade mercantil com todo o beneplácito e proteção do Estado, a fim de manter o status nobiliárquico lá na terrinha.


Eis de onde vem a aristocracia brasileira do Império e, depois, a mentalidade que rege o ''empresariado'' nacional. Esta mentalidade não se modificou nem mesmo com o aporte do campesinato europeu em São Paulo e Rio de Janeiro, no início do século XX. 


O ''Estado'' inglês é um caso bem diferente, possuía uma boa unidade durante a Idade Média Central -- já que foi constituído em torno de uma conquista normanda que veio do estrangeiro, ainda no século XI --, e a manteve durante a tremenda crise da civilização medieval a partir do século XIV. Era um ''Estado'' constituído em termo medievais, por meio de vassalagem, nos moldes do início de Portugal, embora por razões diferentes.


Esta unidade entrou em colapso com a derrota na Guerra dos Cem Anos e na disputa dinástica que se seguiu e que lhe foi consequência, a Guerra das Duas Rosas. A Nobreza, para sair da crise iniciada no fim da Idade Média, e impossibilitada de empreender guerras e de aumentar a exploração em cima dos servos [dada as rebeliões de um campesinato no limite da crise, nos séculos XIV e XV], já que estava ameaçada de extinção pelo século anterior de conflitos, além de muito enfraquecida em relação ao continente -- expulsa que foi pela superioridade fiscal e bélica da monarquia francesa --, passou por um processo de mercantilização ligada ao comércio de lã, que escoava pelo norte da Europa; ou antes, se desmilitarizou bem antes que suas congêneres. Ela não precisava do Estado pra viver, o que explica em parte, e sob certo aspecto, a ''Revolução Gloriosa'' e o fracasso de implementação de um absolutismo verdadeiro por ali. 


A burguesia industrial inglesa, porém, não nasceu dessa aristocracia mercantilizada, mas de camponeses enriquecidos. Tem menos a ver com ''acumulação primitiva de capital'' do que com a diversificação sócio-econômica de um campesinato que, por causa da mercantilização da aristocracia no século XVI e XVII, tinha poucos resquícios de subordinação tipicamente feudal e vivia em meio a um grande aumento da produtividade agrícola. 


Resumindo, a unidade tipicamente aristocrática da Monarquia medieval inglesa foi destruída pelo fracasso diante de guerras contínuas contra o continente e guerras no interior do próprio reino. A solução da nobreza inglesa pra crise que se abateu na Cristandade Latina a partir do século XIV foi a mercantilização, já que a guerra lhe estava vetada; o que incapacitou o Estado de formar um vero absolutismo. Mas a origem social da burguesia industrial, em meio a toda este contexto não era nobiliárquica nem se encontrou neste capital mercantil, e sim campesina e agrícola. 


[A mercantilização começou antes de qualquer associação nobiliárquica com a reforma protestante. Na verdade, a ''Reforma'' na Inglaterra partiu da Monarquia, era uma tentativa ligada à afirmação e constituição de um Estado Absolutista: fortalecimento da dinastia, subordinação da Igreja, e não menos importante, roubo das terras da Igreja e dos mosteiros, a fim de proporcionar recursos pro Estado pra constituição de uma burocracia e Exército que subordinasse a nobreza à coroa [no causo da Inglaterra isso não funcionou por um ou outro motivo, mas outras vezes deu certo, como na Suécia]. A mentalidade protestante pode ter consolidado certa ordem quando novos passos pro absolutismo foram dados no século XVII, mas as condições e as tendências que levaram à mercantilização e desmilitarização nobiliárquica começaram bem antes.]


No caso específico da comparação entre Inglaterra e Portugal [mais tarde interiorizada pelo Brasil], temos neste último grupos que promovem e investem na atividade mercantil em meio a uma relação com o Estado fundamentada em privilégios de casta/classe, e com o objetivo de reproduzirem uma sociedade hierarquizada de matiz e mentalidade senhorial.


Já na Inglaterra temos um campesinato em larga escala livre [de obrigações feudais], acostumado com diferenciações sócio-econômicas em seu próprio interior, a uma mercantilização da terra, e investimento agrícola, visando sobreviver economicamente em uma nova formação rural. Houve uma transformação burguesa, um aburguesamento da sociedade inglesa, tanto em seu estrato Nobre quanto em seu estrato camponês.


Não em Portugal, não no Brasil. Cá temos uma distorção pseudo-burguesa, um cenário criado para reproduzir uma elite que já não é mais nobre nem tampouco vaysha, mas pária no sentido estrito do termo.

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