quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A TRAIÇÃO DO PRESIDENTE, ou: pequena reflexão sobre estelionatos eleitorais e suas consequências

"Você pagou com traição
a quem sempre lhe deu a mão"


Jorge Aragão/Dida/Neoci Dias


Terrorismo injustificável, mas nascido da desesperança popular, do abandono das promessas de transformação realizadas em meio à Nova República


Poucos dias antes da promulgação da Constituição Federal, mais especificamente no dia 29 de setembro de 1988, um brasileiro sequestrou um avião da VASP, que saía do aeroporto de Confins, em Belo Horizonte.


Raimundo Nonato, de 28 anos de idade, havia sido demitido de uma construtora semanas antes. Aproveitando as parcas medidas de segurança nos aeroportos, entrou no Boeing 737 armado com um revólver .22 com a intenção de jogar a aeronave no Palácio do Planalto e matar o Presidente José Sarney, a quem culpava pela crise. O vôo tinha 105 passageiros, fora a tripulação.


Na confusão do sequestro, dois tripulantes foram feridos à bala. O co-piloto foi assassinado com um tiro na nuca. O avião se aproximou de Brasília já escoltado por dois caças Mirage da Força Aérea Brasileira.


O heroi do dia foi o comandante Fernando Murilo Lima e Silva. Com sangue frio, inventou desculpas para não cometer o atentado. Disse para Raimundo que o dia nublado na capital federal o impedia de visualizar o Palácio do Planalto, e deu voltas sobre a cidade até o nível de combustível ficar crítico.


Quando não tinha mais alternativa, o piloto tomou uma decisão corajosa. Realizou uma manobra louca e inédita para um Boeing, fazendo a aeronave girar 360° em linha reta. Depois arremeteu para o chão realizando piruetas em parafuso. Isso desnorteou Raimundo Nonato, que foi ao chão, dando o tempo que Lima e Silva precisava para pousar o Boeing no aeroporto de Goiânia.


Ainda assim, o sequestrador saiu do avião usando o comandante como escudo. Houve tiroteio com a Polícia Federal, e o piloto saiu com um tiro na perna. Raimundo foi baleado três vezes nas pernas e no quadril, e embora não sofresse risco aparente de vida, acabou morrendo no hospital tempos depois: um verdadeiro mistério.


Um ano antes, Clésio Venâncio, de 45 anos de idade, também tentou matar o Presidente José Sarney. Em fevereiro de 1987, depois de receber alta de um hospital psiquiátrico, ele subiu a rampa do Palácio do Planalto munido com uma faca. Era quase um Adélio da época.


Mas nem tudo era loucura, pelo menos não desse tipo. Quando visitou o Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em 25 de junho de 1987, o ônibus presidencial foi cercado por uma multidão de militantes do PT e do PDT. Eles gritavam palavras de ordem, impedindo o desembarque de Sarney, e ficaram gradualmente mais violentos. A certa altura, tentaram incendiar o veículo. Um dos pedetistas carregava uma picareta e, com um golpe, quebrou uma janela próxima ao presidente, que saiu com a mão ferida. Sarney culpou Brizola pelo escarcéu, e chegou a processar o ex-Governador do Rio.

"Eu acreditei!", gritava personagem de Jô Soares, representando a quebra de confiança da população com o sistema político depois do fracasso do Plano Cruzado


Todo esse ódio, causa destes atos injustificáveis, se devia à mágoa da população com o primeiro grande estelionato eleitoral da Nova República. O povão acreditou no Plano Cruzado, que congelou preços, salários e tarifas no início de 1986. Adotado por Funaro e Sayad, apoiado pela Fiesp, o Plano foi saudado com lágrimas nos olhos pela economista de esquerda Maria da Conceição Tavares. O slogan do governo era o ''Tem que dar certo!" As classes populares se tornavam ''fiscais do Sarney'', armadas com a tabela de preços da Sunab e chamando a polícia contra gerentes de mercados e vendas que não cumprissem o que estava escrito.


A inflação declinou violentamente, o consumo explodiu, e a popularidade do presidente foi às alturas. Não era pro tabelamento de preços durar muito tempo, mas Sarney resolveu esticar a corda, se aproveitando dos seus quase 100% de aprovação popular para vencer as eleições de outubro de 1986. O pleito era importantíssimo, pois dali sairia a Assembleia Nacional Constituinte.


O PMDB elegeu 22 dos 23 governadores e 38 das 49 vagas no Senado. Fez também 260 dos 487 deputados federais. Brizola, única voz que ousou criticar o Plano Cruzado, não conseguiu fazer seu sucessor: Darcy Ribeiro perdeu as eleições no Rio para Moreira Franco, o homem que dizia que resolveria o problema da criminalidade em seis meses.


Poucos dias depois da eleição, Sarney abandonou a população. Se rendeu ao ágio, à escassez de mercadorias nas prateleiras, ao gado escondido em fazendas no interior do país, e convocou uma rede de TV e rádio para anunciar um reajuste de quase 100% em itens da sacrossanta tabela da Sunab, e de 60% dos combustíveis.


Foi sua morte política. E quase o levou à morte de fato. Pequena recordação, talvez aterradora, das consequências diretas do desespero popular diante do abandono daqueles em que depositou suas esperanças. E um alerta para os candidatos atuais sobre o momento grave por que passa o país. Estas ações condenáveis são a ponta de um Iceberg. E os rumos do Brasil não nos trazem tranquilidade. Podemos estar à beira de uma grave disrupção política provocada pelo fracasso final da Nova República, e orientada não contra uma pessoa em particular, mas contra a totalidade do arcabouço institucional.